É uma choldraboldra do camandro; um action movie passado dos carretos! É como se D.O.A. (Com as Horas Contadas, 1949) e Dark Passage (O Prisioneiro do Passado, 1947), dois clássicos do film noir, se estampassem de frente com o espírito e a letra da obra chamada G.T.A. – sim, sim, o videojogo super-violento que marca gerações mais ou menos desde a passagem para o novo milénio – e os videoclipes e estilo musical da banda Limp Bizkit – sim, essa que traumatizou gerações mais ou menos desde o infame “Woodstock 99”, acontecimento white trash que marca o fim de um certo statu quo na cena musical americana. É rude, misógino, repleto de estereótipos mais ou menos indecorosos e, acima de tudo, tem orgulho em ser tudo isso. Mas é assim, tão ruidosa e velozmente, que quase não temos tempo de processar nada. Ao mesmo tempo, obedece à lei, porventura estapafúrdia, de que ofendendo toda a gente, não se está, na prática, a ofender ninguém. Ora, Crank coloca-nos no lugar do espectador-paciente alvo de uma “operação Ludovico” em que o efeito primordial é a velocidade das imagens ou o nosso choque 24 frames por segundo perante este mundo à beira da implosão. Rajadas de mau gosto e má educação audiovisual, que não dão tempo para pensarmos, apenas para reagirmos, tomados pelo espanto ou pelo choque – se de facto passamos por tudo isto (eu passo…), então, o que faz deste título, que lançou o nome da dupla Neveldine & Taylor (constituída para este filme) para as alturas mais íngremes do cinema mainstream de acção, um “filme a recuperar” volvidos mais de quinze anos sobre a sua estreia comercial?

Começo por responder à questão dizendo o seguinte: recupero-o aqui e agora, e não tenho vergonha disso. Reconsidero-o, acima de tudo, devido ao facto de tudo (a diversão mais inane, inclusive) nascer da sua premissa ou linha narrativa, e dela não se desviar um milímetro: como um Speed (Speed – Perigo a Alta Velocidade, 1994) puramente orgânico (no corpo), o protagonista interpretado por Jason Statham (quando este ainda se afirmava como a mais quente figura de acção em Hollywood) – um assassino profissional que diz à namorada ser programador de videojogos – não pode parar, senão morre. Uma condição imposta pelo facto de ter sido envenenado por uma substância sintética de fabrico chinês, fatal para o homem comum, mas não para Chev Chelios. A única coisa que mantém vivo este corpo-máquina-de-matar é a adrenalina, mas só se for servida em doses crescentes e cavalares. A ironia (política, pois) é que a possibilidade de sobrevivência começa por depender do mais alto grau de consumo de tudo o que o protagonista encontra no mercado, de preferência, com muito açúcar e cafeína, equivalendo ao consumo propriamente de produtos (muitos deles, surripiados à força) uma conduta destravada que redunda na prática de uma vasta gama – e de um game sem fim – de crimes graves (como o dito videojogo), montados entre si pela ideia de “mais, mais e mais, e ainda não é suficiente…” porque, em matéria desse coração que ainda bate (o músculo, não o “símbolo” romântico, que aqui é alvo da mais bombástica paródia), “more is more” ao cubo.
Neveldine & Taylor fizeram de Crank o seu laboratório para a criação de um cinema speedado, puxado pela “panca” (crank) mais básica – a de estarmos vivos e trabalharmos, activamente, para assim nos mantermos. Tudo o que se desvia dessa linha essencial de sobrevivência – governada e conduzida (em total excesso de velocidade e ultrapassagem de todas as leis) – não entra aqui, nesta obra que tritura tudo o que são tempos fílmicos, em benefício de qualquer coisa mais “excitante”, como os “destempos” da publicidade, dos videoclipes e, acima de tudo, dos videojogos [os dois realizadores levariam ainda mais longe esta relação com o mundo virtual no também subestimado Gamer (Jogo, 2009)]. Não é justo que alguma crítica negativa (e muitas houve e há) a Crank possam incluir alguma forma de reparo quanto à transparência das intenções dos seus realizadores, pois tudo é clara e puramente desbragado desde o primeiro instante, não se escondendo nada no processo hipertrófico de exposição (e de explosão) dramática. A dupla de realizadores rapidamente nos coloca no lugar pretendido, fazendo com que cada segundo de filme seja visto – e sentido, na pele, quer dizer, na “superfície do olho” – como uma oportunidade para concentrar efeitos: montagem aceleradíssima, acção incorrendo em constantes flashbacks e flashforwards, cores saturadas e repletas de filtros alternados com algum preto-e-branco, vertigem kinética interrompida, subitamente, por freeze-frames que só estão lá para sublinhar o incessante e inegociável frenesim áudio-visual, etc. e etc.
