We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars.
Oscar Wilde
E depois do dia em que a Garbo falou, lá chegaria o dia em que a Garbo ria (e gargalhava!). O riso acontece em Ninotchka (1939), de Ernst Lubitsch, e é possível que a ideia para essa declaração, “Garbo laughs!”, tenha precedido a própria ideia do filme, numa tentativa de renovar a imagem da estrela da MGM. Quando Ernst Lubitsch é associado ao projecto, o argumento já tinha passado por diversos argumentistas, a partir da ideia de Melchior Lengyel, passando por Salka Viertel, Jacques Deval e S.N. Behrman. Com a chegada de Lubitsch ao filme, o argumento passa para as mãos de Walter Reisch e, finalmente, para Charles Brackett e Billy Wilder.
Charles Brackett escreveria no seu diário em 11 de Fevereiro de 1939: “Got a telephone message from Ernst asking Billy and me to his house and went after taking a brief nap. There he gave us a brief and prejudiced summary of the script that has been done for him – Ninotchka – he felt it very bad. He gave us the script – we came to my place and read it and the dialogue is enchanting and the situations – halfway through (as far as I’ve gone) excellent.”
Ninotchka é, simultanemente, puro Lubitsch e um Lubitsch bem diferente do habitual. O quintessencial Lubitsch está nos gags irresistíveis (as diversas piadas à volta do famoso “I want to be alone” de Greta Garbo), naquilo que adivinhamos atrás de portas fechadas, no humor elegante que não foge dos temas mais sérios, muito à la To Be or Not To Be (Ser ou Não Ser, 1942): “The last mass trials were a great success. There are going to be fewer but better Russians.”
Se é certo que a screwball comedy nunca teria existido sem o génio de Lubitsch, por outro lado não se pode afirmar que Ninotchka encaixe completamente no cânone do género, o que resulta de uma certa ética lubitschiana que impõe um equilíbrio de forças entre os dois amantes, Ninotchka (Greta Garbo) e Léon (Melvyn Douglas). Assim sucederá igualmente no filme do ano seguinte, The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940), em que Klara e Kralik nunca são completamente honestos, mas também nunca são tão rectos quanto querem fazer crer. Cada um vai criando uma máscara para disfarçar quem verdadeiramente é, criando uma cumplicidade com o espectador que é o único a poder sopesar devidamente o verdadeiro carácter de cada um deles.
No equilíbrio de forças entre Ninotchka e Léon, surgem os dois como um pouco ridículos, ele no seu dandismo e na displicência face aos reais problemas do mundo, na sua encantadora futilidade, ela na sua seriedade cortante
Embora Ninotchka seja uma mulher inteligente e determinada, para “certos aspectos da vida”, ela permanece completamente alheada para “outros aspectos da vida”. O que seria de esperar numa screwball comedy mais convencional seria que a personagem feminina guardasse consigo, logo à partida, a chave para o entendimento com o seu parceiro. Ela teria, ab initio, todas as respostas, enquanto ele, desorientado, teria de passar por um périplo (um filme) para descobrir que a resposta para a felicidade sempre ali esteve. Por seu lado, Léon irá atravessar um processo de catequização rumo a uma vida e um sentimento não-fútil, mas tal não impede que durante esse processo não seja também ele doutrinador para aquilo que é o aspecto entusiástico da vida e que é, em suma, a essência de Paris. No final, e de forma muito pouco convencional (para a Hollywood de então ou mesmo de hoje), nenhum dos dois é propriamente “reformado”, Ninotchka não renega as suas crenças políticas, mas abre portas a alguma “deliciosa irracionalidade”, e Léon não deixa de ser um apaixonado crónico, mas aceitando a seriedade de um sentimento forte. Afinal, as pessoas tendem a ser complicadas, por vezes mesmo contraditórias, e o filme aceita isso como uma resolução.
A atitude inicial de Ninotchka perante o sexo aparenta ser gélida e prática, mas ela rapidamente nos recordará que o gelo também queima. Léon lança mão de todas as suas competências galanteadoras, sem produzir qualquer efeito aparente – “must you flirt?” –, sendo afinal Ninotchka quem propõe acompanhá-lo ao seu apartamento. Enfim, o adjectivo nonchalant poderia ter sido criado para caracterizar a forma como Ninotchka se comporta nas lides do amor, parecendo completamente imune aos avanços de Léon, mas atacando quando ele menos espera, deixando-o completamente desconcertado perante a sua frontalidade.
Não se trata de ela [Ninotchka] ter as convicções políticas certas, que lhe confiram superioridade moral. Trata-se apenas (o que é tudo) do facto de ela estar apaixonada, o que a dota de uma força imensa, tornando-a indestrutível.
