Escrevia Nick Pinkerton em 2020 (na sua newsletter) a respeito de Lost Highway (Estrada Perdida, 1997), de David Lynch, e sobre o road movie americano que persegue a célebre procura pela América: “à mobilidade e autonomia junta-se a possibilidade da auto-determinação e auto-renovação – por pior que as coisas fiquem, é sempre possível partir e começar outra vez noutro lugar. Começar de novo é exactamente o que Lost Highway faz (…)”. O argumento que muitos anos depois o crítico de cinema nascido em Cincinnati mas elemento inseparável da colcha cultural de Brooklyn, Nova Iorque, apresenta ao seu amigo, reconhecido director de fotografia, Sean Price Williams (a pedido deste) amplia essa noção, enrolando-a sobre si mesma. O ponto deles é, eles que olham a América enquanto americanos que são, será que a América ainda tem tempo para se salvar através do road movie como o conhecemos? E será considerado movimento produtivo se a viagem andar só em torno de si mesma em vez de em direcção a um lugar para viver?

O filme que nos surge é uma resposta a essa estrada emocional, focando-se nas paragens por ela, com o crescer-de-idade de uma jovem adolescente no comando. Se, por um lado, no universo de Lynch – onde a identidade é um caso paradoxal e o trunfo está no facto de tudo aquilo ser insolucionável; ficamo-nos pelo peso incalculável da escuridão – só realmente caímos na febre se assim quisermos que esta nos electrize os sentidos, no argumento de Pinkerton, o condutor alucinogénico distingue-se em quão irascível e forçoso é, especialmente porque tem a sua origem na ansiedade do pós-capitalismo que faz contorcer, e que, de forma consistente (kicking and screaming) satiriza enquanto mede o pulso da paisagem política do país.
The Sweet East (A Doce Costa Leste, 2023), primeira longa-metragem de Williams, é o resultado de um emaranhar de ideias desorganizadas, e histérico-esganiçadas que querem ser revolucionárias.
Através de uma discordante e democrática multidão de vozes, ideologicamente distintas, que constituem uma nação, The Sweet East (A Doce Costa Leste, 2023), primeira longa-metragem de Williams, é o resultado de um emaranhar de ideias desorganizadas, e histérico-esganiçadas que querem ser revolucionárias. É raro ver-se um director de fotografia a triunfar enquanto realizador, e Williams é, neste momento, sinónimo do universo arthouse tão aninhado quanto internacional (e mais “distribuível” do que se imagina) do cinema independente americano. As suas imagens são reconhecíveis a qualquer espectador que se sinta atraído pela bolha disruptiva do cinema de Alex Ross Perry, irmãos Safdie, Joe Swanberg, Robert Greene, Nathan Silver, entre outros. A sua estreia no Festival de Cannes o ano passado confirmou um desejo por filmes desafiadores destes, tendo o filme sido elevado ao patamar de sucesso de culto moderno não só pela internet fora, mas pela crítica também. Ainda que a grande surpresa do ano tenha sido provavelmente Riddle of Fire (2023), aventura épica de três crianças de Weston Razooli, que relembra a sensibilidade de Harmony Korine se este tivesse realizado os The Goonies (Os Goonies, 1985) – decididamente, um dos momentos cinéfilos mais vibrantes de 2023, durante o LEFFEST, The Sweet East complementa Razooli com um filme excessivamente agudo, capaz de deixar um sabor a alcaçuz salgado nos lábios de que ninguém se esquece.
Desde esse momento na Quinzena dos Realizadores, The Sweet East andou em tour, pelos EUA primeiro e nos últimos meses pela Europa. Pinkerton e Williams foram a todo o lado. Cinemas comerciais, independentes ou espaços comunitários. Como dizia Pinkerton a K. Austin Collins para a Reverse Shot, “we’re gonna tour this like Black Flag”. Nunca nada fez mais sentido. Eis a celebração do cinema-playground da provocação, símbolo de resistência, que confunde obsessão com rigor, deixando a memória ser a de uma experiência espinhosa (talvez porque sempre muito consciente de si mesmo) que o espectador não tem como digerir. Basta que por ele passemos.


