Esta História do cinema (e os seus filmes) não pode encarar‑se como definitiva. Deve ser vista como uma viagem de comboio em que seguimos em frente, na linha do tempo e dos sonhos, enquanto olhamos por janelas e visitamos paragens até um destino que será redescoberto, no futuro, como uma cidade a que regressamos com outras bagagens, experiências, e outros filmes entretanto descobertos pela nossa curiosidade.
Partimos na viagem de comboio Espelho Mágico: Uma História do Cinema (edição de Orfeu Negro), conduzida pelo crítico, programador e cineasta Francisco Valente, pelas suas mais de seiscentas páginas, treze capítulos temáticos, centenas de filmes revisitados, citados e interligados. Propondo ‘uma’ História do Cinema e não ‘a’ História do Cinema, Francisco Valente apresenta a autobiografia de um espetador, construída com base nos seus visionamentos, entrevistas, ciclos e leituras, e procura estabelecer uma interação e diálogo entre os leitores e as imagens em movimento. Com a existência de múltiplas versões de Histórias do Cinema, o crítico, programador e cineasta procurou colmatar, como referiu no episódio de “De Olhos Bem Fechados”, da Antena 1, uma ausência no mercado literário cinematográfico em Portugal, caracterizado pela publicação de livros direcionados exclusivamente para um tipo de público, ora académico e especializado, ora leigo e comum, estes últimos através dos denominados acessíveis coffee-table book, compostos maioritariamente por ilustrações.
Tentei escrever um livro que servisse tanto para quem vai ao cinema, e até pode ir ver apenas filmes que saem de Hollywood, mas vai com muita frequência, e quer saber um pouco mais sobre a História do Cinema – os filmes que vieram antes e de que forma chegámos até hoje; como para alunos do primeiro ano da Escola de Cinema, ou que querem procurar um conhecimento mais apurado e fazer disso a sua vida. Tentei fazer um livro que juntasse diferentes tipos de leitores que gostam de cinema por razões diferentes.
A viagem do tempo que deambula de forma algo cronológica, do cinema clássico ao cinema contemporâneo, cartografando geografias, narrativas, estéticas e técnicas diversas, inicia-se com o capítulo “Um Comboio que Acelera na Noite”, num regresso aos primórdios do cinema: o nascimento a 28 de Dezembro de 1895, a criação do cinetoscópio por Thomas Edison, o desenvolvimento do cinematógrafo pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, inventores de L’ Arrivée d’ un train en gare de La Ciotat (1895) e La Sortie de l’ Usine Lumière à Lyon (1895), sem esquecer a referência à primeira mulher a criar outro filme pioneiro da História do Cinema: Alice Guy‑Blaché, com La Fee aux choux (1896).
Em “Fantasmas (They Live)” e “Um Rosto na Multidão”, capítulos 2 e 3, o leitor confronta-se com o período a partir do qual “os fantasmas de realidade encontram um caminho no cinema para se tornarem visíveis aos olhos dos espectadores”, na forma como se “filmaram multidões e os rostos que as compunham”, respetivamente, e ainda, paralelamente, no modo como a História começou a ser contada individualmente e coletivamente. São exemplos: The Birth of a Nation (O Nascimento de Uma Nação, 1915), em que D. W. Griffith “deu vida aos fantasmas do seu país”, Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957), no qual Ingmar Bergman nos ensina como “os nossos fantasmas teimam em não nos abandonar na duração do nosso pensamento e emoções”, ou ainda Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Doutor Caligari, 1920), de Robert Wiene, que colocou “um espelho à frente de nós, espectadores, para vermos o fantasma de futuros crimes”, inaugurando o denominado expressionismo alemão. Por sua vez, Carl T. Dreyer procurou retratar com simplicidade a expressão física da personalidade mística Joana d’Arc em La Passion de Jeanne d’ Arc (A Paixão de Joana d’ Arc, 1928), abdicando de quaisquer artifícios, e Jean Renoir, em Le Crime de Monsieur Lange (O Crime do Sr. Lange, 1936), “sugeria, a futuras gerações de cinéfilos e cineastas, que a «verdadeira vida» podia estar no ecrã: no prazer em se fazer um filme ou em suplantarmos, numa rodagem, o prazer que retiramos da vida quotidiana.”
