Numa cena de Dekalog I (O Decálogo I: Amarás a Deus sobre todas as coisas, 1989), o pequeno Pawel interpela o pai, Krzysztof, sobre a natureza da vida: “Por que é que as pessoas morrem?”. Krzysztof, orientado pela lógica e pela racionalidade, responde: “Depende. De ataque cardíaco, cancro, acidentes, velhice”. Pawel insiste e reformula a questão: “Quer dizer, o que é a morte?”. Krzysztof, mantendo a postura objetiva e científica, explica: “O coração para de bombear, o sangue não chega ao cérebro, tudo para”. Movido pela curiosidade e pela inquietação, Pawel continua e questiona: “O que resta?”. “Tudo o que fizeres. A recordação de tudo o que fizeste, de ti como pessoa. As memórias são muito importantes. Lembras-te de uma pessoa que andava de um modo estranho, ou que era um homem bom. Lembras-te do seu rosto, do seu sorriso (…)”, faz-se ouvir, por fim, Krzysztof.
Partimos da Polónia de Krzysztof Kieślowski até à Bélgica de Chantal Akerman com o objetivo de incidir o olhar sobre Uma Família em Bruxelas. Originalmente publicado em 1998, pela L’Arche Editeur & Agence Théâtrale, o livro da autoria da cineasta belga conheceu, no passado mês de Maio, uma nova edição, ao ser lançado pela primeira vez em Portugal, pela editor BCF. Chantal Akerman conta-nos a história de uma mulher solitária, que vive em Bruxelas, e que ficou, recentemente, viúva. Mãe de duas filhas, uma delas residente em Paris, no bairro de Ménilmontant, a outra habitante “quase” na América do Sul. Também distante dos restantes familiares, dispersos por diversas partes do mundo, a mulher procura preservar as suas relações interpessoais através do contacto por chamadas telefónicas. Esta mulher – cujo nome não é revelado – personifica Natalia Akerman, mãe de Chantal – figura central em muitos dos seus filmes – e cujo passado enquanto sobrevivente de Auschwitz não é, também aqui, esquecido.
Puxando a fita atrás, recuperar a cena particular do primeiro filme de Dekalog não foi obra do acaso. Nas primeiras linhas de Uma Família em Bruxelas, a componente imagética e visual que ecoam nas palavras da Akerman, espelhada na forma como a mulher recorda o companheiro, lembra o diálogo entre Pawel e Krzysztof:
O marido era um homem divertido à sua maneira. Sim nem sempre mas às vezes. Quando se fala temos vontade de sorrir e até mesmo de rir porque à sua maneira ele tinha graça. Tinha um rosto redondo e um bigode. Não era isso que era engraçado mas a maneira como falava quando estava tudo bem, falava e sem mais nem menos tinha graça.
Os passeios de carro até ao bosque, acompanhada por ele e pelas duas filhas, “seguindo os trilhos do elétrico” para evitar desvios no caminho, ou ainda as incontáveis ocasiões em que era alertada para não fumar em demasia, são também memórias ternamente recordadas.
Apresentando-se a partir de uma fusão entre a ficção e a autobiografia, narrado, sobretudo, sob a forma de monólogo, o livro de Chantal Akerman espelha, parece-nos, o seu universo cinematográfico, os seus padrões de referência e a sua singularidade. Recuperemos, a propósito, os documentários News From Home (1977) e No Home Movie (2015), em que, à semelhança de Uma Família em Bruxelas, o espectador se debate com a distância física que, através das mais variadas formas de comunicação, permite a preservação dos vínculos afetivos e emocionais.
Se em Uma Família em Bruxelas se evidenciam as chamadas telefónicas, em News From Home (1977) percorremos Nova Iorque à boleia da voz off da realizadora, que nos lê as cartas que a mãe lhe escrevera aquando da sua passagem pela cidade norte-americana, entre 1971 e 1973, tendo como pano de fundo os planos, as paisagens, o quotidiano e o mundano citadino captado pela lente de Akerman. Por sua vez, em No Home Movie (2015) acompanhamos as conversas estabelecidas não só, mas também, por videochamada, entre a mãe e a filha, através de uma pequena e leve câmara digital, sempre direcionada, pelas mãos da realizadora, para o seu computador. A determinado momento, quando Natalia questiona a filha sobre a razão pela qual se encontra a ser filmada, Chantal responde: “Porque eu quero mostrar-te que não existe distância no mundo. Tu estás em Bruxelas e eu estou em Oklahoma. Não há mais distâncias” – alusão às potencialidades e possibilidades do ciberespaço em proporcionar encontros como aquele. O registo minimalista e a exposição intimista, primazia de Akerman na procura pela verdade e autenticidade, assumem uma dimensão ímpar quando enquadrados no contexto de que as filmagens do No Home Movie (2015) acompanharam os momentos finais de vida de Natalia.
Indissociável escrever sobre Chantal Akerman e não recordar Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). O retrato cru da alienação social, apresentado a partir da rotina automatizada e mecanizada de uma dona de casa, exposto a partir de uma gestão do tempo e do espaço invulgares, remete para uma repetição visual dupla e complementar: a reprodução dos planos que, uma vez centrados em captar exaustivamente a reprodução das tarefas domésticas, acabam por se repetir a si mesmos, tornando-se num labirinto que, parecendo não ter fim, se prolonga e arrasta, causando no espectador a sensação de desconforto. Mas a confrontação com a ideia de repetição, por parte de Akerman, não se esgota na imagem.
Em News From Home (1977) e Uma Família em Bruxelas, a repetição verbal assume um poder significativo. Na longa-metragem, ouvimos, recorrentemente, Natalia a pedir a Chantal para que a correspondência por cartas não terminasse: “Escreva em breve”; “Continue a escrever”; “Estou feliz que tudo esteja a correr bem, mas escreva com mais frequência”; “Querida filha, a sua resposta demorou a chegar. Por favor, não deixe passar tanto tempo. As suas cartas são importantes para mim”. No livro, a repetição evidenciada assenta no uso de uma mesma expressão, mas enquadrada em contextos distintos e com conotações opostas. Por um lado, recordando a gentileza com que lhe fala um dos seus familiares, por outro, atravessando-se-lhe na memória a angústia da morte do marido:
Tem tanto humor este homem que por vezes ela não percebe se é humor ou não mas como sabe que ele tem humor toma isso por humor e ri com todo o coração e abraça toda a gente e beija toda a gente e isso até aquece os ossos.
Quase todos os familiares chegados vieram, as duas irmãs do meu marido com os seus maridos e os seus filhos, toda a gente estava lá excepto os que vivem junto ao mar. E abraçámo-nos e beijámo-nos mas isso não aquecia os ossos. Enfim, como era preciso.
Uma Família em Bruxelas, “um livro pequeno, escrito com palavras vulgares que se repetem”, conclui-se no posfácio escrita pela também tradutora Cristina Fernandes, interpela, essencialmente, pela minúcia, pelo ritmo e pela sensibilidade – elementos que cimentaram o cinema e a filmografia de Chantal Akerman.
Ela regista os rituais e as palavras da mãe mesmo quando não são de esclarecimento, mas de sombra à espera de abrir uma brecha nesse silêncio opressor, e a verdade é que há qualquer coisa que cede, um movimento, uma comoção. E tudo aquilo que não é nomeado surge sem forma precisa e causa espanto.