A catarse é a base de toda a arte. Isto é particularmente verdadeiro para os filmes de terror, porque nos aproximam do primordial. Todos nos preparamos para os desafios que podemos antecipar. É apenas quando imperativos culturais requerem que evitemos a discussão de coisas, como a morte e o envelhecimento, que o impulso é suprimido. A arte é uma das formas que o homem encontrou de lidar com este confronto e o cinema também pode fazê-lo. Enfrentamos assim as coisas num contexto relativamente seguro.
David Cronenberg
A primeira sequência de The Brood (A Ninhada, 1979) coloca num pequeno palco o Dr. Hal Raglan (Oliver Reed) a contracenar com Mike Trellan (Gary McKeehan), que interpreta o filho do médico, a quem este diz continuamente que deveria ter nascido rapariga, procurando exibir as suas fragilidades. Algo transversal à obra de Cronenberg, a sequência está a meio de caminho entre a demonstração científica, a terapia e a catarse que advêm da encenação de um drama. Mike evita o olhar daquele pai postiço, um pai fornecido pela ciência como veremos, enquanto diz que o odeia, mesmo que não consiga evitar amá-lo; até que Mike retira a roupa e observamos no seu corpo o rebentar de pústulas, uma erupção, de dentro para fora, resultado daquela confrontação, esgrimida para tornar visível a patologia latente do doente. Como assinala Cris Rodley, Cronenberg revisita Stereo (1969), a primeira longa, numa narrativa conduzida por uma “telepatia problemática”, no “esforço incompreendido da ciência médica para permitir o processo evolutivo”, que promova a transformação, a mutação como resultado da “capacidade de resposta autónoma do corpo”.

Pouco depois, identificaremos o outro elemento do triângulo protagonistas: Nola Carveth (Samantha Eggar), esposa de Frank (Art Hindle), que está internada na clínica gerida pelo Raglan de Oliver Reed. Em visita à clinica Somafree (curioso nome, que aponta para a droga da felicidade de Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley), Frank conflitua com o psiquiatra, para lhe dizer que a filha deixará de visitar Nola na clínica aos fins de semana, pois tem o corpo arranhado e mordido. Na cena seguinte, numa conversa com um amigo, Frank refere-se à psicoplasmia, a especialidade desenvolvida por Raglan, como um espectáculo de feira.
O filme assumiu-se como uma terapia psiquiátrica para o realizador, a sua vida no laboratório, na descida ao “verdadeiro pesadelo, à horrífica vida interior daquela situação”.
Cronenberg assumiu que The Brood é a sua versão de Kramer vs Kramer (Kramer contra Kramer, 1979), que ele considerava “adocicado”, “falso emocionalmente”. Nessa tentativa, então, de trazer o conflito conjugal para a realidade, o cineasta confessa as semelhanças entre Samantha Eggar e a sua ex-mulher, sendo que ele é também muito parecido com o marido. Era um filme que ele precisava de fazer, uma catarse saída da disputa pela guarda de Cassandra, filha do seu primeiro casamento. Cronenberg recebeu uma chamada da ex-mulher, de quem acabara de se separar, a informá-lo de que decidira, por razões religiosas, ir viver com uma comunidade na Califórnia e que levaria Cassandra com ela. Ele passaria, então, a ver a filha no natal. Com a viagem planeada para o dia seguinte, Cronenberg que dividia a guarda da filha, dirigiu-se à escola e raptou Cassandra. Segundo o realizador, a ex-mulher estaria a infernizar a sua vida e a da filha. Cronenberg conseguiu uma ordem do tribunal que impediu que Cassandra viajasse, e a mãe acabou por partir sozinha.
O filme assumiu-se como uma terapia psiquiátrica para o realizador, a sua vida no laboratório, na descida ao “verdadeiro pesadelo, à horrífica vida interior daquela situação”. Por isso, The Brood é explosivo; se ambicionasse outra maturação, seria outro filme, mas não “suficientemente catártico”. The Brood é também o seu “mais clássico filme de terror”: “a estrutura circular, a ideia de que está terminado e de repente apercebemo-nos de que está a recomeçar”. Mas a existência de material autobiográfico propicia uma “compulsão” para “enfiar no filme o que realmente aconteceu”: “queremos que a personagem diga exactamente aquela linha” de diálogo que participou da “nossa vida”. Por isso, foi necessário um trabalho redobrado de reescrita do guião. Cronenberg não quis escapar do lugar comum de que “tudo o que fazemos é autobiográfico, no sentido de que é filtrado através das nossas experiências e sensibilidades”. Mas isso nem sempre é bem compreendido, até porque também considera The Fly (A Mosca, 1986) e Dead Rigers (Irmãos Inseparáveis, 1988) autobiográficos, mas de natureza mais subtil, pois The Brood acentua, devido à “proximidade autobiográfica”, os ingredientes melodramáticos. No entanto, atendendo a que o cineasta trabalha no território das metáforas, é “uma falência da imaginação” intuir que aquelas personagens se inscreveram literalmente na sua vida real, em algum lugar sequer próximo da “sua biografia em termos estritos”.