Complementando a reflexão sobre as histórias, não poderiam deixar de se evidenciar a observação e descrição dos elementos visuais, recorrendo aos códigos de linguagem cinematográfica, que se encontram presentes ao longo das várias referências a momentos e cenas de filmes, a título exemplificativo Bronenosiets Potiomkin (O Couraçado Potemkine, 1925), de Serguei Eisenstein, e À bout de souffle (O Acossado, 1960), de Jean‑Luc Godard.
Os planos do filme, oblíquos, mostram a vertigem de uma revolta geral; a montagem, nunca vista com este ritmo, é rápida e lancinante como a multidão que se junta para derrubar um elemento repressivo; a colocação das pessoas, em vez de personagens, alterna entre grandíssimos planos dos seus rostos e a orientação para uma marcha mística, rumo ao horizonte, a caminho de um novo futuro;
A irreverência e o idealismo de À bout de souffle, que introduziu técnicas hoje tidas como banais (o jumpcut, em que uma cena sofre cortes repentinos no mesmo plano; falsos raccords, em que planos seguidos parecem não ter sequência; sons que espelham o ruído das nossas vidas e se sobrepõem às conversas), viam‑se assombrados pelo destino pessimista das personagens, como se o realizador já tivesse consciência, no seu primeiro filme, das verdadeiras capacidades do cinema em conseguir substituir o movimento da realidade.
De que modo o cinema reflete desejos e obsessões? Os capítulos 4 e 5, “Uma Tela Chamada Desejo” e “Uma Magnífica Obsessão”, procuram incidir sobre esta questão, apoiando-se em obras como a do controverso e polémico surrealista Luis Buñuel, que a partir de filmes como L’ Âge d’Or (A Idade de Ouro, 1930) e Belle de Jour (A Bela de Dia, 1967) foge às convenções sociais, morais e religiosas e à repressão sexual; e de David Cronenberg (Crash, 1996), que mistura “o desejo dos corpos humanos com a nossa atracção pela tecnologia, como se esta potenciasse as manifestações várias do prazer físico”. Alfred Hitchcock, que em Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) “pegou numa história sentimental e melodramática para reflectir, na sua vertigem, as maiores obsessões e perversões”, e Federico Fellini que, em 8½ (Fellini Oito e Meio, 1963), “reflete o desfile de imagens que a imaginação produz com os acontecimentos das nossas vidas”, juntam-se ao leque.
O crescimento do film noir, “cinema de tons expressivos e contornos policiais sobre o cinismo e a solidão dos corações desiludidos”, fortemente influenciado pelo expressionismo alemão, com as suas luzes e sombras, estabeleceu-se em Hollywood a partir da década de 1940, no período da Segunda Guerra Mundial, destacando-se cineastas como Fritz Lang, Howard Hawks ou Nicholas Ray. Também objeto de estudo no capítulo 6, “Viver e Esquecer”, foram os filmes do género musical, que se evidenciaram como “obras fantasiosas que inventavam novos universos para nos esquecermos daquele em que vivíamos”, e em que “o poder catártico da música levantou emoções escondidas de uma maneira que as palavras não conseguiam fazer sozinhas”, como Victor Fleming nos mostrara em The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939).
