EDGLRD não é propriamente uma nova produtora criada pelo enfant terrible do cinema americano Harmony Korine para projectar o futuro, é mais rigorosamente como um gangue constituído por programadores de videojogos e de Inteligência Artificial empenhado em “ocupar”, desde já, o cinema do futuro ou, pondo de outro modo, apostado em converter o cinema do futuro num futuro do ou com cinema, quer dizer, que esse porvir ainda diga respeito a ele, nas suas tradições, anti-tradições, manifestações e anti-manifestações. Eis um realizador-hacker, um cineasta-oráculo ou uma “besta” romântica decidida a aventurar-se no território perfeitamente virtualizado das imagens. Aggro Dr1ft (2023) estreia-se fora do circuito tradicional, mais concretamente está acessível no site da produtora, aqui, e o mais recente, Baby Invasion, é ante-estreado no próximo Festival de Veneza como quem apresenta mais um relatório da investigação em curso: se o primeiro, tirando partido da velha possibilidade da fotografia em infra-vermelho, se parece com um filme de acção e vingança à laia de um Michael Mann em pleno território alienígena, num ciberespaço diabólico onde o império do gaming se sobrepõe ao mundo da animação, Baby Invasion (2024) parece ser um assumido first person shooter parcialmente gerado por Inteligência Artificial. E, contudo, ainda devemos estar no território do cinema. Ou já não é bem assim?
As hostilidades estão abertas: a “deriva” de Korine e do seu gangue da EDGLRD “1n1c1a-se” aqui. Dois walshianos, Luís Mendonça e Carlos Natálio, procuraram descodificar este gesto e perspectivar as suas múltiplas implicações no idioma do (cinema) contemporâneo. E, citando os Bee Gees, “quão profundo pode ser o amor?” ou como caracterizar a nossa “e-moção” perante todos estes mundos assim ocupados e des ou reterritorializados?
Allô, allô,
Queria escrever-te sobre uma verdadeira experiência fenomenológica – e inadjectivável, se posso empregar aqui a palavra bénardiana – que tive e que me remeteu para mil e uma coisas. Fez-me pensar no jogo de role play – e no open world hiper-estilizado e hiper-realista – de GTA, o jogo de computador e de consola, mais até do que em Miami Vice (a série, não o filme, dada a dimensão ofuscante de um sol que tudo queima, adrift e por Miami). Fez-me pensar na visão reveladora e terrífica de Nada nos rostos dos “alienígenas entre nós” em They Live (Eles Vivem, 1988) ou na visão inclemente do temível caçador da selva em Predator (Predador, 1987). Pensei nas “negativizações”, bastante impressionantes, a meu ver, em filmes tão diferentes como Une femme mariée (Uma Mulher Casada, 1964) de Godard ou no mais recente The Zone of Interest (A Zona de Interesse, 2023) de Glazer, porque… a própria ideia de “negativo” se tornou decadente com o fim dos suportes físicos; logo, é tempo de elevar o que tinha uma razão de ser muito concreta por via de uma espécie de reanimação metafísica, qualquer coisa da ordem do “espírito santo”. Enfim, não se trata tanto de profanar mas de sacralizar o ADN fotográfico da imagem fílmica, as propriedades básicas do medium…
Estou a derivar, desculpa. Mas detecto aqui qualquer coisa própria de uma ordem religiosa – verdadeiro happening – que se origina perceptivamente num olho calibrado para situar cada “borrão” de movimento ou respiração, com um intuito não propriamente de criar, mas mais de destruir (uma visão “search and destroy” digna, de facto, de um predator). E, note-se, nada no filme em questão justifica, diegeticamente, a tremenda opção estilística de cobrir o corpo de imagens com um manto (sacro) de efeitos infrared. De qualquer modo, acho que é dessa atitude predadora que deriva toda a máscara de infra-vermelhos que cobre cada plano – e irremediavelmente converte cada imagem num espectáculo em si e por si mesma – deste filme chamado… Aggro Dr1ft. Pronto, pah, está revelado – se não adivinhaste antes… – o nome “do bicho”: que raio de título é este? Que raio de filme é este? É a nova “posta de pescada” conceptual do sempre-inesperado Harmony Korine.
