Marty é o nome em destaque este mês. Killers of the Flower Moon (Assassinos da Lua das Flores, 2023) é filme para dividir e, talvez, no fim, para reinar (nem que seja na Cerimónia dos Óscares ou noutras “paradas de carne”, como lhe chamava George C. Scott). O que os walshianos fazem na Sopa de Planos que se segue é cortar a direito e mirar, bem de perto, o que está para trás, bem para trás, resgatando alguns “tesouros” escondidos na filmografia vibrante, mas errática, deste cineasta tão violento quanto vertiginoso, tão romântico quanto cruel. E citam-se possíveis inspirações: de Stanley Donen a Alfred Hitchcock. Fala-se de cidades infernais e de uma energia screwball bem feroz. De qualquer modo e antes de tudo isto, acede-se não a um “big sleep”, mas a um necessário “big shave”. Caro leitor e cara leitora, proteja a sua barba.
Primeiro filme realizado e produzido por Scorsese, The Big Shave é um pesadelo que persegue todos os homens que detestam o ritual do corte da barba (como… eu). Talvez por este filme se explique, em parte, o facto de Scorsese nesta altura usar uma farta barba. Mas, mais importante, com esta curta-metragem fica provada a capacidade dos grandes cineastas de transformarem pouquíssimos elementos, os mais imediatos que possamos encontrar, em instrumentos dramáticos poderosos – e perigosos. Aqui eles são a espuma de barbear, a gillette e o lavatório como deve estar: impecavelmente branco. É sobre o branco, do lavatório e da espuma de barbear, que o artista Scorsese vai deixar, como que em “pinceladas” largas, a sua marca. A rotina banal transforma-se em ritual de mutilação.
O homem, descontraída e placidamente, usa a gillette para produzir uma perturbante performance ou body art com litros de sangue (ou xarope de milho/chocolate) que aniquilam por completo a imagem tranquilizante que a cor branca inspira. Enquanto há branco, há rotina. Quando surge – espirra! – o vermelho denso, temos “o dia estragado”. Trabalha-se aqui a ansiedade íntima e uma vontade sádica que existirá entre todos nós, homens, que vivemos o tormento, vertido neste filme com cerca de 5 minutos, de desviarmos a navalha para a jugular e em vez de sermos nós a fazer a barba, ser a barba a fazer-nos a nós. Depois de explorar todos os ângulos, isto é, depois de ter “cortado por todo o lado”, a câmara e montagem dão-nos a imagem frontal do homem e da sua lâmina que este faz percorrer longitudinalmente ao longo do pescoço. Ele executa, deste modo – e o verbo é mesmo “executar” – a rotina em pleno inferno. Sem after shave.
Luís Mendonça

A guerra acabou e a festa acabou. Jimmy sobe umas escadas noturnas, ouve-se o comboio a passar por cima e, durante breves segundos, esse homem que pouco antes vimos no grande salão de um nightclub a celebrar o V-J Day e a atirar-se insistentemente à jovem Francine pára diante da visão de um casal que dança algures num recanto, sem música – ou ao som dos carris –, como duas personagens saídas de um musical de Stanley Donen a quem roubaram o volume, quais mimos a recriarem a energia e romantismo de um bailado que parece já uma miragem nostálgica antes de o ser… Esse pequeno instante de New York, New York (1977) sempre me fascinou pela sua capacidade de síntese. Naquela espécie de ilusão de óptica, ou miniatura, está o próprio motivo do filme: o revisitar de uma época através da sua vibração musical e dos seus truques de magia inscritos no cenário de estúdio, com uma específica luz de palco.
Martin Scorsese admitiu que fazer New York, New York depois de Taxi Driver (1976) se afigurou uma ideia interessante; queria combinar o “artifício” dos forties e um tratamento “documental” das personagens. E de facto, neste filme, a sua lente passeia por alguns sets de tirar o fôlego, mas nunca enquadra os seus protagonistas num ideal romântico. Nem sequer num romantismo ferido: o Jimmy de Robert De Niro é mesmo uma besta impulsiva, cujo comportamento “se estuda”, e a Francine de Liza Minnelli é mesmo a mulher atropelada por um amor estranho, que desperta no olho da câmara uma curiosidade analítica. Ela é a personagem bem maquilhada na alegria e na tristeza, a lembrar a mãe Judy Garland, e aquela que concretiza o musical “sonhado” naqueloutra visão de Jimmy. Feitas as contas, talvez Jimmy seja só um espectador violento dos vestígios da velha Hollywood.
Inês N. Lourenço