A história é simples. A partir de um acto de violência durante uma visita de estudo a Washington, D.C., dá-se a queda para o mundo do outro lado do espelho, para a porta de Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939) ou de uma Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll contemporânea, e a adolescente Lillian Wade de South Carolina [Talia Ryder, vista recentemente no importante filme de Eliza Hittman, Never Rarely Sometimes Always (Nunca Raramente Às Vezes Sempre, 2020)] acaba afastada dos colegas de escola, e é propulsada daí em diante pela costa leste dos EUA em jeito de fábula absurdista. De uma rede de pedofilia a um tiroteio, vai de encontro com a América, com o mundo excêntrico e selvagem da violência humana. Pelo caminho, passa a existir apenas dentro dela mesma, aterrada mas estranhamente serena ao mesmo tempo (quase que adormecida), sendo levada de lugar em lugar.
Por ela passarão activistas anarquistas anti-fascistas (Earl Cave), um professor de literatura do séc. XVIII de meia idade que por acaso é um supremacista branco (Simon Rex, ironicamente judeu de descendência russa/lituana), e uns muito pretensiosos cineastas negros (Jeremy O.Harris e Ayo Edebiri) que querem fazer um drama de época inspirado em Merchant Ivory, onde Lillian contracenará com Ian (Jacob Elordi) na produção independente. Entre raptores e paparazzi, aliados e colaboradores, Lillian passa a ser o destinatário de ideias e palavras e figuras e segredos que a deixam (e a nós, consequentemente) exausta. Aliás, sobre isto há que dizer que não muito diferente de um vírus que se apodera do nosso corpo, torna-se muito difícil discernir onde Lillian se encontra/continua ao longo do filme, no meio de uma mise-en-scène tão assoberbada de objectos, de tanto ruído visual.
Andamos com ela em cambalhotas com os elementos. Especialmente tendo em conta o olhar agitado e imparável de Williams. Tudo respira sempre muito alto e com muito ego. Enquanto isso, Lillian passa muito tempo à espera em carros ou fechada em casas de árvore à espera de ser salva. No seu trajecto de auto-descoberta, que nunca vemos concluir (alguma vez se conclui, na vida de alguém?), Lillian vai abraçando uma passividade enquanto resposta a tudo o que lhe vai acontecendo. Bem queria Pinkerton falar de uma geração ou mais gerações que deixaram de saber pensar ou agir (como o fazer no meio de todo este caos auto-destrutivo?). The Sweet East troça com este momento presente na história, uma América progressivamente ilusória (que se aplica também ao cinema, “it’s this veneer of progressivism”, dizia Nick sobre a indústria de cinema).
É o tipo de filme que tanto poderia ter sido feito para ocupar os tempos livres de um grupo de amigos como é também um exemplo imaculado de como fazer um filme sobre e para agora, com o seu mísero limiar de atenção, inteiramente coberto de sentimentos que se contradizem – a doçura é abrasiva e muito acre – e sempre de tal forma on edge ao ponto de ferir os seus hóspedes dormentes.
The Sweet East é esse espelho (ou será uma porta?), dos créditos iniciais em diante. É curioso regressar a esse espelho literal – há mesmo um – , onde está o impenetrável de um lado e o maleável do outro, e testemunhar outra vez o momento em que Lillian e o tempo-espaço da linha da sua vida se altera. Ainda antes de se afastar dos colegas, já Lillian andava em fuga, num estado de absoluta paragem, num banho de reflexos em frente ao espelho da casa de banho de um dive bar. Ora dança da vaidade ora jogo do ‘quem é quem’ em frente ao espelho de um lugar estranho e sujo, esta desafia o seu próprio reflexo a um julgamento enquanto trauteia uma música “I’m fun, no fear / Lost in the evening mirror”. Sempre entre estados de contemplação, Lillian passará o filme feito de arcos tão imprevisíveis e violentos que se parecem com alucinações, nunca seguindo nem rejeitando seja qual for das muitas bolhas ideológicas para as quais é “empurrada”. Muito rapidamente se torna perceptível o que temos em mãos, se persistirmos: o que representa melhor o mundo em que vivemos, e melhor ainda, o cinema que está a ser feito neste momento, do que o braço de ferro entre a apatia e a revolta? Ou melhor ainda, quando a revolta se manifesta de forma apática.