Digo “posta de pescada” porque este “conceptualismo” não se leva assim tão a sério (não se leva, pois não?) e é de gosto duvidoso (é, não é?) ou, pondo de outra maneira, não procura a delicadeza ou a fascinação fácil e douta, mas antes põe-nos a vasculhar, isso sim – como os velhos dementes fazem com os caixotes do lixo em Trash Humpers (2009) -, num inconsciente colectivo profusamente colonizado pelas imagens da publicidade, dos videoclipes, dos reels e, pois claro, dos videojogos. É, por isso, não só uma visão “reveladora” de predador, mas, mais ou menos do que isso, também é uma infra-visão do lixo todo que a nossa retina acumula sem lhe saber dar um desígnio. Acho que, como já havia acontecido, mas de maneira menos literal, sobretudo em Spring Breakers (Spring Breakers: Viagem de Finalistas, 2012) e, de maneira muito literal, no dito Trash Humpers, Korine nos dá acesso a um submundo de referências “do contemporâneo”, mas fá-lo de uma maneira simultaneamente excessiva e austera, porque o filme, orgulhosamente superficial ou epidérmico, e, diga-se, dramaturgicamente muito árido, é um acumulado de lugares-comuns afogados numa impressionante bateria de efeitos, “desbocados” e algo repetitivos, em torno das ditas possibilidades da fotografia em infra-vermelho (consta que o realizador se perdeu de amores por uma câmara especial produzida pela NASA).
Não sei bem onde estamos – ou para onde podemos ir – para lá dessa tal “máscara perceptiva” que cobre cada plano, e sufoca a possibilidade de guardarmos (ou salvarmos) algo muito além da própria experiência visual (e sonora, diga-se) a que o filme nos faz aceder, qual realidade “infra”. A narrativa sobre um assassino que é um herói solitário para os seus capangas e um pai (e amante) exemplar para a sua família parece-me tão espessa quanto uma folha de papel vegetal. Mas Korine não esconde que não busca qualquer “espessura” dramática ou dramatúrgica: este é um filme para ser visto e ouvido como se fosse possível “vestir” uma obra ao invés de a seguirmos ou nela adentrarmos. Que se lixe a psicologia das personagens? Que se lixem as personagens, com ou sem psicologia? Sim, mas seguramente que se salve o seu corpo reanimado por um diabólico manto infrared. O cinema surgirá aqui como proposta da possibilidade de uma segunda pele ao nível da retina? Acho que, neste particular, Korine vai além do mero “recreio com uma câmara”, pois se investe na criação de uma pele intoxicante, apocalíptica, orgulhosamente silly, foleira e sentimental ou sentimentalista (porque a verdade é que este assassino cruel e frio só quer “go home again” e viver “o amor puro”, fórmula final menos elaborada do que algumas frases ouvidas numa telenovela da TVI).
A propósito de tudo isto, passava por esta experiência e lembrava-me de um filme recente visto em sala: La bête (A Besta, 2023). Sei que assististe ao filme de Bertrand Bonello, onde aliás há espaço para uma citação de Korine e do seu inenarrável Trash Humpers, e gostava de o trazer à colação agora, face a Aggro Dr1ft. Não reajo aos dois filmes da mesma maneira, mas há um reduto em mim que me faz não me precipitar em “deitar fora o bebé com a água do banho” – falo aqui sobretudo do título francês – dizendo a mim mesmo: “Se não há nada para salvar aqui, se a dramaturgia é um caos e a proposta estética e formal uma lição de auto-indulgência, no entanto, não consigo ser indiferente à ousadia e à lata que fez alguém levar tão longe tal ‘recreio’ narrativo e formal, numa experiência fílmica, de som e de imagem, que não dá abébias a ninguém mas também, pondo de outra maneira, ‘que ninguém pediu’ ou ‘ousou pedir'”.
Bem, fica a dica e espero que este e-mail te encontre com pica para falarmos de mais uma experiência orgulhosamente “à deriva” do camarada, amigo, palhaço Korine.