No equilíbrio de forças entre Ninotchka e Léon, surgem os dois como um pouco ridículos, ele no seu dandismo e na displicência face aos reais problemas do mundo, na sua encantadora futilidade, ela na sua seriedade cortante, na sua visão do mundo feita de dados estatísticos e orçamentais, de princípios inabaláveis, insensível à beleza pela beleza e ao prazer pelo prazer. Ninotchka pede ajuda para ler o mapa de Paris: Leon não sabe onde fica o norte ou o sul, mas sabe onde fica a Torre Eiffel. E o que torna a torre Eiffel tão especial? O número de degraus que levam ao topo, a dimensão dos seus pilares, a profundidade das suas fundações? Ou, como afirma Leon, será que é aquilo que ela permite avistar, metade de Paris que faz amor com a outra metade? Ou, mais singelamente, um pequeno apartamento de solteirão, bem situado quanto à utilização de transportes públicos? Em suma, prodígio da engenharia ou prodígio do romântico?
Léon é um devoto dessa Paris romântica. O partido para o qual Léon pretende recrutar Ninotchka responde pelo slogan “Lovers of the world, unite!”. É esta força poderosa que toma conta de Ninotchka com a força do champanhe e que contamina até a fotografia de Lenine que ela conserva à cabeceira. “Smile, little father!”. E ele sorri.
Mas regressemos à missão que leva Ninotchka até Paris, a necessidade de corrigir o comportamento dos três funcionários enviados a Paris para venderem aos jóias da Grã-Duquesa Swana. Aquilo que Paris faz a lranoff (Sig Rumann), Buljanoff (Felix Bressart) e Kopalski (Alexander Granach) é torná-los muito humanos (suspeitamos que eles eram já bem humanos, feitos de uma estirpe bem diferente da de Ninotchka, que só muito mais dificilmente se deixa seduzir pelos encantos do mundo capitalista). Ainda assim, Ninotchka não parece ser demasiado severa com eles, aceitando as suas fraquezas, mas corrigindo pacientemente os erros que eles foram cometendo, em boa parte sob a (des)orientação do Conde Léon d’Algout. “Who am I to cost the Russian people seven cows?” – comenta Ninotchka perante os gastos extravagantes com a suite real do hotel. E toda a subsequente transformação dela está na passagem do leite de vaca para o champanhe.
Logo numa das cenas iniciais, Ninotchka é absolutamente lacónica ao contemplar o chapéu de formato absurdo na montra da loja – “How can such a civilization survive which permits their women to put things like that on their heads. It won’t be long now, Comrades.” Esse será, afinal o objecto fétiche do filme, o significador que ilustrará o quebrar (ou o acordar?) de Ninotchka. Na versão musical do filme realizada por Rouben Mamoulian, Silk Stockings (Meias de Seda, 1957), o chapéu daria lugar a um par de meias de seda, com as quais as pernas de Cyd Charisse partilhariam um pas de deux. Em ambos os casos o objecto escolhido perde a sua função primacial – proteger a cabeça ou cobrir as pernas – para assumir apenas o papel de dar prazer a quem os usa (e quem os contempla). Um mero adorno, uma futilidade, mas provando que a vida deve reservar espaço para aquilo que não é meramente utilitário, de forma a despertar os sentidos e fazer divagar a mente.
Atente-se, todavia, que Lubitsch não descarta o facto de o chapéu ser absurdo, da mesma forma que não condena Ninotchka por sucumbir ao poder deste objecto. Lubitsch não toma partido, ou dá a cada um as suas razões. O champanhe é uma coisa maravilhosa, sim, mas tão maravilhosa quanto a amizade que une Ninotchka a lranoff, Buljanoff e Kopalski, naquele apartamento em Moscovo, partilhando cada um o seu ovo como um bem precioso, cantando e conversando de tempos passados em Paris, cometendo o pecado capitalista da melancolia (e sempre cuidadosamente voltando ao silêncio quando a sala é atravessada por um inquilino suspeito).
Como numa brincadeira de crianças, o colocar do chapéu na cabeça confere poderes especiais, o poder de saborear o sublime, só ao alcance de alguns (o que permite que mais tarde ela consiga ler a carta integralmente censurada enviada por Léon, essa carta que se torna muito mais romântica porque ela apenas imagina o seu conteúdo). É essa força que Ninotchka demostra no seu confronto com a Grã-Duquesa Swana (Ina Claire), na noite em que se embriagará de champanhe. Não se trata de ela ter as convicções políticas certas, que lhe confiram superioridade moral. Trata-se apenas (o que é tudo) do facto de ela estar apaixonada, o que a dota de uma força imensa, tornando-a indestrutível. O que não impede que ela necessite, seguidamente, de mais um gole de champanhe para recuperar o sangue-frio. E não impede também que, recuperada a calma e operado o efeito do champanhe, ela siga para o powder room proclamando propaganda comunista, criando uma nova classe de distúrbios, o conflito de WC.
Mas fiquemo-nos pelo sublime, e não percamos demasiado tempo com os assuntos mais comezinhos do mundo, até porque o mundo tem uma tendência para se reajustar, dar as cartas e voltar ao mesmo. Ou não tivesse o mesmo Lubitsch reduzido a justiça entre famílias desavindas em Romeo und Julia im Schnee (Romeo and Juliet in the Snow, 1920) a um outro significativo objecto – uma salsicha.
Paris, ainda que uma Paris artificial fabricada num estúdio de cinema, é a corporização desse sublime. We’ll always have Lubitsch.
Ninotchka (1939), de Ernst Lubitsch, está disponível na plataforma Apple Tv, e Youtube.