O diálogo de Frank com a mãe de Nola, introduz as marcas do tempo, não um tempo circunscrito pelo cronos, mas antes um tempo ballardiano, de raízes remotas, que fará com que algumas das personagens carreguem um passado oculto. A conversa também induz o carácter falível das instituições, que participam da construção de um passado de embustes e de culpa, como o matrimónio: instituições obsoletas, que não acompanham as transformações do corpo, motivadas pela ciência, e que por isso padecem de remendos. Pouco depois, a avô alcoólica partilha com Candy (a filha de Frank, de cinco anos) que também no corpo de criança de Nola despontavam marcas, como se aquelas erupções da anatomia fossem uma herança inescapável. Candy encontrará pouco depois a avó morta, atacada por uma criança de estatura semelhante à da neta.
Esta denúncia da culpa voltará ao filme, com o mesmo palco, aquela casa, que assume como num filme de terror clássico a condição de personagem, ao concentrar um passado obscuro, numa história que se repete. O alvo do segundo castigo é o avô de Candy, assassinado pela mesma criança, espécie de aberração, que depois de capturada, acabará por morrer. A descrição da criatura, estudada em laboratório, concretiza uma imagética da culpa: apresentava uns olhos estranhos, com íris, mas sem retina, o que indicava uma visão do mundo distorcida e a preto e branco; uma língua demasiado espessa e incapaz de produzir um discurso (uma ausência de linguagem); apesar de não ter dentes, apresentava uma gengiva dura, em forma de bico. Esta caracterização apontava para uma origem primitiva da criatura, pois para lá da ausência de órgãos sexuais, não dispunha de umbigo, o que significa que não tivera um nascimento humano ortodoxo. A razão da morte é também subtil e intrigante. Possuía uma bolsa de gás, que depois de totalmente assimilado conduzia à sua morte. É como se dispusesse de um reservatório de fúria, uma metáfora para a energia necessária para cumprir uma missão, no acerto de contas com o passado.
Às metáforas para um passado a que não se escapa, a memórias latentes e às heranças e convenções familiares, a narrativa de Cronenberg responde com as transformações do corpo. Raglan, apesar de parecer uma espécie de curandeiro moderno, usa a ciência e os seus métodos de forma virtuosa, para auxiliar e metamorfosear Nora. O médico transfigura-se nas sessões em vários personagens, desdobra-se na mãe, no pai, na própria Nola, como uma peça de teatro, numa dramaturgia em construção para encontrar o enredo certo que cure Nola. Pouco depois, conheceremos uma expressão dos métodos de Raglan, no encontro de Frank com Jan Hartog (Robert Silverman), que alega danos fisiológicos, para lá de psicológicos, resultantes da terapia. O seu corpo terá produzido um cancro linfático, expresso nuns gânglios no pescoço de Hartog. Segundo ele, Raglan encorajou o seu corpo a transformar-se. E o corpo revoltou-se. Agora, tem uma pequena revolução em mãos, concluirá. É neste contexto que surge pela primeira vez o livro de Raglan: The Shape of Range.

Cronenberg afirma que ainda estamos agarrados à “velha divisão cartesiana” entre corpo e mente, impossibilitados de perspectivar uma fusão. O cineasta explica essa separação, em algo transversal a várias culturas, na tentativa de encontrar uma continuação para a mente (ou para o espírito) depois do corpo colapsar. Essa “nova fase da nossa evolução”, que será a princípio “física”, poderá ser acelerada por algo que aconteça no planeta, como um desastre nuclear, que propicie “essa evolução natural”: “nós parecemos destinados a tudo adulterar e isso ser-nos-á devolvido e contribuirá para a nossa mudança”. O conceito de The Shape of Rage e da psicoplasmia partiu das erupções cutâneas (que afectam pessoas sob pressão psicológica), esticado para a ideia de cancro criativo: “algo que vemos normalmente como uma doença e que pode avançar para outro nível de criatividade e começar a esculpir o nosso próprio corpo”.