Abraço,
Luís Mendonça
Caro Luís,
Por vezes, quando nos sentimos anestesiados temos de lançar mão de uma picareta para destruir as crostas que se formam à nossa volta, as acomodações, os hábitos, as ligações sacrossantas. Harmony Korine parece ser um cineasta guerreiro, nietzschiano, sempre à espreita de convocar o caos: no lixo, na vida “adr1ft”, no mito da eterna juventude. Essa é a forma de olharmos para as fundações das nossas casas e percebermos como estão cheias de bicho por dentro, a apodrecer.
O cinema talvez seja esse caruncho — não todo o cinema, mas precisamente aquele que exigia que Aggro Dr1ft tivesse espessura nas suas personagens e uma série de peripécias sustentável. Mas não, a deriva é quase total: as cenas improvisadas, com pouca direcção de atores, a montagem fechada numa semana (o resto do tempo foi usado para a criação de diversas camadas de efeitos especiais), o uso de “maquinaria” da NASA back to back com a IA, a incrível banda sonora do Araabmuzic que ia mandando ao Korine as músicas sem nunca ter visto o filme. O que vem depois da narrativa linear? Korine parece uma perspicaz antena que sente que a vida está hoje mais próxima do Tik Tok, da criação de um “game core” (expressão dele) para poder cortar através — talvez não seja por acaso que a linha da deriva seja a de um assassino — para uma corporealização da obra, para a “velhinha” experiência sensorial, que nas mãos de Korine também é droga audiovisual.
A deriva é precisamente essa droga que permite uma criação along the way, semi-automática que, ao mesmo tempo que quer ir queimando em lume brando a retina, também quer despedir-se do corpo. Pois trata-se de um abismo (ainda Nietzsche): as câmaras térmicas capturam um “outro lado” da vida, e do “outro lado” do corpo está a cibernética. Aproveito aqui para dizer que acho muito interessante essa pertinente referência ao Predator. E é pertinente, não apenas pela questão da visão térmica, mas também porque se trata de um filme que anuncia essa biotecnologia. Esse corpo em falência, com o futuro metálico escrito na sua profundidade.
Para mim, a deriva de Korine é esse cocktail onde se busca a referida vitalidade (a aragem), mas onde, ao mesmo tempo, há uma depressão e uma melancolia. É um jogo de computador, militarizado, que afinal busca o amor e a liberdade do LSD. “The old world is no more”, diz BO no início do filme. Estamos sempre numa espécie de filme imobilizado: as cenas são paradas de corpos em display e da voz-off emerge uma poesia cromática e terminal. Confesso que me lembrei dos filmes “terminais” de Terrence Malick nesse registo de flutuação e melancolia, só que Korine tem a inteligência e a ironia de um Miguel Gomes.
Aggro Dr1ft quer ser um filme free style, um naufrágio constante na cor e nas possibilidades de olhar para, uma mantra vazio da verbalidade. O adeus à linguagem (verbal) parece ser de facto, como dizes a propósito da TVI, uma coisa que só às televisões e bestsellers serve.
Mas, afinal de contas, deixo-te com uma pergunta, que é uma dúvida que tenho: se é esta a nova experiência sensorial que une o cinematográfico a outros regimes de fruição da imagem, se é a deriva e a distância, o whatever individual, o traço do contemporâneo, então de onde brotará a emoção que, pelo menos outrora, em vez de destruir com picareta colava como reflexo? A emoção de sermos um eu que era (como) um outro? Talvez a pergunta nem faça sentido, talvez a emoção seja pertença desse velho corpo e esteja pronta a dar lugar a outra coisa. “Dropping bodies, dropping souls.”
