Seria supérfluo dizer de um filme de Michael Powell e Emeric Pressburger que é estranho. A Canterbury Tale (Três Modernos Peregrinos, 1944) é talvez dos seus filmes mais estranhos, desde logo por ter sido o primeiro flop das suas carreiras, especialmente se atentarmos em quanto daquilo que há de mágico na obra-prima indiscutível I Know Where I’m Going! (Sei Para Onde Vou, 1945) que já está aqui delineado. Estranho ainda porque os primeiros 12 minutos de filme se desenrolam no escuro, impossibilitando-nos de vermos o rosto de qualquer dos três protagonistas. Diríamos que já neste aspecto é um filme de fé, convidando-nos a acreditar que aquelas vozes e silhuetas correspondem a pessoas inteiras. Estranho igualmente porque em todo o filme provavelmente se discute mais sobre chá do que sobre a guerra que acontecia.
Estranheza também naquilo que é o enredo de A Canterbury Tale. Três desconhecidos, Alison Smith (Sheila Sim), Peter Gibbs (Dennis Price) e Bob Johnson (John Sweet), que se encontram numa pequena povoação, Chillingbourne, fruto das vicissitudes do tempo de guerra, feitos companheiros forçados na noite. Alison é atacada por uma estranha figura local, o glue man, um homem que se dedica a atirar cola para o cabelo das raparigas que saem à noite acompanhadas dos soldados estacionados na zona. Os três decidem investigar o mistério do glue man e nessa investigação conhecem uma das figuras destacadas da localidade, Thomas Colpeper (Eric Portman), o magistrado local, que procura aproveitar o movimento militar em Chillingbourne para incutir alguma cultura nos soldados de passagem e dar aulas de história sobre o movimento de peregrinos na estrada que passa por Chillingbourne e que leva a Canterbury, a cidade conhecida pelos contos de Geoffrey Chaucer e pela sua monumental catedral.
A escuridão imposta pelo blackout ajuda a criar uma imagem das personagens que pode ser errónea. E é importante que possamos dar conta dessa facilidade em cair em julgamentos precipitados. Começamos por vislumbrar Alison como uma silhueta, uma femme fatale que segura uma mala e que descarta no chão o cigarro que fumava, uma rapariga habituada ao ritmo da vida em Londres e que é transplantada para uma pequena localidade para colaborar no esforço de guerra, trabalhando numa quinta. Ela fala o inglês de Inglaterra, mas não fala o inglês do campo. Esse é um diálogo para o qual Bob, o sargento americano, está mais preparado, apesar da sua permanente estranheza com os termos ingleses, absurdos para um nativo do Oregon. Ele é desenvolto nessa troca de palavras com a gente do campo, porque também ele vem de um meio rural, em que as tarefas podem ter outros nomes, mas são as mesmas. Já o sargento inglês, Peter, é aquele que apenas mostra o seu lado lunar, guardando o lado solar como uma memória traumática – um sonho que não se concretizou, o de ser uma grande organista. Acabou feito um “mero” organista de cinema (piada feita com essa arte “menor”). O facto de estas três personagens não se darem a conhecer logo à partida só as torna mais verdadeiras na sua peculiaridade. E faz com que o seu percurso de peregrino, no caminho até Canterbury (ainda que feito de comboio, em poucos minutos), tenha maior significado.
A Canterbury Tale leva-nos, assim, da máxima escuridão à máxima luz – aquela que enche os claustros da catedral de Canterbury, no final da caminhada destes novos peregrinos, cada um em busca do seu próprio milagre. Um milagre por diversas vezes referido por Colpeper, que reitera o motivo que levava os peregrinos a percorrerem a estrada próxima, pedir uma bênção ou fazer penitência. Um milagre cuja possibilidade de concretização é sempre vista pelos três com cepticismo.
Colpeper é o dinamizador da narrativa, simultaneamente cativando e provocando repulsa. Alison, que o vê como suspeito, mas que com ele partilha o momento de maior intimidade do filme, quando justos se aproximam e se escondem na vegetação [uma imagem que invoca a comunhão com a paisagem de The End of the World (1937)]. Peter, que o procura para tentar reunir provas incriminatórias, mas que acaba por sentir-se desarmado pela simplicidade e honestidade com que é recebido na casa do magistrado. Colpeper é uma personagem típica da dupla Powell-Pressburger, aparentando servir uma religião apenas sua, sacerdote e devoto em simultâneo. O tipo de papel que noutros filmes seria reservado a Anton Walbrook, que com Eric Portman partilha um misto de austeridade e de sedução, mais velho e mais sábio do que aqueles que o rodeiam, sempre mantendo uma aura de mistério.