A dupla expande isto ainda mais. Não lhes basta a fantasia descerebrada que se abre à farsa. Há mais mundos dentro de mundos, humor seco e muitas referências cinéfilas. Quando penso agora no filme, depois de mais de um visionamento, vem-me à cabeça a imagem de Lillian e Lawrence, o neo-nazi académico, a verem uma curta-metragem de D.W. Griffith (Edgar Allan Poe, 1909) na televisão, linguagem visual que se prova demasiado enfadonha para Lillian, casualmente refastelada num pequeno sofá ao lado dele como se nada fosse. Se o filme tem uma imagem-basilar, é esta. Enquanto forma, The Sweet East é um encontro entre a irreverência e liberdade inconsequente da década de 1960 e a paranóia e falta de controlo da década de 1970. E é sem dúvida mais Věra Chytilová, Nicolas Roeg e Jacques Rivette do que Harmony Korine. O 16mm típico de Williams ajuda a isso, suave ao olhar mas folha de lixa ao toque, que se mistura com os seus tons pastéis saturados pela escuridão das sombras. Já para não falar também do trabalho de câmara maioritariamente handheld, e especialmente caótico, afectado com o tipo de zooms que ofuscam tudo tirando o rosto brilhante da sua jovem musa (que faz lembrar uma jovem Isabelle Adjani). É o tipo de filme que tanto poderia ter sido feito para ocupar os tempos livres de um grupo de amigos como é também um exemplo imaculado de como fazer um filme sobre e para agora, com o seu mísero limiar de atenção, inteiramente coberto de sentimentos que se contradizem – a doçura é abrasiva e muito acre – e sempre de tal forma on edge ao ponto de ferir os seus hóspedes dormentes.
The Sweet East é um encontro entre a irreverência e liberdade inconsequente da década de 1960 e a paranóia e falta de controlo da década de 1970. E é sem dúvida mais Věra Chytilová, Nicolas Roeg e Jacques Rivette do que Harmony Korine. O 16mm típico de Williams ajuda a isso, suave ao olhar mas folha de lixa ao toque, que se mistura com os seus tons pastéis saturados pela escuridão das sombras.
E talvez seja por isso que até as fraquezas relativas à sua estrutura e tom sejam propositadas, especialmente no firme estabelecer de uma história num primeiro acto que depois é separada em pedaços, como quem desce à cave de Frankenstein mas com pozinhos de prlim-pim-pim de uma fada-madrinha. Nesse segundo e depois terceiro acto que alienam e frustram o espectador tal é a desconexão e a ligeireza da sua convicção em tudo o que dizem (como se no final já a luta viesse falhada antes do seu anúncio), Lillian é, ainda assim uma testemunha silenciosa muito importante. Ela assimila o que vai acontecendo. A acumulação e o eventual desgaste do nervo das tragédias que assolam a democracia da América diariamente ajuda-a a compreender, esperemos, the bigger picture. Muito simplesmente, depois da bandeira da nação ocupar o ecrã e se der a quebra da quarta parede, ouve-se pela segunda vez (a primeira nos primeiros minutos de filme e a segunda na sua conclusão): “Come on, it’s just a movie.” Isto dir-nos-á tudo o que precisamos de saber. Não há nada que pare a visão deste futuro-presente e desta viagem trocista de Williams.
Ai como é tudo tão impossivelmente imbecil.

★★☆☆☆