Abraço,
Carlos Natálio
Olá Carlos,
A palavra que sublinho, desde já, é exactamente “emoção”. E pergunto: quo vadis emoção? Porque, apesar de fascinante a experiência, e de a ter usufruido por aquilo que ela é e propõe criticamente “colada” à pele das imagens e sons, tal como aos corpos em display, tenho receio que Aggro Dr1ft esteja demasiado preso à ideia – que, parece, Korine já explora ou aprofunda no seu novo filme, em estreia no próximo Festival de Veneza, segundo título da sua novíssima produtora EDGLRD – de tornar os filmes “jogáveis” – eu tinha dito na correspondência anterior que me parecia “tornar os filmes ‘vestíveis'”, mas é mais isso: “jogáveis”. Estes mundos dos videojogos tornaram-se tão sedutores que, hoje em dia, marca de uma certa “geração Z”, os miúdos preferem “ver jogar” do que jogar propriamente (é interessante também imaginar isto como, simultâneo, o triunfo maior da indústria de videojogos e o seu potencial fim comercial). Há vídeos sem fim – de alguns dos mais famosos influencers – com explorações de mundos virtuais, em jogos como GTA mas também outros, de carácter mais social, tal como Fortnite. Ao velhinho “choose your weapons” segue-se, de maneira mais clara, um “choose your skins”: no jogo e, fora dele, quem o controla e comenta. Portanto, também é um: “choose your player”. Já estou a imaginar uma versão de influencer desta nossa crítica que era fazermos “um vídeo de reacção” ao Aggro Dr1ft, mostrando a nossa reacção a cada plano, a cada efeito, a cada elemento novo de animação infrared.
Acho que, no âmbito de uma certa “arqueologia ou genealogia dos media“, Aggro Dr1ft é inteligente e provocador quanto baste. E parece que EDGLRD quer ser para esta área de estudos, o que o Etnography Sensory Lab, da Universidade de Harvard, foi e está a ser no campo da antropologia visual. Estou nessa, Vanessa! Venha, agora, Baby Invasion!
Concordo muito com a comparação com Malick. Já era visível essa montagem em fluxo no Spring Breakers, com muitos jump cuts, avanços e recuos, alternância do perto com o mais vasto (o close-up com o plano geral ou muito geral), mas é isso: as personagens de Korine aparecem em display, “interpassivas”, não interagindo entre si e com o mundo. Ao contrário de Malick, não buscam alguma forma de toque. O mundo tornou-se opaco, indiferente, whatever… O mundo como um longo screensaver. Nele, Korine regista poses, slogans e “máscaras” para exibir (se calhar ainda estamos no território de uma nova antropologia, no campo da realidade virtual, e talvez Korine seja uma espécie de Noémia Delgado on crack).
Queria, portanto, sem mais delongas e “derivas” intelectuais, perguntar-te se, afinal, te emocionaste. E o que é que pulled the tr1gger em ti para além desse efeito extasiante da “retina queimada”, depois do longo banho térmico ou, ponto de maneira mais simples, questiono-me: é possível sentir-se algo por estas personagens nestes mundos? Quão profundo pode ser o nosso amor por elas?
E que caminhos aponta este “projecto de cinema”? Especulo já sobre essas invasões futuras em modo first person shooter e thriller de home invasion que aí vêm, em Baby Invasion.
E La bête: será que viste mesmo ou percebi mal? Não achas que tem cabimento uma possível comparação, mesmo que em prejuízo do filme francês?
Abraço,
LM
Olá Luís,
Depois de ter carregado no botão enviar na minha resposta ao teu e-mail fiquei a pensar que a palavra emoção talvez fosse larga demais, inadequada. Isto porque há um lado emotivo, pelo menos eu senti-o, diante do êxtase das cores, da coolness das poses, dá vontade de perscrutar essa “nova antropologia”, como dizes e bem. Quem não se emociona, pelo menos, com tal ambição? Mas o que queria dizer, e sei que pela tua resposta percebeste onde queria chegar, era a essa identificação com as personagens. Não senti essa ligação e questiono de facto se há uma identificação qualquer geracional com esse drift, com essa deambulação como jogo da e na realidade. Enquanto o espectador de cinema absorve algo da acção (com seus desafios e objectivos), o espectador destes vídeos que veem alguém jogar, embora comunguem dessa expectativa do desfecho (o que vai acontecer a seguir?), talvez se liguem mais ao sucesso e ao fracasso de quem joga do que com personagens. Por outras palavras, é como se se identificasse com o mito do jogador/realizador do que com os mundos e possibilidades que estes propõem.