É justamente este o contraponto entre os três peregrinos e Colpeper. Alison, Peter e Bob acabam por revelar o que os move, os pedaços de vida pré-guerra mal resolvidos, apenas mascarados pelas urgências que o conflito impõe. Já no que toca a Colpeper, paira sempre a dúvida sobre quem ele é verdadeiramente. Por um lado, o homem simples que trabalha na lavoura e que responde ao toque de uma campainha que chama para o almoço. Por outro lado, o magistrado, alguém com uma sede enorme de partilhar cultura, mesmo que recorrendo a meios pouco idóneos. E ainda, alguém que acredita no poder avassalador da fé, o poder milagroso da viagem até Canterbury, simbolizado na auréola que surge na cabeça de Peter, em mais um jogo de luz e escuridão.
Alison, Peter e Bob são jovens com almas velhas, é esse o efeito que a guerra deixa neles. Um conformismo que os leva a aceitar as desilusões, não tentando combater pela felicidade, nem aceitando milagres. Colpeper, apesar da sua idade indefinida (um certo charme intemporal), apesar de mais velho, é dotado de uma alma jovem, uma vontade enorme de mudar o mundo – de fazer os seus próprios milagres. Apesar da sua perseverança quase ter sido derrotada, como ele admite, a guerra teve nele o efeito oposto, tornando-o mais energético, mais inconformado. Na verdade, ele comporta-se como uma criança grande, delineando um plano para alcançar os seus intentos, executando-o, sem sentir culpa dos “danos colaterais”.
O poder transformador existente em A Canterbury Tale não se limita à sua personagem feminina e não se limita ao facto de existir uma guerra a decorrer. Esse poder milagroso está na peregrinação, no destino, na catedral.
Esta possibilidade de acção simples, de vida muito concreta, corresponde a uma glorificação do english countryside, mas aí encontramos outros desajustamentos, com citadinos que não falam a mesma língua, que desconhecem esse tipo de vida mais lenta, habituados à anonimidade da grande cidade. “Prefiro tomar banho numa piscina do que no mar!” – afirmava orgulhosamente Joan Webster em I Know Where I’m Going!. Claro que ela acabaria por admitir ter sido apenas um capricho, a necessidade de mostrar-se convicta da sua decisão de casar com as Consolidated Chemical Industries, porque na verdade preferia o mar (ou seria Torquil a fazê-la preferir o mar). Conforme referíamos mais acima, são vários os pontos de contacto entre os dois filmes: também em I Know Where I’m Going! era possível encontrar um quarto majestoso, com raios filtrados de sol, acolhendo um visitante que aí pernoita contrariado. Também aí se encontrava o gentleman farmer e mulheres independentes e votadas à acção, dissimulando um lamento, uma oportunidade de amar que ficou perdida no passado. Também aí as dificuldades de comunicação, quer na língua, quer nos meios telefónicos. E, claro, o edifício capaz de produzir milagres sobre quem trespasse a sua porta.
Ainda que Bob consiga facilmente criar empatia com a gente do campo, a relação torna-se mais equívoca quando envolve citadinos. No sarau cultural organizado por Colpeper, Bob conversa com um militar inglês vindo de Londres e que tem um irmão algures nos Estados Unidos. “Talvez o conheça. Vive em Butt City, Montana. Chama-se Isaac Wells.” Bob consegue apenas sorrir, como se os Estados Unidos não fossem maiores do que Chillingbourne. Os dois acabam por encontrar um ponto de comunhão – Bob vive em Three Sisters Falls, Oregon, o inglês vive em Seven Sister’s Road, Londres. Clara vantagem para o inglês no que toca ao número de irmãs.
Alison e o ferreiro não conseguem entender-se porque, apesar de ambos serem ingleses, têm origens demasiado diferentes. Bob, apesar de ser americano, consegue rapidamente construir uma cumplicidade com o ferreiro (sendo por ele convidado para se juntar à mesa do jantar) porque ambos falam a mesma língua, a língua das árvores, do campo. Alison, apesar de procurar participar no esforço de guerra como mão-de-obra agrícola, enfrenta dificuldades em ser aceite por parte dos agricultores, sendo finalmente a dona de uma propriedade agrícola que acaba por aceitar a sua ajuda – uma mulher que um dia foi pedida em casamento, mas que recusou a proposta, porque isso significava abdicar da vida no campo para ir viver numa casa semelhante àquela em que Alison vive, em Londres.