Chocante, eléctrico e sempre desconfortável – afinal de contas, onde pára hoje esta Hollywood desmiolada e corajosa?
As acções do protagonista geram situações cada vez mais grotescas, embrenhando-o – e embrenhando-nos – no território do impensável – talvez a culminação desta epopeia histérica seja mesmo a cena em que o protagonista só tem a amada (uma espécie de barbie mais ou menos alienada) para se “electrizar”, precipitando o acto sexual em plena praça pública (“I’m alive!”, grita enquanto consome o acto), para espanto e também entusiasmo da multidão de mirones. Ou então atingimos mesmo o pico do delírio frenético ou kinético quando, paradoxalmente, a personagem finalmente pára, “sossega” e faz uma chamada para a sua namorada… só que fá-lo em vertiginosa queda de um helicóptero. Um fallen man e um filme, também ele, em queda, verificando como o máximo da velocidade acontece na iminência do mergulho final no duro asfalto. Mas não foi preciso termos visto o ainda mais demencial (é possível?) Crank: High Voltage (Crank 2: Alta Voltagem, 2009) para sabermos que este corpo-cuja-narrativa-é-a-sua-acção-desassossegada-no-sentido-da-sobrevivência não se apagará de jeito nenhum.
A dado ponto, é o próprio médico e amigo de Chev Chellios, este (anti-)herói que faz da ausência de descanso uma ética de vida ou sobrevida, que lhe pergunta se não será melhor, para si e para todos, muito simplesmente deixar-se ir, morrendo de maneira condigna. É como se o próprio filme se comentasse a si mesmo através da simples interrogação: percebemos que viver (e navegar, como diz o outro) é preciso, mas… a que preço? A sobrevivência custará a vida de inúmeras pessoas (algumas inocentes? Com certeza) e até eventualmente a relação com a sua namorada (uma boneca aparvalhada, mas o amor é cego e arde sem se ver). Neveldine & Taylor querem-nos ver a torcer pelo mais amoral (amoralidade nunca extenuada, sempre renovada) dos heróis de acção. Era mesmo precisa uma dupla – daquelas que seriam inventadas se não existissem – para criar, como que em laboratório, uma personagem destas, fazendo-nos apreciar – qual gozo proibido – as diferentes formas de como o corpo humano pode enfrentar o paroxismo da imoralidade, da biologia e da própria física! E assimilar, quer dizer, reconverter este embate metafísico em força bruta, viva, mundana e viril.

Permanecemos agarrados à cadeira, ou afundados nela, com as mãos no rosto, embaraçados com a kinesis que se gera e que também contagia o nosso corpo (e espírito), porque precisamos (como o protagonista precisa de mais, mais e mais adrenalina) de saber como é que o filme se aguenta, como é que suporta tamanha economia de excessos, situação após situação. É aqui que é preciso reconhecer o alto mérito desta dupla que, à laia de um Marco Ferreri [o realizador de La Grande Bouffe (A Grande Farra, 1973)] do 2.0 ou da era MTV, o canal dos reality shows e que partia, impante, numa certa estética da decadência e da estupidez mais americana (quase que me apetece dizer que nem mesmo neste ponto Harmony Korine foi tão longe quanto foram Neveldine & Taylor em Crank), produziu um tratado absolutamente pertinente sobre a possibilidade/impossibilidade de erradicarmos qualquer réstia de moralidade depois de assimilarmos as forças nocivas e venenosas formadoras deste ecossistema multimediático que, afinal, nos define.
Voltando a Ferreri ou se calhar invocando uma fábula pós-platónica como Themroc (Regresso às Cavernas, 1973) de Claude Faraldo, Crank faz-nos reconhecer a nós mesmos numa nova condição de “Homens primitivos”. Se a operação Ludovico, de facto, tem lugar na relação corpo-a-corpo com este objecto instável, então, sim: Crank fez o seu trabalho, convertendo-se, apesar do seu mau gosto, apesar de si e de nós mesmos, aqueles que se divertem com tamanha barbariedade…, num necessário veneno (auto-)crítico a ser passado ao próximo primata multimediático ou “vizinho cinéfilo”. Passemo-lo! Partilhemo-lo de preferência com um vizinho que saiba apreciar os mais exigentes exercícios de mau gosto ou – e Crank é, a meu ver, a última verdadeira droga dura a sair do mainstream americano [com menção honrosa para Hardcore Henry (2015) de Ilya Naishuller] – os melhores exemplares provenientes de um cinema pós-sintetético, ultra-violento, rude, mas sem medo de existir e, por isso e ulteriormente, cheio de veneno crítico. Chocante, eléctrico e sempre desconfortável – afinal de contas, onde pára hoje esta Hollywood desmiolada e corajosa?