Este texto contém spoilers
Depois do controverso Yingxiong (Herói, 2002), Zhang Yimou prosseguiu a sua incursão no universo wuxia com Shi mian mai fu (O Segredo dos Punhais Voadores, 2004). Não é o melhor filme do grande realizador chinês, mas é uma obra de impressionante beleza que vale a pena (re)ver num ecrã de cinema. Estreou comercialmente em Portugal em 2005, mas passa pela primeira vez na Cinemateca, este mês.
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Yingxiong foi um ponto de viragem na carreira de Zhang Yimou. O realizador já era um dos mais aclamados nomes da Quinta Geração do cinema chinês, autor de filmes premiados internacionalmente que ofereciam olhares incisivos sobre o passado recente (como Hong gaoliang [Milho Vermelho, 1988]; Da hong deng long gao gao gua [Esposas e Concubinas, 1991]; ou Huozhe [To Live, 1994]) e sobre o presente (como Qiu Ju da guansi [The Story of Qiu Ju, 1992] ou Yige dou buneng shao [Nenhum a Menos, 1999]) da China. O que se seguiu a partir de Yingxiong foi um subir da parada em termos de sumptuosidade de produção, mas um notório baixar de risco em termos de perspectiva. De então para cá, Zhang Yimou passou a ser visto quase como um “cineasta do regime”, algo que a sua organização da cerimónia de abertura dos Olímpicos de Pequim em 2008 pareceu confirmar. E se Zhang Yimou continuou a fazer trabalhos bastante interessantes sobre o passado na China, talvez só muito recentemente, com Yi miao zhong (Um Segundo, 2020), tenha conseguido voltar ao cinema que o distinguiu nos anos 1980 e 1990. Ainda assim, filmes seus como Shi mian mai fu são um espectáculo visual bastante conseguido.
Yingxiong tentou cavalgar no sucesso internacional de Wo hu cang long (O Tigre e o Dragão, 2000) de Ang Lee, que iniciou um renascimento do wuxia como género cinematográfico com novas ambições de sucesso internacional. Contudo, Yingxiong gerou reações extremadas de amor e ódio, algumas das críticas caracterizando-o mesmo de “fascista”. Shi mian mai fu é, tal como Yingxiong, um wuxia “histórico”, situando a narrativa de ficção num local e tempo reais, desta feita Fengtian, no nordeste chinês, no final da dinastia Tang, mas esse contexto tem, no geral, relativamente pouca relevância.
Intertítulos iniciais informam o espectador de que se trata de um período conturbado, com um imperador incompetente e um governo corrupto. Em oposição está um grupo clandestino, o “Clã dos Punhais Voadores”. É nessa luta entre forças da autoridade e rebeldes que se desenrola a acção de Shi mian mai fu. O título original quer dizer “emboscada por dez lados”, que é também o título de uma composição musical clássica chinesa sobre uma batalha travada vários séculos antes da dinastia Tang. O conceito de “emboscada” é, de facto, apropriado, sendo sugestivo não só do plot de agentes infiltrados nos dois lados, como também de algumas das cenas mais espectaculares do filme, com armadilhas de vária ordem.
O conceito de “emboscada” é sugestivo não só do plot de agentes infiltrados nos dois lados, como também de algumas das cenas mais espectaculares do filme.
Os jogos de nomes não acabam aqui. As duas personagens masculinas centrais são o capitão Liu (Andy Lau) e o capitão Jin (Takeshi Kaneshiro). Liu e Jin são os apelidos em mandarim dos dois actores. Aos dois acrescente-se a mais impressionante figura do filme, Mei (Zhang Ziyi), que ambos amam e que os ama aos dois. Zhang Ziyi tinha dado corpo à exímia Jen em Wo hu cang long e regressa aqui à personagem da jovem (a sua personagem identifica-se como Xiao Mei, “pequena irmã mais nova”) que, por detrás da aparência de fragilidade (é até, inicialmente, apresentada como sendo cega), esconde um magnífico talento de artes marciais. Não é a única mulher que não é o que parece. A madame do bordel onde Mei trabalha é na verdade a líder dos rebeldes. Embora com personagens femininas bastante fortes, o filme fica aquém de Wo hu cang long. Haveria inicialmente uma outra protagonista feminina, um papel feito para Anita Mui, cantora e actriz de Hong Kong. Só que Mui não pôde filmar, por se encontrar gravemente doente, e o argumento foi reescrito. Anita Mui morreria em 2003 e Shi mian mai fu é dedicado à sua memória.
