Pouco antes de ser degolada por uma máquina de zíper elétrico de um refinamento quase-feérico em Trauma (1993), a ex-enfermeira diz à sua assassina em off que jamais esquece de uma cara; ora, esta é a essência do trauma, e portanto do arcabouço assombrado do filme, que tem na cena originária da decapitação do feto o seu secreto leitmotif: “o trauma é um ‘arrêt sur l’image'” (Lacan): a fixação no instante fatal, de fatal beleza, do horror, no caso do instante pregnante que se eternizou numa imagem, que se deixou paralisar em sua textura saturada de sangue. Em Trauma, Argento alcançou o núcleo estruturador de todos os seus melhores filmes maneiristas e os dilapidou em um diamante cheio de anfractuosidades luminosas, rachado nos extremos e irisado de negro nas bordas.

O cinema de Argento, modernista em sua forma e démarche simbólica, é por essência hermenêutico: se o trauma é a chave para decifração grand finale do significado da imagem pregnante (a decapitação, a ser repetida, segundo todo ritual xamânico mórbido, durante o percurso iniciático do filme), daquela que é a origem da obsessão maneirista, ele tem, no entanto, a virtude encantatória de secretá-la como Segredo a ser desvendado: a imagem a um só tempo revela (o trauma), mas o faz de forma deformada, desfigurada (uma refiguração sublime, à altura do monstro que jaz no arquétipo: Decifra-me ou devoro-te), Outra. É preciso ao espectador uma atenção supra-humana às pistas, muitas vezes falsas ou em trompe l’oeil ]cuja sequência mais paradigmática é o corredor de quadros-espelhos em Profondo rosso (O Mistério da Casa Assombrada, 1975), com a careta da assassina revelada aprés coup ao final pelo exame atencioso do músico de jazz], dadas pelo filme ao longo de sua trajetória. O arcabouço deste processo insano de decifração ao longo de um longa-metragem do Segredo que secreta um monstruoso fascínio é o arquétipo do olhar do basilisco, citado expressamente na primeira cena de Trauma (na imagem abaixo): o mítico olhar do lagarto demoníaco está na origem genealógica do fascino clássico, do olhar que não consegue se desvencilhar da incomensurável pressão exercida sobre a pupila pelo monstro pático.

Não se lembram de que, em Trauma, nenhuma das vítimas opõe à degola uma obstinada resistência? Todos se deixam levar e enlevar pela operação metódica do assassínio, pelo ritual de seu próprio sacrifício, cujo estalão nos é dado na abertura da abertura, com a encenação em forma de marionetes da cérémonie da decapitação na Revolução Francesa? Definitivamente, é um espetáculo estético que se deixa emular pelo patológico, pático e patológico, haurindo forças gêmeas de sua mesma origem. Se todos irresistivelmente cedem, sem apelo nem distúrbios, ao gesto assassino (a morte de Brad Douriff no fosso do elevador sendo certamente a mais elaborada, pois o tempo infinito empregado para a tortura de seu corpo poderia deixar espaço para um múltiplo gênero de escapatórias, e no entanto a vítima não se move) é porque, à imagem e semelhança do espectador, foram cooptados pela operação refinada da decapitação, pelas mediações cuidadosamente enfeixadas neste processo de converter um corpo ainda humano em um cadáver alegorista de que Argento nos dá a figura como Caravaggio ontem à do Golias assassinado pelo Justo.
O espectador terá a chance segunda do filme propriamente dito para, de vítima confrade num processo identificatório stanislawkiano de ver a si mesmo como objeto a ser imolado, tornar-se-á o herói da inquérito romanesco, aquele que pode deter a chave da decifração hermenêutica, de ter acesso à decifração funcional do horror sem que, à semelhança dos mulçulmanos que voltaram do Lager, precise ser sacrificado também: uma testemunha afetiva, sensível agora dotada de Logos. Se Trauma não pode ser considerado mais um filme maneirista de Argento, ainda guarda da féerie maneirista o motivo magistral (a decapitação do feto), o découpage cifrado segundo o “objeto parcial” hermenêutico (as cabeças degoladas) e a imagem-mater trompe l’oeil, cujo paradigma é estabelecido quando da visão de Aura Petrescu da cabeça supostamente degolada de sua mãe (vide a primeira imagem deste texto), que ao final, com o auxílio das mediações do filme-enquête ( enquete patológica, estética, hermenêutica) vai se revelar arquetipicamente falsa, pois foi apreendida segundo o metro de um verdadeiro embalsamado por condições inóspitas à captação da Verdade: chuva torrencial, histeria de Aura, movimento brusco do suposto assassino para fora do quadro. Estas condições terão de ser suprassumidas pela racionalidade da investigação narrativa, precisam ser pelo espectador abstraídas das nefandas condições da visão equivocada de Aura para que a Verdade da cena originária possa ser decifrada como a verdadeira máscara de tudo, aquela que cola na derme, revelando-nos a raiz do horror descrito.