O cineasta aproxima a carne (o corpo humano) a uma ideia de colónia, um território “impertinente” que se bate pela “autonomia”, o que é entendido como algo “perverso”, uma “traição”, como nas revoluções que imprimem a libertação das colónias ocupadas pelos impérios colonizadores. A libertação do corpo nos seus filmes pode ser entendida como algo que se separou do parceiro e que desse modo “pode ser mais valioso, ao invés de ser dominado”. Por isso, as personagens referem-se às transformações do seu corpo como um processo revolucionário: “é a independência do corpo, relativamente à mente, e a dificuldade da mente em aceitar que a revolução pode vincular-se”. A versão mais acessível do “long live the new flesh” proposto pelo protagonista de Videodrome (Experiência Alucinante, 1983), seria o desenvolvimento da capacidade para produzirmos mudanças no nosso corpo. Não apenas as mudanças que resultam de cirurgias e do uso da tecnologia (como os óculos), mas “uma mutação”, como no “desenvolvimento de um outro braço”, de novos órgãos sexuais, que “dariam prazer” muito para lá da ideia de sexo e que poderiam “esbater a distinção entre macho e fêmea” e contribuir para “criaturas menos polarizadas, mais coordenadas”. Não se trata de operações de transsexuais, antes “obter uma mutação física” ditada pela “força de vontade, mesmo que demorássemos cinco anos a completar a mutação”.

É necessário, continua Cronenberg, compreender o ponto de vista da doença e dos seus agentes, para reapreciar o processo. Os vírus e as bactérias estão apenas “a fazer o seu trabalho”, “a viver as suas vidas”, “o facto de estarem a destruir-nos ao fazê-lo não é da sua culpa”. Por isso, propõe que estabeleçamos a doença como um conjunto de “inter-relações entre organismos” que libertem o processo dessa “conotação negativa”, pois para esses agentes “é um triunfo”, “quando tomam contam do nosso corpo e nos destroem”. É uma tentativa, então, de “reverter o normal entendimento do que realmente se passa fisicamente, psicologicamente e biologicamente connosco”, com os nossos corpos. Estes conceitos encaminham-se para o âmago da obra do cineasta: o entendimento do envelhecimento e da morte como uma transformação. Exemplifica com as personagens de Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975), que durante o processo ainda experienciam o horror, pois são “membros da classe média, da geração dos arranha-céus”. Mas a identificação com eles, acontece com Cronenberg, “depois de eles serem infectados”. Apesar de resistirem durante o processo, de espernearem, revelam-se “belos no final”, “não parecem doentes nem terríveis”. Algo semelhante acontece em The Fly (A Mosca, 1986). Numa primeira abordagem, o envelhecimento e a doença não são fáceis de acomodar nos padrões do nosso sentido estético. Mas podemos encontrar beleza num rosto envelhecido, “nas costuras estranhas de um rosto”. Devemos enfrentar esse processo, estabelecer empatia. Afinal, aquele homem envelhecido, ou “aquele jovem tomado pelo cancro”, existem, e têm de “olhar para si mesmos”.
Tal como sucede em grande parte da obra de Cronenberg, a clínica, o espaço médico e de investigação científica, é o lugar decisivo do filme. Oliver Reed compõe exemplarmente a figura do cientista, na ambiguidade entre o compromisso com a ciência e os seus doentes, mas com desenvoltura para se dividir entre o alienado e o investigador, o louco e o artista criativo. Chegam ao espectador os primeiros indícios de que Raglan não controla o processo, no que se refere à sua paciente principal: Nola, a abelha-mestra, como outro doente a designará. O psiquiatra está à procura de uma solução, combinando uma relação com a paciente que roça o afectivo. Nola é, então, o exemplar mais sofisticado das suas teorias, com uma invulgar capacidade de projectar a fúria. Raglan fica enredado nas suas experiências, arrastado pela ambição das transformações, de corpos que se expressam num trabalho no qual revela uma verdadeira crença na virtude de desbloquear recalcamentos e castrações. No entanto, o psiquiatra revelar-se-á incapaz de conter e ministrar a experiência, onde Nola revela a intencionalidade de gerar criaturas (idênticas às que assassinaram os seus pais), como um fruto da sua ira, motivadas pela sua fúria, que deambula entre o consciente e o inconsciente, a vigília e o sonho (um plano de uma parede de uma habitação anterior de Nola juntava fotografias de Raglan e de Freud).