Só conhecemos Alison neste lugar e neste tempo, tornando-se difícil imaginá-la como a mulher sofisticada que a sombra inicial apenas insinuava, a working girl apaixonada e rejeitada pelo pai do homem que amava, um amor soterrado pelo passado. A caravana empoeirada e cheia de traça que ela encontra em Canterbury parece reflectir o estado desse amor – envelhecido para além do remediável. É o passado que lhe cai em cima como um raio, o que a leva à histeria. Mas o peso do passado está também na arqueologia, aquilo que tinha levado Alison e o namorado àquele lugar, quando o seu amor ainda era jovem.
Esta potência transformadora da guerra na vida de uma mulher não é caso único em A Canterbury Tale, sendo um tema recorrente nos filmes do período. Em Perfect Strangers (Férias de Casamento, 1945), de Alexander Korda, Deborah Kerr, num movimento diametralmente oposto ao de Alison, passava de senhora envelhecida e permanentemente sob o efeito de uma irritante constipação a pin-up que se torna irreconhecível para o próprio marido (o título alternativo, Vacation from Marriage, quase obscenamente leve nas implicações da guerra, remete para um tempo livre das obrigações do casamento). Já em Millions Like Us (Milhões como Nós, 1943), de Sidney Gilliat e Frank Launder, Anne Crawford, enquanto menina da alta sociedade, via-se forçada a encarar o trabalho numa fábrica de munições e o confronto com o seu superior (mais uma vez Eric Portman), numa crispação que acabaria em romance, ainda que pleno de atritos. Aliás, este efeito transformador está muitas vezes aliado à alteração nas estruturas de poder, o que em English Without Tears (Pátria Acolhedora, 1944) é complicado pelo facto de o período de guerra coincidir com a passagem de adolescente a mulher de Penelope Dudley-Ward.
Mas o poder transformador existente em A Canterbury Tale não se limita à sua personagem feminina e não se limita ao facto de existir uma guerra a decorrer. Esse poder milagroso está na peregrinação, no destino, na catedral. Nenhum dos três protagonistas é um turista (mesmo que fosse essa a intenção inicial de Bob, que se mostrava resignado face à obrigação de picar o ponto na catedral). O que acontece para cada um deles é algo de uma outra dimensão, é uma experiência transcendental, o que pode acontecer da forma mais simples – o amigo que entrega a Bob as cartas que tardavam em chegar – ou da forma mais majestosa – o som do órgão que Peter toca e que ecoa por toda a grande nave da catedral.
Obviamente Michael Powell e Emeric Pressburger são tão capazes de fazer um filme de guerra convencional, quanto seriam capazes de fazer um drama, um musical ou um policial convencionais. E não será por falta de exemplos, já que o tema do conflito mundial impregna a narrativa de todos os seus filmes do período [de The Lion Has Wings (O Leão Tem Asas, 1939) a 49th Parallel (Os Invasores, 1941), a The Life and Death of Colonel Blimp (A Vida do Coronel Blimp, 1943) ou ao já referido I Know Where I’m Going!]. A Canterbury Tale chega mesmo a beneficiar da colaboração do exército americano, que possibilitou a participação do sargento John Sweet, um actor não profissional, naquele que seria o seu único papel no cinema. Mas A Canterbury Tale não oferece qualquer mensagem simples de enaltecimento nacional, de incentivo à participação no esforço de guerra ou de união entre povos contra um inimigo comum. Ainda que partindo de um objectivo comum inicial, a resolução do mistério do glue man, cada um dos protagonistas segue o seu próprio caminho, a sua própria resolução, que passa pela obtenção da bênção no local de peregrinação.
Resolver o seu próprio passado – parece ser uma mensagem atípica para um filme que se envolve tão de perto no conflito mundial. Mas aqui está a verdadeira revolução em tempo de guerra: acreditar no que há de mais humano, nas fragilidades e na capacidade de renascimento, e, por vezes, em algo de incompreensível, seja isso fé, bênção ou mesmo milagre. Ainda que a catedral de Canterbury que surge no filme seja uma construção cénica, não a verdadeira catedral – mas isso é um outro milagre, o milagre do cinema.
Resta apenas um milagre final a concretizar, a conversão de Bob ao chá:
“- Hey, let’s have some tea first, huh?
– That stuff?
– Sure; it’s a habit, like marijuana.
– I’ll take marijuana.”