Um dos filmes que mais energizou a carreira de Martin Scorsese, ainda que continue a ser muito subestimado, After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985) coloca o espectador no desenrolar de uma montagem visível. Enquanto Paul (Griffin Dunne) entra no espaço ocupado pela noite, caindo numa Soho isolada onde prospera um covil kafkiano, por trás de cada plano está a câmara e nunca deixa de assim o ser. Paul invade aquele mundo assim que começa a marcar presença nele, mudando a química natural das coisas aos olhos dos que não o conhecem. E rapidamente deixa de conseguir dali sair.
O plano que escolhi é a definição derradeira de pesadelo. Depois de passar tanto tempo a pedir ajuda, Paul acaba escondido à vista de todos, mas também de ninguém, numa cave escura, fria e adormecida. Em essência, enterrado vivo, incapaz de sair não só de Soho, mas agora também de si mesmo. Para lá da representação pitoresca e violenta deste silenciar do desespero – homem transformado em pedra -, a monstruosidade do plano prende-se no olhar vigilante (picado) de um alguém que continua a ajudar à queda espiral de Paul naquele submundo. Scorsese tinha construído um caminho até aqui, assaltando o filme com planos aproximados de objectos que não só pareciam pensar por eles próprios como exerciam poder sobre aquela prisão protegida, fechando Paul em várias camadas. Que Paul se vem a transformar num objecto composto de papel e cola e muita paranóia justificada é só parte do que aprendemos. Dizia Marty a Fran (Lebowitz) que o filme se resume ao momento em que um grupo de pessoas se cala assim que alguém como Paul se aproxima. Ele pode achar que não, mas é dele que falam. After Hours relata um feroz e colectivo ataque screwball ao que permanece incompreendido.
Susana Bessa

Só poderia ser este filme, só poderia ser este still. Caso ainda não tenham reparado, The Age of Innocence é um filme sobre mãos. E também sobre flores. E um pouco sobre rendas. Este é o momento em que Newland (Daniel Day-Lewis) faz amor com a mão de Ellen (Michelle Pfeiffer), começando por descalçar a sua própria luva, pegando na mão enluvada dela, desabotoando habilmente a luva, abrindo-a cuidadosamente para conduzi-la aos seus lábios. Em The Age of Innocence (A Idade da Inocência, 1993), tudo é feito de mãos, com cada toque de mãos a revelar, na sua forma, novos níveis de intimidade e de aproximação entre Newland e Ellen, desde o estender de mão recebido de forma hesitante por Newland no camarote, logo no primeiro encontro, passando pela mão que ele repousa na dela quando Ellen chora, até mesmo ao equivocado beijo na pega da sombrinha que Newland acredita pertencer a Ellen.
O encontro de mãos deste still é também síntese da forma, no modo como sobrepõe duas imagens, como funde presente e futuro, algo que está já presente nos créditos iniciais de Elaine e Saul Bass, neste que é porventura o mais hitchcockiano dos filmes de Martin Scorsese [atente-se nos flashes de vermelho que inundam certos planos, na câmara que faz 360º em volta da mesa, no frontal caminhar de Ellen em direcção à câmara, nas incursões de Newland à florista – mais Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) é impossível]. As flores do genérico abrem também lentamente, como aquela luva, numa exposição longa, atinente a mostrar eroticamente o seu interior – lentamente, suavemente. Como não sentir a memória invadida pelo poema de e. e. cummings? “your slightest look easily will unclose me / though i have closed myself as fingers, / you open always petal by petal myself as Spring opens / (touching skillfully, mysteriously) her first rose”.
Daniela Rôla

Martin Scorsese conta a Mark Cousins que, em Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), decidiu adotar um novo estilo visual focado num ritmo acelerado que ia ao encontro do que via com frequência no cinema norte-americano da época. Anos depois, outra obra sua, Casino (1995), aprofunda esta opção. Nos planos iniciais deste filme, acompanhamos um travelling aéreo sobre a cidade de Las Vegas. Enquanto nos aproximamos da cidade, a malha de eletricidade que a suporta parece ser engolida por um precipício negro, sob um crepúsculo em azul fúnebre que é percorrido pelo movimento rápido de uma neblina fantasmagórica. Esta não é tão densa como na Nova Iorque dos créditos iniciais de Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980), algo que, eventualmente por roçar o vermelho, fez com que alguém a associasse a cidade ao Inferno.
Com isto em mente, podemos especular que, no plano que escolhemos, talvez não seja Las Vegas que esteja a ser engolida, mas antes a cidade a engolir e a espremer tudo o que a rodeia, consumindo e esgotando tudo o que a circunda. Na verdade, a área envolvente é negra quando vista à noite porque se trata de um deserto sem vida. Como a personagem de Joe Pesci sugere, é onde apenas se vai para enterrar um corpo ou ser enterrado. No final do filme, outro abismo negro acolhe Sharon Stone, enquanto se apoia nas paredes ao longo de um corredor, sob o efeito de um consumo excessivo de estupefacientes. Depois da overdose de brilhos cintilantes das luzes, dos ecrãs, dos néones, dos automóveis, das moedas ou das jóias, numa montagem vertiginosa de planos curtos e movimentos rápidos, da responsabilidade de Thelma Schoonmaker, resta o negrume da morte – um beco sem saída, moral e espiritual, como diria Martin Scorsese.
Carlos Alberto Carrilho