Trauma, em seu fundo mítico e psicanalítico e em sua superfície ressoante de aparições taumatúrgicas de horror, é certamente um dos bons filmes da fase pós-maneirista de Argento, a ser descoberto com o rigor e admiração devidos talvez pela geração que vige.
Todo grande barroco é um cultor das pompas fúnebres, e mesmo a ideia, que se pode anexar a Argento, de um barroco tardio (alguém que trabalhou sistematicamente em sua carreira o maneirismo, cujos resquícios ainda subsistem em um ou outro filme posterior) não anula o seu fascínio mórbido por Origens talhadas a sangue e cobertura placentária, aqui em particular. Toda Origem secreta uma maldição, uma condenação à psicose e ao opróbrio, um devir abominável que a racionalidade do longa-metragem (metragem esta que opõe, à fulminação absconditus do plano de cinema que contém, como a urna de Pandora aos males, a cabeça degolada, a racionalidade apolínea da investigação-estudo de caso) procura sublimar ou exorcizar, como o Édipo mendigo em Colona o assassino de Laius agora diante de seus próprios olhos cegos. No entantos Argento deixa ao longo do filme planos, pespontos e rasgos dispersos aqui e ali, como os braços picados de agulha de Aura (interroga-se David Parsons, o jovem que a vai auxiliar em tudo: seriam drogas?), um misterioso carro que aporta na rua e que atrai a atenção de ambos sem que isso tenha um desenvolvimento ulterior na narrativa, outro carro na profundidade de campo na morte de Brad Douriff, o expressionismo moribundo das grandes encenações granguinoglescas da sessão espírita de Adriana Petrescu e sua degola final por uma criança (uma criança justamente!). Ou o próprio plano do lagarto, que, se tem sentido alegorista de nos dar a chave do basilisco fascinatório, nem por isso tem mais razão diegética de merecer tamanha atenção por parte do diretor. São quase-digressões a princípio aleatórias que tem por função complicar a tarefa hermenêutica do espectador, adensando ou rarefazendo a mitologia originária em ação latente, que a todo custo busca o obscuridade do útero impenetrável pelo olhar diligente e empreendedor da tríade masculina do Iluminismo: Jasão, Teseu e Perseu, ou figuras a posteriori do espectador atento à missa negra espetacular e especular do artista-demiurgo.
Adriana Petruscu, figura demoníaca do Feminino revanchista (como Electra, Medea, Medusa, Clitmnestra ou a mãe de Carrie, feita pela mesma Piper Laurie), da vendeta da Origem espoliada pelos carrascos da razão funcional (o corpo clínico), volta à Cena do crime para, repetindo-o sobre os seus algozes, imprimir à sua monstruosidade casual uma causalidade neo-trágica, e assim resgatar o Acaso terrífico para sua abóbada materna intumescida de fluidos seminais e selada de maldição: a maldição de uma alteridade (O Filho Nicholas, o Feminino, o sangue jorrado impunemente) que busca voltar à Cena, desta vez triunfalmente, acumulando em espiral os cadáveres daqueles que ousaram retirá-la de Cena. Esta questão da Cena é relevante porque se trata antes de tudo de uma presentificação do interdito (a decapitação do filho) através da mise en scène, do estudo factício em chave primordial da mesma Cena, que não passou, como nos mostra ad libitum a morte de uma das enfermeiras sob o signo de uma exceção meteorológica: não havia chuva, mas o assassino a provoca artificialmente, induzindo um pseudo-incêndio no hotel onde a mulher fora se refugiar.
A anorexia de Aura Petruscu nada mais é senão a manifestação somática desta grandeza de infinitude sublime, trabalhada por toda a obra de Argento, grandeza esta sempre cerzida segundo o metro da Mãe monstruosa, impossível de digerir para um organismo finito, ainda hesitante em seu eidos pela incipiente formação física e espiritual (de fato, há uma tríade semi-infantil que inspira na intriga ao desvelamento de tudo, espécie de coro a que falta o hexâmetro da reconciliação que só a idade do espectador adulto, maturada/mediada, poderá trazer: o feto de Adriana, o menino loiro enquetêur e a adolescente anoréxica Aura). Trauma, em seu fundo mítico e psicanalítico e em sua superfície ressoante de aparições taumatúrgicas de horror, é certamente um dos bons filmes da fase pós-maneirista de Argento, a ser descoberto com o rigor e admiração devidos talvez pela geração que vige.