“Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria (Sachverhalt) – espalhá-la, tal como se espalha a terra, revolvê-la, tal como se revolve o solo. Porque essas «matérias» mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas a todos os seus contextos anteriores estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da nossa visão posterior – como torsos na galeria do colecionador.”
Walter Benjamin, Imagens de Pensamento
Wer vergisst schneller? Der Verlassene oder die, die ihn verlassen hat?
Quem esquece mais rápido? O abandonado ou aquele que o abandonou?
É na cidade de Marselha, num imaginário histórico marcado pela ocupação alemã, que Georg (Frank Rogowski) espera obter um visto de passagem para o outro lado do Atlântico e, como tantos outros, vagueia sem propósito. Aqueles que estão encurralados em Marselha, à espera de navios, vistos e outras passagens, estão também em fuga – não há caminho de volta para eles, nem caminho a seguir. Ninguém os vai receber ou cuidar deles. Passam despercebidos – exceto pela polícia, pelos colaboracionistas e as câmaras de segurança. São fantasmas encurralados numa fronteira entre a vida e a morte, o ontem e o amanhã. O presente passa por eles sem os reconhecer. Desejam ser levados pelo mar, pela brisa, colocados em movimento. Anseiam por uma história em nome próprio, como alguém que cresce e se transforma numa pessoa com um propósito, com memórias, desejos e necessidades.
Transit (Em Trânsito, 2018) de Christian Petzold, adaptado do romance de Anna Segher de 1944, transporta a história original para o presente, turvando assim os períodos para criar uma exploração atemporal da situação difícil daqueles que procuram refúgio. Mas mais do que isso, é um filme sobre aqueles que partem e aqueles que ficam. Georg é um refugiado alemão que assume a identidade de um escritor morto cujos os papéis de trânsito ele carrega. Apaixona-se por Marie (Paula Beer), uma mulher misteriosa em busca do seu marido – o mesmo homem cuja a identidade Georg roubou.
Georg e Marie são, antes de tudo, amantes sem o saberem. Na cena em que Georg e Marie falam um com o outro pela primeira vez, a luz da tarde que entra pelo quarto de hotel de Marie parece iluminar o encontro de dois fantasmas. Inicialmente estão distantes – Georg está sentado à mesa, enquanto Marie separa e dobra as suas roupas. Conversam sem se olharem. Em seguida, Georg senta-se na cama ao lado de Marie para ouvi-la terminar de contar a sua história. É então, nesse preciso momento, que Georg torna-se espectral aos olhos de Marie, aparando-lhe o corpo como aquele por quem ela tanto procurava em vão. Sempre tarde. É ele quem lhe vai permitir partir.
O quarto de Marie configura em si a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre aqueles que ficam e aqueles que partem. Marie espera por um morto que jamais irá voltar. Mas para aqueles que partem, ninguém está com eles. Quando partem, fazem-no sozinhos. É à janela do quarto de hotel que estes dois fantasmas contemplam o porto de Marselha, como que banhado pelas águas do rio Estige e Aqueronte, e procuram um no outro uma forma de pagar pelo trajeto que irá levar as suas almas até ao outro mundo.
George parte com Marie. Deseja-o pelo menos. Há um preço a pagar e só um deles pode partir. George deixa-se ficar para trás a vaguear pelas margens. Marie regressa. Nunca partiu. O abandonado não esquece quem o abandonou, e quem abandonou não esquece o abandonado. Marie sabe que aqueles que ficam não ficam sós. Carregam o tormento e as músicas tristes. George não se esqueceu, Marie também não, mas agora esconde-se. Ficam para todo o sempre à procura um do outro, naquela tarde no quarto de hotel, como fantasmas que são.
Amantes traídos, desejos por realizar e segundas oportunidades, são tudo ingredientes que compõem o universo cinematográfico do cineasta alemão. Os seus personagens vagueiam por espaços “mortos” e assombrados por escolhas feitas no passado. Não se permitem a nascer aos nossos olhos. Pelo contrário, carregam consigo o peso de uma vida e a nós, meros espectadores, resta-nos acompanhar o seu presente e fabular o seu futuro. O tempo de espera a que Petzold nos obriga é o mesmo que agoniza os seus protagonistas e o que lhes proporciona a possibilidade de repensar os seus planos (de fuga), de ver além da sua própria situação. É um cinema de estímulos que requer do seu espectador um olhar atento na procura pelo significado dos vários signos que pontuam esse universo cinemático, concentrado que é em imagens e paisagens sonoras de outro mundo, do fantasmático. Os fantasmas das outras estórias de Petzold nunca antes foram tão vivos e visíveis quanto Georg e Marie.
Este fotograma não existe, ao contrário de Georg e Marie que ainda vagueiam pelas margens do porto de Marselha. Mas é precisamente por não existir que se torna tão vivo, real aos nossos olhos. Porque eles sabem para onde querem ir, mas não sabem onde é que estiveram.