The Brood é atravessado por um novelo de metáforas. As criaturas, as aberrações geradas por Nola, quando colocadas de costas sob um plano picado (uma ameaça saída do vocabulário do cinema de terror), recordam-nos as crianças loiras e letais de John Carpenter em Village of the Damned (A Cidade dos Malditos, 1995), cumprindo uma imagética onde a criança é uma figuração simultânea da inocência e da rebelião, do ajuste de contas com histórias passadas. No exercício benévolo da ciência, Raglan procura atenuar os danos e auxiliar Frank no resgate de Candy. Ele deverá convencer Nola de que voltarão a viver juntos, pois se ela estiver feliz e calma a sua fúria dissipar-se-á e as criaturas ficarão desligadas. É uma encenação para restabelecer as convenções e consertar o matrimónio numa cena que se desenrolará no sótão, que também aponta para um espaço que codifica a ocultação de memórias e de traumas.
O cineasta diz que tem de “mostrar as coisas porque ele está a mostrar algo que as pessoas não podem conceber, que não são comuns ocorrências da imaginação”. Se fosse uma questão de “mostrar alguém a ser alvejado ou a cortar as goelas, podíamos fazê-lo fora de campo e a assistência aproximava-se da ideia do que tinha acontecido”. São, então, imagens que dão “uma presença física à ideia de que há coisas a acontecer dentro de nós”.
A resolução de The Brood faz-se, então, no reencontro de Nola com Frank. A mulher pergunta ao anterior companheiro se ele está mesmo preparado para se envolver com ela, pois ela está no meio de uma estranha aventura. Ela mira-o e pede-lhe para observar, enquanto levanta o vestido e se expõe: do seu corpo, está dependurado uma espécie de feto no exterior do abdómen. A posição de Nola imita a de uma cadela prestes a parir, a soltar um dos membros da sua ninhada. É uma transformação em duas direcções: no sentido primordial, como um animal de quatro patas, no sentido do sofisticado, com alterações provocadas no corpo pelo livre-arbítrio, pela vontade expressa. Frank não consegue evitar olhá-la com repulsa. Cronenberg fala de Nola como “uma estranha, intensa e imobilizada personagem”, que expressa a sua revolta “para lá de certas categorias morais”, apenas “pura raiva”, o que resulta no despontar de uma criatura da “era primordial, quase fetal, quase sem forma”. São, então, criaturas que promovem a fusão da mente com a carne para a libertarem de convenções obsoletas, no resgate de um mundo antigo e redentor, um produto do “inconsciente”: “encarnações da revolta, cólera, culpa e desapontamento”.

Cronenberg olha para o filme como uma “alegoria que se torna bastante realista”, que conhece o clímax quando Nola rasga aquela espécie de placenta exterior ao corpo, liberta a criatura ensanguentada e lambe-a, perante o horror de Frank. É uma imagem que segundo o cineasta “cristaliza uma espécie de sonho acordado”, de “um lugar do inconsciente onde estas imagens despontam”. O cineasta recorre, para ilustrar a emersão dessas imagens, a uma parede onde acertamos por fim na tomada que está ligada à electricidade e que permite “mostrar-nos o que é verdadeiro”: “mostrar o impossível de ser mostrado”, “de falar o não falado”. É, portanto, o guião, “um imperativo filosófico da narrativa”, que impõe uma determinada imagem, num momento preciso do filme.
Esta sequência de The Brood foi questionada pela censura, num dos múltiplos embates que a obra do cineasta teria, nessa tentativa reiterada de privar o espectador de certas imagens, de um comité de qualificações discutíveis escolher o que a audiência pode ou não ver. Para Cronenberg aquela imagem “não é sexual, nem violenta, apenas pegajosa e inquietante”: “é uma cadela a lamber as suas crias”. É também o prólogo de um catálogo de imagens extremas. O cineasta diz que lhe costumam perguntar porque não faz como Hitchcock e “apenas sugere as coisas”. Ele pergunta-lhes se viram Frenzy (Perigo na Noite, 1972, pós-Hollywood) que tem “cenas bastante sórdidas” e acrescenta que a “reserva de Hitchcock de mostrar talvez se devesse mais à censura existente” (em Hollywood) do que às suas vontades. No que se refere ao seu trabalho, o cineasta diz que tem de “mostrar as coisas porque ele está a mostrar algo que as pessoas não podem conceber, que não são comuns ocorrências da imaginação”. Se fosse uma questão de “mostrar alguém a ser alvejado ou a cortar as goelas, podíamos fazê-lo fora de campo e a assistência aproximava-se da ideia do que tinha acontecido”. São, então, imagens que dão “uma presença física à ideia de que há coisas a acontecer dentro de nós e que são estranhas e perturbadoras”.