I keep wanting to crawl back into the womb. Sylvia Plath
Experienciar um festival de cinema é sempre estar presente para o que nos tem a dizer. Festivais são locais de partilha, sociais e individuais, onde, devido a uma saturação de filmes apresentados num curto espaço de tempo, os sentidos e o corpo acabam por sofrer o tipo de exaustão que abre caminhos insólitos. O que continuo a querer deles é uma possível união entre filmes onde uma não existe propriamente, sempre na ânsia de encontrar aquela exaltação vulcânica que suplanta tudo o resto. No IndieLisboa, festival generalista, onde as secções são exactamente isso, caixas que não se misturam, é um desafio tentar desvendar os vários fios que poderão interligar filmes. Noutras palavras, fazer um raio-x da curadoria dos curadores.
De forma distraída, mas intensa, como comanda a cinefilia, encontrei quatro longas-metragens na 19.ª edição do IndieLisboa, três vindas do arsenal do Festival de Berlim deste ano, mas que me apanharam na mesma de surpresa (as segundas visualizações são sempre as mais inquisitórias). Juntas formam uma intersecção que mapeia o sofrimento e a deambulação que vem com ele de um lugar que começa físico e parte-se para dentro das especificidades da não-vida, de uma paragem cardíaca duradoura, representada de múltiplas formas diferentes.
Dentro do saco estão Rimini (2022), de Ulrich Seidl; Produkty 24 (Convenience Store, 2022), de Michael Borodin; How to Save a Dead Friend (2022), de Marusya Syroechkovskaya; e Coma (2022), de Bertrand Bonello.
Na linguagem corporal performática dos personagens que vemos em campo, é desvendada a luta pessoal, o desespero viscoso do homem que já não acredita, mas continua a fingir viver segundo a glória dos velhos tempos.
Tinha como intenção inicial, ainda antes do festival começar, pensar na localização do silêncio embrionário da tristeza e como a fitamos no cinema. Segundo esta ordem – do que se revela perdido no passado até à meta onírica que se arquiva dentro de si mesma – é construído um discurso bem mais fluente do que aquele a que me tinha, de início, proposto. A partir de uma cidade, de um só prédio ou uma muralha deles, e até dentro de um quarto, as arestas que delimitam a morte ou uma ideia do que a morte é vão-se perdendo, uma a uma, até se alcançar um não-lugar onde o próprio conceito de dimensão é tão esmagador que não pode ser calculado. Neste quadrado, é possível depurar uma solução para a perda de esperança no percurso dos seus actos disruptivos e indescritíveis.
Cidade
Rimini é, muito simplesmente, um filme de Ulrich Seidl. Não muito distante da moldura grotesca de Safari (2016), o mais recente filme de Seidl esgalga e esgalga a sua já esperada secura dentro da vida de um cantor de música pimba que perdeu recentemente a mãe. Entre pequenos concertos em hotéis e gigs como gigolô de mulheres solteiras de idade avançada pela cidade natal de Fellini fora, Rimini faz uso da aridez da qualidade balnear da cidade italiana durante o Inverno para desenrolar um retrato sincero, desconfortável e centrífugo da sua personagem principal, um homem que conduz uma vida avulsa, perdida para sempre. Preocupado com a simetria das suas estáticas composições bidimensionais, Ulrich filma a tragicomédia que emana da neblina invernal tão felliniana, a areia humedecida pela neve, a brisa marítima…e toca na psicogeografia do lugar, onde só ressoam os fantasmas do passado. Na linguagem corporal performática dos personagens, é desvendada a luta pessoal, o desespero viscoso do homem que já não acredita, mas continua a fingir viver segundo a glória dos velhos tempos. No final, numa estrutura arquitectónica de ilusões a desmoronar-se, a moradia onde vive e até aluga por dinheiro de vez em quando, acaba invadida, divisão atrás de divisão, por corpos de estranhos, imigrantes desalojados e ignorados até então. Tudo o que havia ainda para esventrar acaba cruamente ocupado enquanto consequência do que a sua geração e a perversidade do seu pensamento nacionalista exacerbou. Seidl dá as mãos a uma Europa estéril que precisa de conseguir imaginar o seu futuro para que este aconteça, de facto. É frustrante tentar vislumbrar um numa sucessão narrativa tão impiedosa.
