Comme la vie est lente. Et comme l’Espérance est violente.
excerto de “Le Pont Mirabeau” de Guillaume Apollinaire
Ainda que o nome de Koreyoshi Kurahara esteja intimamente ligado à nova vaga japonesa, desde logo com um título fundamental do taiyozoku como Kyōnetsu no kisetsu (1960), tal não significa que Garasu no Jonî: Yajû no yô ni miete (Johnny Coração de Vidro, 1962) deva ser visto desconsiderando outros mestres japoneses menos desconhecidos. Mifune (Izumi Ashikawa), a protagonista do filme, é, com todo o seu ser, uma personagem que carrega o fatalismo e a perseverança quase sobre-humana de uma mulher mizoguchiana, com a sua vontade inabalável de percorrer caminhos espinhosos para alcançar pequenas vitórias – habitualmente, uma vitória que poderá reduzir-se apenas ao direito a amar e ser amada. A dificuldade de concretizar essas pequenas vitórias torna-se evidente em algo tão simples quanto o permanente desencontro entre a subnutrição de Mifune e o facto de Joe (Jô Shishido) ser chefe de cozinha. A canção que Akimoto (Jôji Ai) entoa fala de um vaguear sereno pela vida, numa impossibilidade de totalmente saciar e ser saciado. Mas, como que contrariando esse gozo sereno da vida em tom epicurista, Mifune virá provocar naqueles que a encontram um sobressalto, um novo impulso à acção, ainda que essa acção ponha em perigo a fragilidade dos corações de vidro, vulneráveis às feridas do amor. E, porque são de vidro, translúcidos como a água, os corações deixam também transparecer as mágoas das dilacerações amorosas anteriores, numa cadeia de abandonos, de abismos que levam ao abismo.

Regressemos às primeiras imagens do filme, quando Mifune se envolve com as algas que haviam sido colhidas na praia. Já nesse momento algo nos deixa intuir que ela voltará àquele mesmo lugar e que essas algas estarão, afinal, a puxá-la para um destino inescapável (veja-se como as algas envolvem o pescoço de Mifune e com ela se deixa envolver nelas, a forma como os seus dedos abraçam a areia molhada da praia). Um destino que ela tenta contornar com toda a gana, com toda a potência da sua voz, uma voz que pode soar por vezes como histriónica. Mas os recursos que estão ao dispor de Mifune não são mais do que os recursos de uma criança, algo que se torna notório numa das mais belas sequências do filme, em que ela brinca com Joe, correndo atrás dele e imobilizando-se de cada vez que ele olha para trás. Joe retoma o passo, tentando sacudir aquela sombra insistente, novamente Mifune corre atrás dele, e novamente se imobiliza quando ele olha para trás. A puerilidade de Mifune revela-se nos gestos mais básicos – no seu olhar, na forma de falar, na forma de amuar e ficar um pouco perdida quando se encontra desacompanhada, no dedo que mexe o granizado na taça (é justamente essa puerilidade que torna o erotismo de Mifune especialmente perturbador).
(…) “sede de amar” seria, aliás, um título que teria total cabimento no filme que aqui analisamos, um filme em que partimos da água e à água regressamos sem que as diversas “sedes” sejam saciadas.
O abandono constante de que ela fala, e ao qual diz estar já habituada, não é o abandono de um amante (esse será o tipo de abandono de que Akimoto padece), mas antes o abandono da criança, desde logo pelo pai que partiu, mas também pela mãe que a vende ao traficante de escravas, e pelo próprio Joe que se assumia quase como “tutor” (a venda de que Joe é capaz assume uma gravidade muito mais chocante tendo em conta o laço afectivo que se vinha desenhando entre ambos). Mifune adapta-se ao abandono e aprende a substituir quem parte, desde logo Johnny, que ela vai conseguindo encontrar noutros homens.
O modo como Mifune se cola a Joe como uma sombra, assim somo a sua perseguição desesperada do espectro Johnny, colam a persona de Mifune à Ginnie de Shirley MacLaine em Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958), numa devoção desesperada que não recebe nada em troca. A forma como Ginnie se afeiçoava à almofada, um mero presente de passagem, não é muito diferente do orgulho que Mifune demonstra na sua nova blusa, que se torna peça de vestuário fétiche. A persistência quase ridícula em perseguir o outro estava já, aliás, em Kyônetsu no kisetsu (1960), primeiro filme de Koreyoshi Kurahara, em que Fumiko persegue o seu próprio violador de modo confrangedor, baralhando os papéis de vítima e abusador.
Garasu no Jonî: Yajû no yô ni miete oferece-nos uma visão extremamente fluída e desempoeirada da sexualidade. Se Mifune ama Johnny (um ser não concretizado que vai tomando corpo noutros homens que cruzam o caminho de Mifune), Joe não ama menos Hiroshi. Há uma atracção irresistível que o aproxima do ciclista, é por ele que Joe suspira, sofre e grita, é ele o seu verdadeiro amor. Joe e Mifune estão, aliás, muito próximos nesse amor desmedido, na disponibilidade que demonstram para essa entrega total. Mas também a relação que depois se desenha entre Mifune e Akimoto deixa claro que estas personagens vivem a sua sexualidade escapando ao óbvio, assumindo a relação contornos sadomasoquistas, uma vez que Mifune é atraída pelo homem que justamente queria subjugá-la. É um estudo da sexualidade que Kurahara levará ainda mais longe em Ai no kawaki (1966), numa adaptação de Sede de Amar de Yukio Mishima – “sede de amar” seria, aliás, um título que teria total cabimento no filme que aqui analisamos, um filme em que partimos da água e à água regressamos sem que as diversas “sedes” sejam saciadas.
Mifune cutuca repetidamente a morte, quase sucumbe quando o seu corpo está depositado na linha do comboio, mas mais uma vez será socorrida por um médico que a trará de volta à vida (ainda que sejamos tentados a questionar se ela deseja verdadeiramente essa “vida” ou a “vida” ao lado de Johnny, uma vez que a câmara enquadra o quarto de hospital como uma cela). Novamente ela encontrará as forças necessárias para recuperar e continuar a sua busca por Johnny. Johnny é a casa, o regresso à terra natal, mas Johnny é também a morte. Ela regressará àquela praia que já conhecemos e aí se deposita nos braços do mar, nos braços de Johnny, sorrindo uma derradeira vez e esticando a sua mão para ele (para nós?), num plano em que o seu rosto ocupa a totalidade da tela.
A Joe e Akimoto, que sentiram um chamamento mágico, quase religioso, para irem ao encontro de Mifune, mais não resta do que constatar que é demasiado tarde para corrigir este abandono final. Também em Ukigumo (Nuvens Flutuantes, 1955) o protagonista se apercebia tarde demais de que deveria ter amado a mulher que jazia morta à sua frente. Mas se no filme de Mikio Naruse o corpo não era roubado aos nossos olhos, permitindo ainda que Masayuki Mori pintasse os lábios mortos de Hideko Takamine, já Joe e Akimoto podem apenas levantar-se e laconicamente abandonar a praia, cada um escapando para um lado oposto do plano. Enquanto espectadores, sofremos ainda com a crueldade de sermos roubados de um último vislumbre de Mifune, porque nunca conhecemos o mergulho fatal no mar. Assim sucede noutras mortes do cinema [lembramo-nos, por exemplo, de Interiors (Intimidade, 1978), de Woody Allen], em que a morte é duplamente do irreal – do irreal porque é cinema, do irreal porque não a vemos concretamente. Resta acreditar.