Num texto de 2021, «A videographic future beyond film», o Kevin B. Lee escrevia uma coisa que nunca mais me saiu da cabeça. Dizia ele, no contexto dos ensaios audiovisuais, que questionou os seus alunos face aos ensaios audiovisuais e que estes lhe disseram que quando viam um no YouTube muitas vezes não o estavam propriamente a ver, mas, no seu multitasking, sentiam-se sim apaziguados pela presença parassocial de alguém “inteligente” (a expressão é dos estudantes) e por terem os seus quartos preenchidos com o som de monólogos estimulantes da autoria de uma personalidade que eles consideravam apelativa. E Lee, pergunta-se: será que o informativo é mais um ambiente estético anódino, perante estas necessidades sociais?
O que talvez permita pensar essa transferência da emoção para o operador da consola e menos para esse mundo que é disponível e que, por isso, ou falha tudo ou acerta tudo, não tem profundidade dramática. Aliás, as frases que Bo ou a sua esposa dizem acerca da família, do desejo, do bem e do mal, poderia ser coisas escritas pelo Gustavo Santos. A posição do jogador actualiza, parece-me, a do ser humano com o seu comando que por entre zappings, vislumbrava a seu bel prazer nesgas de realidades (imperfeitos avatares). Mas aqui o player (repara como no inglês, player também pode ter um sentido depreciativo, aquele que dispõe as peças para seu proveito) “uberiza” o mundo e nesse jogo mantém tudo à distância higiénica, afasta-se de todos os elementos que, potencialmente, ponham em causa essa acção de brincadeira e uso. E chegamos à montagem fluxo, ao mundo screensaver, à superfície das personagens, às frases feitas, ao mundo para ser desfrutado e usado. Nesse sentido, a angústia existencial de Bo, a sua terminalidade não são para serem levadas a sério. Penso que nós projetamos isso no gesto real e criativo de Korine, o que é diferente. É isso que penso nos move, nos “e-mociona”.
Ainda sobre esse distanciamento, sobre essa falta de empatia, talvez a antena de Korine tenha percebido que é na figura dos serial killers (veremos com esse Baby Invasion continua este projeto) onde estes problemas estão à flor da pele e constituem uma patologia.
Sobre o La bête, percebo essa ligação à falta de emoções, à perda do humano diante da deambulação tecnológica. Mas penso que Bonello se perde no gesto entre A Fera na Selva de Henry James, a ficção científica, o charme de Seydoux e o aspecto dramático e corrosivo de tudo isto. Mas vi o filme num contexto particular de programação e gostaria de o ver novamente, nem que seja depois deste Aggro Dr1ft.
Abraços plenos de intensidade dramática.
CN
Caríssimo CN,
It’s a wrap! Falar de emoção aqui é, mais rigorosamente, falar de “e-moção” – é isso! Mas acho que na ambição de jogar e fazer jogar este jogo, há muita diversão, muita lata e também se percebe haver amor a “um futuro” do cinema. Em que o cinema ainda é possível como recreio esfuziante e algo apatetado, para “criar uma atmosfera criativa” ou preencher janelas do desktop. Temos se calhar é de aceitar que o cinema será toda uma outra coisa em relação à qual não será fácil a habituação para nós, velhas carcaças de um tempo ainda muito/demasiado lógico ou analógico.
Partilho, neste seguimento, dois excertos (da mesma página 37) do livro Uma aberta nos tumultos raciais, publicado em Portugal em 2023, pela Barco Bêbado. O autor, claro, é esse anarquista romântico chamado Harmony Korine – que Deus o tenha:
Queres comentar?
Um abraço com muito cinema,
LM
Bom dia,
É isso: a energia colocada no cinema, mesmo no medíocre (o que não é de todo o caso) envolve amor e uma crença. Por vezes, desconstruir negativamente a estrutura de uma obra envolve remexer com esse sentimento e por isso é tão doloroso.
Não acho que devamos perder tempo com diagnósticos de futuro pois ele é um dado irremediável e irresistível. Não se pára o mar com uma colher.
A cada um de nós cabe apenas ou adormecer de tédio ou excitar-se com o prazer da experimentação. Korine pode definir-se como “anarquista romântico”, mas é também esse grande experimentador. E isso está nos antípodas do pessimismo e dos discursos do apocalipse. Talvez o desafio seja apenas, ainda e sempre, onde colocar a câmara. Mesmo não havendo câmara, desde que haja um olhar, um olhar sobre si e sobre o exterior.
Até já,
CN