Mesmo sem Anita Mui, o trio de protagonistas é estelar. Andy Lau, de Hong Kong, e o taiwanês-japonês Takeshi Kaneshiro são superestrelas do cinema e da música (e encontrar-se-iam pouco depois em Tou mingzhuang [Warlords – Irmãos de Sangue, 2007], de Peter Chan, também com Jet Li). Já Zhang Ziyi, da China continental, confirmava aqui o seu estatuto de importantíssima actriz de alcance internacional, tendo brilhando, entre outros filmes, em alguns dos wuxia mais conhecidos dos anos 2000 (incluindo Yingxiong).
Em Shi mian mai fu, acompanhamos as tentativas de Liu e Jin chegarem à chefia do Clã dos Punhais Voadores através de Mei. Jin finge fugir com Mei para se infiltrar no grupo de rebeldes, mas pelo caminho apaixona-se por ela. Já Liu, sabemos depois, é ele próprio um infiltrado nas forças governamentais, e um antigo amor de Mei. Em diferentes momentos, os pares Liu e Jin, Jin e Mei, e Mei e Liu parecem ser aliados, mas essa aparência é depois tornada mais contraditória pelas voltas da história. Talvez procurando alguma distância das leituras mais críticas de Yingxiong, aqui é a história de amor que ocupa o local central. O enlevo das traições amorosas sobrepõe-se ao ressentimento de traições políticas. Ainda assim, descortina-se uma ambiguidade bastante interessante na representação do confronto entre rebeldes e soldados. Contudo, a narrativa simples de Shi mian mai fu não agradou a todos e algum público e críticos chineses terão criticado a superficialidade do filme, considerado algo oco apesar do aparato estilístico (e publicitário).
Se é verdade que aqui falta a densidade que Hou Hsiao-hsien imprimiria quase dez anos depois ao seu wuxia passado na dinastia Tang, Nie Yinniang (A Assassina, 2015), Shi mian mai fu não é certamente um mau filme. Pegando no poema cantado em dois momentos importantes do filme, sobre uma mulher de beleza extraordinária capaz de destruir nações, podemos ver tudo como um jogo de ritmo combinando beleza e destruição.
Falando em emboscadas e em jogos: as cenas em torno destes estão precisamente entre as mais virtuosas do filme. Logo de início, o jogo de ecos entre Liu e Mei no bordel – depois replicado na floresta com as suas posições invertidas – é um prodígio de fotografia, montagem, coreografia e guarda-roupa. A fuga-luta-bailado pela floresta de bambu, feita de verdes-sombra contrastando com as cores garridas das cenas do bordel, é outro momento particularmente impressionante. Mas Zhang Yimou consegue ir mais longe, no confronto final em que os punhais voadores, que atravessam o ecrã durante o filme em danças de câmara lenta, são agora lançados entre o trio, num clímax mortífero de sangue, lágrimas e neve. Tudo isto em paisagens esplendorosas, filmadas não no nordeste da China, mas numa floresta de bambu de uma montanha em Chongqing e num parque natural na Ucrânia (onde um súbito nevão permitiu as espectaculares cenas finais).
Se os locais de rodagem sugerem uma produção internacional, essa dimensão é confirmada pelo trabalho de pós-produção na Austrália, de som no Japão, e na banda sonora – do compositor japonês Shigeru Umebayashi (que, entre muita outra coisa, assinou a partitura de Faa yeung nin wa [Disponível para Amar, 2000] de Wong Kar-wai) à canção dos créditos finais, “Lovers”, cantado em inglês pela soprano americana Kathleen Battle. Este esforço de criar um wuxia que apela a um público global pode ter afastado alguns puristas, mas é um dos aspectos mais interessantes do filme.
Shi mian mai fu é um trabalho importante para se compreender a internacionalização do cinema chinês nos anos 2000, e marcou um certo “regresso” do wuxia à China continental, depois de ter sido um género proibido nos anos 1920-1930 e tendo em conta que os grandes wuxia dos anos 1960-1970 foram produzidos em Hong Kong e Taiwan. Estas complexas ligações China continental-Hong Kong-Taiwan são, de certa forma, algo a que o trio magnífico de actores parece aludir pela sua mera presença.