Prédio
Produkty 24 eleva esta malaise política a um prisma onde não só os pilares mas também as fundações que se ocupam de pura malvadez. A brutalidade do seu dizer não se dá a um simples respirar. Dentro de uma loja de conveniência aberta 24 horas por dia em Moscovo, habita um ciclo imparável e incontornável de escravatura moderna. Os “empregados” são migrantes do Uzbequistão, a maior parte deles mulheres em idade fértil a quem os passaportes foram retirados, e com eles os seus direitos humanos e civis. Mergulhados em néones saturados e atemorizantes – os verdes, castanhos e lilases sujos que estereotipam a ilegalidade e denunciam a violência sistémica sócio-económica num piscar de olhos -, estes seres humanos vivem curvados até à submissão. De forma literal e figurativa. Durante 45 minutos, a porta da loja mantém-se lacrada. Dentro da caixa escura e bafienta, que faz lembrar um esconderijo em tempos de guerra, a câmara tanto se fixa fora de portas entreabertas, à espera que algo vá ao seu encontro, de forma expositiva, como vai directamente até às imagens gráficas que rapidamente deixamos de conseguir encarar. Não existe como pesar tal injustiça, enraivecida e de revirar os olhos, num grito capaz de espantar até a própria morte.
Ora valsa ensaísta, ora filme-montanha nietzschiano, abre um caminho invisível para a cura da stasis (em vez da habitual superação). Bonello apresenta-nos os glóbulos brancos das catástrofes do séc. XXI.
A personagem central, uma jovem rapariga que acabou de dar à luz, faz prolongar o silêncio que intercala os gritos de dor física que se vêem ecoados por toda a loja. Quando esta finalmente abre a porta para a luz amarelecida da capital russa, há uma procura por uma fuga física que nunca acaba por chegar. Na linha entre a pobreza laboral do Uzbequistão e a perda de direitos e identidade em Moscovo, separadas por rotas de comboio, autocarro e táxi difíceis de mapear, há uma mãe viúva que por lá ficou e começa a olhar para a filha como uma fonte consumidora de recursos enquanto o filho bebé desta continua em terras russas. No final, o prédio onde se encontra a Produkty 24 eleva-se do solo, levando com ele até as raízes mais profundas do edifício. Erguido nos céus, está mais do que visível, mas continua por vindicar. Michael Borodin retira o oxigénio do fôlego frenético que é o garantir de camadas básicas da humanidade.
Muralha
Depois de arrancada a nostalgia mordaz de Rimini, é-lhe misturada a violência por trinchar de Produkty 24: How to Save a Dead Friend resulta num bolo sobre o desespero que dá voz à inalcançável Rússia de Putin. “Toda a gente sabe que a Rússia é para os deprimidos. Ou pelo menos para os realistas”, avisa-nos uma voz-off por cima de imagens desoladoras de um eterno inverno. Talvez um dos filmes mais honestos sobre uma geração de jovens, naturalmente rebeldes face à crescente natureza autocrática do país em questão, o documentário transformado em memoir é composto por vídeos filmados durante 12 anos por uma adolescente, Marusya, determinada a perder a sua vida aos 16 anos. Sempre em sincronia connosco e com aquilo que permanece à distância, o filme parte da desolação colectiva personificada por blocos de betão interligados entre si como uma ilha rodeada por poucos ou nenhuns acessos – essencialmente uma muralha de vidas clinicamente suspendidas, e onde a população vive de forma comunal, uma janela e muitas famílias por corredor -, para se revelar um objecto de auto-expressão. Para lá da auto-destruição, é o último mecanismo existente que exerce algum tipo de controlo sobre o que acontece.
Olhando de perto para uma fase da vida que escapa ao tempo e ao espaço, Marusya tenta reconstruir a cronologia, compondo uma carta de amor ao seu sempre amigo, mais tarde marido, mais tarde ainda ex-marido. Conseguimos discernir onde nos encontramos a partir de escassas transmissões televisivas, como a que ocorreu durante a ascensão ao poder de Putin, e muitos cortes de cabelo. Quando não é possível, a voz-off da jovem realizadora clarifica o caminho em vista. Da capital da depressão, Butovo, à capital do país, Moscovo, o filme desenha-se como um puzzle refeito pela memória de como Kimi salvou Marysua da única forma que alguém alguma vez conseguiu salvar outra pessoa: através da partilha da dor. E ainda que o filme mergulhe num declive inesperado para o relato da toxicodependência de Kimi, que surge da forma mais abrupta possível (de repente, uma seringa na mão de um rapaz), o momentum criado previamente tacteia a raiva “inespecífica” do que significa saber que não há espaço para a mudança, que é o mesmo que dizer que não há abertura para o moldar de uma personalidade. No final, efeitos espelhados são colocados por cima de uma muralha de prédios infindável, obrigando-os a permanecer suspensos numa ideia de céu, livres de um chão. Juntamente com Vadim Kostrov, Marusya Syroechkovskaya comete o maior acto de rebelião de todos: mostra-nos o que não deveríamos conseguir ver ou reflectir fora da “Federação Depressão”. Esta sua primeira longa-metragem é um verdadeiro assombro diarista.
