Naqueles dias a neve e o vento eram mais puros, as estrelas mais próximas de nós. Sob o teu olhar de mãe, a natureza continuamente se ia recolhendo ao invisível.
Ana (1982), António Reis e Margarida Cordeiro
A existência de dois títulos para nomear Staroye i novoye (1929), o filme co-realizado por Sergei Eisenstein e Grigori Aleksandrov em 1929, A Linha Geral e O Velho e o Novo, ainda hoje utilizados alternadamente, dá conta de um contexto de produção e distribuição atribulado, devido ao movediço clima político então vivido na União Soviética.
A linha geral, frase tomada de empréstimo por Eisenstein a partir das suas leituras sobre a economia agrícola russa, aludiria às directrizes do Partido Comunista quanto ao desenvolvimento do país. Na cena em que Marfa Lapkina, protagonista do filme, e um outro camponês, confrontam, enquanto membros da Inspecção Operária e Camponesa, os repimpados funcionários do departamento responsável pela atribuição de crédito agrícola, aquilo que exigem é que a linha geral seja seguida—que a burocracia não atrase a revolução. A coincidência das duas linhas, a política e a que nomeia o filme, passa a justificar, devido à volatilidade do contexto político, a necessidade de um outro título — O Velho e o Novo —que acaba ainda assim por se ligar — justiça poética — de forma profunda com o primeiro.
Apesar de ser contra as circunstâncias representadas nos primeiros vinte minutos do filme que o resto de A Linha Geral se constrói, é nesses vinte minutos, no passado e naquele mundo antigo que se quer destruir, que repousa a energia geradora do novo.
A linha geral descreve um plano: as orientações governamentais que farão avançar a Rússia; mas também o fio que se desenrola entre passado, presente e futuro, a linha do tempo, se virmos o tempo como uma linha. É o decorrer desse fio que separa e ao mesmo tempo une as duas partes do segundo título: o velho e o novo.
O novo mundo nasce porque o velho prova ser insuficiente para alimentar e fazer sobreviver quem o habita. Menos do que os elogios e críticas que A Linha Geral tece aos esforços individuais e colectivos que propulsionam a mudança, interessa-nos aqui a relação de ruptura e continuidade entre aqueles dois mundos, por essa ser uma relação que recorre noutros contextos históricos. Se os esforços de colectivização e mecanização da agricultura na União Soviética serão mais propriamente contextuais — o filme abre com uma citação de Lenine sobre a necessidade de transformar a Rússia agrária numa Rússia industrializada—, a passagem de um mundo para o outro é cenário recorrente noutros tempos e lugares.
A passagem da antiga para a nova ordem tem em A Linha Geral materializações violentas: o confronto entre forças revolucionárias (camponeses pobres, organizados colectivamente em kolkhozes) e forças conservadoras (kulaks, os camponeses ricos) ou a distância que separa as mãos que trabalham no campo e as mãos que, na cidade, lentamente, fazem as leis, formas de violência e disjunção justificadas pelas condições extremas do passado. O filme está empenhado em mostrar a necessidade, os avanços e as virtudes do progresso, à luz do qual os quadros da velha ordem são motivo de lamentação. Apesar de ser contra as circunstâncias representadas nos primeiros vinte minutos do filme que o resto de A Linha Geral se constrói, é nesses vinte minutos, no passado e naquele mundo antigo que se quer destruir, que repousa a energia geradora do novo. A força motriz do filme é Marfa, uma camponesa que não possui nenhum cavalo que possa usar na lavoura, e que conta por isso apenas com o seu próprio corpo para trabalhar a terra, sendo esta o elemento constante no meio da mudança: a planície, sem gente, sem gado, sem plantações, sobre a qual vemos a luz deslocar-se por acção do movimento do vento e das nuvens.
É na planície que observamos as fieiras de casas cobertas de palha ou abandonadas a céu aberto sem telhado nenhum, esqueletos que deixam entrar a claridade nos espaços onde se misturam pessoas e animais. Esta falta é sinal de penúria, mas também prova de que o sol todos contempla.
Em Eisenstein-Aleksandrov, o movimento da luz sobre a paisagem é messiânico, porque anuncia a chegada de uma nova era, mas também revelador de uma continuidade, porque naquele universo, onde domina a natureza, tudo se organiza em função de ciclos e elementos que persistirão apesar das pessoas e da modernidade: o nascer e o pôr do sol; o céu que promete e nega a chuva; as nuvens que molham e gelam o lombo do gado no Inverno para depois o deixar sem nada para beber durante os meses de Verão; as árvores transformadas em casas, as ervas transformadas em fio, vegetal feito abrigo.
Ainda que nestas imagens não se sinta qualquer tentativa de estetizar a pobreza, há nelas uma beleza profunda, sórdida e quente, muito diferente do vigor e luminosidade que caracterizam o resto to filme. A Primavera que A Linha Geral anuncia, o desabrochar de um novo mundo, deve em absoluto a sua fertilidade ao estrume, à lama e ao lodo que a antecedem.
No interior da mansarda onde os camponeses se amontoam, os corpos adormecidos tornam-se indistintos por acção do calor, habitando um mundo anterior à divisão das águas, espécie de vida intra-uterina, fenómeno pelo qual Eisenstein estava, aliás, particularmente interessado, como lembra o crítico Antonio Somaini[1] a propósito dos escritos do realizador na colectânea Metod, onde Eisenstein fala de diferentes estados primordiais, desde a “vida do feto na placenta antes do nascimento”, passando pelas “formas de pensar nas sociedades arcaicas” e os “primeiros modos de organização comunitária”, como aspectos que considerava terem permanecido na mente humana, na sociedade, na arte.
A entidade indivisa que aqueles camponeses integram, a casa, alberga o vapor da respiração e os fumos do forno, ao mesmo tempo que tem a sua base alagada e deixa a chuva entrar. Enquanto construção humana, não pertence ao mundo natural, ao mesmo tempo que nele continua a tomar parte: os elementos naturais transitam entre o interior e o exterior da habitação, consubstanciando uma existência indivisa entre gente, bichos e coisas. Já a nova ordem será feita de diferentes formas de demarcação e salubridade.
A primeira evidência da separação entre velho e novo mundo acontece logo no início do filme, precisamente na cena em que dois irmãos repartem a casa herdada. À parte as implicações políticas da divisão da propriedade ali presentes, aquele momento representa a cisão do elemento mais significativo da vida em comunidade, o núcleo da casa. Um outro momento significativo no que respeita à ideia de separação de uma unidade primeva é a famosa cena em que os camponeses olham em êxtase a nova máquina que separa o leite, cena comentada por quase todos os críticos que falaram do filme, de Gilles Deleuze (o orgânico e o patético) a Slavoj Žižek (a experiência colectiva do sagrado).
A prática milenar da produção do leite depende naturalmente da domesticação de animais. Se o humano cria a vaca para se servir dela, essa necessidade permite pelo menos a manutenção de um convívio mais directo entre animal e humano. A mecanização desse processo possibilita uma aceleração extrema da separação do leite e da nata, mas acarreta também uma quebra naquela comunhão. É uma das formas de inscrição do progresso, faca de dois gumes que renova e destrói, tópico central para os realizadores que motivaram esta crónica, Cordeiro e Reis, em cujos filmes, casas, planícies, flores, animais integram um complexo mundo anterior à modernização, na Rússia como cá.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Staroye i novoye é parte dessa lista.
[1] https://www.amazon.com/Sergei-Eisenstein-Transcribed-commented-Bulgakowa/dp/3980498948