Quarto
A imortalidade conseguida em How to Save a Dead Friend, algures entre o desaparecimento de Kimi e o que Marusya aprendeu através dele – “As coisas não melhoram, só te habituas à dor” -, toma o rumo intimista da imensidão que é o vazio em Coma, como quem salta para dentro de uma poça escondida que não sabia que possuía dentro de si. Partindo da voz de Marusya, indicadora de um arriscar na vida, no desconhecido, o filme pandémico de Bertrand Bonello parte também ele de uma voz, a sua, sobreposta em imagens com pouca resolução que espoletam uma carta dirigida à catatonia de um ano de confinamentos pandémicos, e que é dedicada à sua filha. Num turbilhão febril de ideias e conceitos, Bonello coloca uma rapariga confinada no seu quarto e distribui o peso do filme para o que é possível perscrutar sem de lá sair, como uma flor a crescer na direcção errada. Primeiro direcciona o olhar para dentro de um ecrã de computador, e depois para dentro do aborrecimento, que assim que adicionado à hipnose, ultrapassa um certo limiar e começa a nadar de liberdade. Limbo atingido.
Os abalos que nestes filmes vi são terrivelmente constantes e agarram-se uns aos outros num abraço contra a ameaça do azul pulposo das profundezas do oceano. O azul que faz qualquer um querer rastejar de volta para o útero.
Enquanto isto, uma figura-imagem do que é body horror, se nele pensarmos de olhos fechados, vai-se desenhando. Uma profeta YouTuber comanda a falta de livre arbítrio e ilumina questões que se prendem ao corpo e à sua fibra produtiva. Mas Bonello não se fica por aqui, oferecendo à rapariga uma ligação com um outro reino, uma estrutura flácida flutuante, a chamada “zona livre”, uma floresta tingida de roxo para onde os mortos são transferidos. Preocupado com este mergulho forçado e como poderá cicatrizar a filha, o realizador transfere-lhe o poder de entrar e sair daquele lugar. Entretanto, o filme, cosido por um formato que une retalhos na colcha da televisualidade do subconsciente humano, passa por várias fases, mas nunca é estanque. Aliás, dos quatro filmes aqui reunidos, Coma é o único que se consegue finalmente esventrar de tudo o que é insuportável. Não importa que a porta tenha que permanecer trancada. No final, tudo consegue ser atingido por dentro, rasgando as “paredes dentro das paredes” que as várias crises corpóreas e existenciais destes tenebrosos fins dos tempos, porque indefiníveis, têm vindo a fortalecer. Ora valsa ensaísta ora filme-montanha nietzschiano, abre um caminho invisível para a cura da stasis (em vez da habitual superação). Bonello apresenta-nos os glóbulos brancos das catástrofes do séc. XXI.
Assim sendo, e segundo então este gráfico ordenador de um movimento que parte sempre de vigas bem cimentadas no solo, e se intercala com o apagar destas em vários graus até ser atingida uma eclosão e garantida uma visibilidade no acto que é a fuga, estes quatro filmes presentes na edição, que acaba de terminar, do IndieLisboa medem o pulso a abalos das maiores proporções que querem libertar humanos da falta de poder exercida sobre as suas variadas circunstâncias. Num processo que tanto adiciona como subtrai, realizam a tarefa com sucesso. E não só através do que nos contam filmicamente mas também fazendo uso dos filmes enquanto objectos para um pedido de ajuda que ressoe de forma global.
Não chegam, no entanto, a falar de tristeza. Sendo a tristeza nada mais do que um reflexo da vida, um ser que inspira e expira, de forma intermitente, não a iria encontrar aqui. Os abalos que nestes filmes vi são terrivelmente constantes e agarram-se uns aos outros num abraço contra a ameaça do azul pulposo das profundezas do oceano. O azul que faz qualquer um querer rastejar de volta para o útero.