Nos capítulos seguintes, 7 e 8, “Depois do Fim” e “Uma Nova Vaga”, mergulhamos até filmes como Roma Città Aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), de Roberto Rossellini, Ladri Di Biciclette (Ladrões de Bicicletas, 1948), de Vittorio De Sica, Hiroshima, Mon Amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959), de Alain Resnais, e Cléo de 5 à 7 (Duas Horas na Vida de Uma Mulher, 1962), de Agnès Varda, enquanto referências do Neorrealismo Italiano e da Nouvelle Vague, respetivamente. Os movimentos cinematográficos emergiram a partir da expressão de preocupações ideológicas, técnicas e estéticas, assentes no experimentalismo, na disrupção para com os cânones estabelecidos pela indústria e cultura dominante e no recurso ao cinema como instrumento de educação e consciencialização. Com o propósito de expressar as realidades político-sociais e culturais, as novas cinematografias retratavam narrativas compostas por personagens marginais, corpos estranhos que não se enquadravam na sociedade, inseridos em contextos complexos, com os quais o cidadão comum conseguiria partilhar o sentimento de identificação. Assinalavam-se, ainda, elementos formais: as filmagens em espaços públicos ou em apartamentos comuns, existindo um afastamento dos grandes estúdios; os baixos orçamentos, distanciando-se das grandes produções; a contratação de atores desconhecidos ou menos reconhecidos por parte do público, relegando a estratégia de star system; e o recurso a câmaras leves, de forma a permitir o manuseamento nos espaços públicos (A propósito de estudar os novos espaços da crítica cinematográfica no contexto da digitalização, na minha dissertação de mestrado abordei, entre outros tópicos, o surgimento dos Cahiers du Cinéma e o eclodir de novas cinematografias[1]). Em Portugal, o Cinema Novo teria em Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, e Belarmino (1964), de Fernando Lopes, obras-chave da vanguarda cinematográfica, enquanto no Brasil se evidenciariam nomes como Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade.
Nos Estados Unidos da América, a revolução também aconteceu. Por essa razão, Francisco Valente a ela lhe dedica o capítulo 9, “The Dream is Over”, incidindo sobre a Nova Hollywood. Bonnie and Clyde (Bonnie e Clyde,1967), de Arthur Penn, que se assumiu como um objeto de contracultura, fugindo às normas e convenções comuns, foi beber à Nouvelle Vague as suas fontes de inspiração e serviria, assim, como ponto de partida para a posterior realização de filmes por parte dos cineastas canonicamente reconhecidos como Martin Scorsese (The Big Shave, 1968; Taxi Driver, 1976), Peter Bogdanovich (The Last Picture Show – A Última Sessão, 1971; They All Laughed – Romance em Nova Iorque, 1981) e Steven Spielberg (Jaws – Tubarão, 1975; Close Encounters of the Third Kind – Encontros Imediatos do Terceiro Grau, 1977).
Num país em autodestruição, Scorsese usou o cinema para escapar ao microcosmo onde tinha crescido: o bairro italiano para onde os avós sicilianos emigraram, décadas antes, e onde um aspirante a realizador, antes de querer ser padre, assistiu à queda dos amigos na delinquência.
Louvado pela crítica e pelo público, Bogdanovich entrou pela porta grande de Hollywood com apenas trinta e um anos, exibindo uma confiança retirada das lições de grandes mestres. De todos os nomes da Nova Hollywood, Bogdanovich foi o que mais nostalgicamente se viu atraído pelo «velho mundo», construindo uma relação de cumplicidade com realizadores que viveram uma década difícil (ou inactiva) com projectos caídos em esquecimento.
A capacidade de nos maravilharmos com o nosso reflexo também se tinha tornado, anos antes, a obsessão de um jovem que fazia filmes caseiros antes de se tornar a estrela da Nova Hollywood. Contemporâneo de Scorsese, Coppola e outros movie brats, Steven Spielberg lançou o pânico pelos Estados Unidos com duas notas de música que anunciam um monstro assassino nas suas praias.
Se os capítulos 4 e 5 exploraram o modo como o cinema reflete desejos e obsessões, os capítulos 10 e 11, “We Could Be Heroes” e “A Idade Maior”, explicam-nos a forma como os novos heróis e vilões dos filmes assumiram novas configurações, nomeadamente no cinema de Aki Kaurismäki [Varjoja paratiisissa – Sombras no Paraíso, 1986; La Vie de bohème – A Vida de Boémia, 1992) e Kenji Mizoguchi (Akasen chitai – Rua da Vergonha, 1956]; e em como as imagens em movimento são capazes de vestir as dores de crescimento e amadurecimento, acompanhando o desenvolvimento psicológico e emocional de protagonistas que percorrem a trajetória entre a infância e a idade adulta, respetivamente. Recupera-se, a este propósito, Khane‑ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), de Abbas Kiarostami e Banshun (Primavera Tardia, 1949), de Yasujiro Ozu.
Aki Kaurismäki faz nascer nesse filme uma história de amor e esperança entre duas pessoas que não têm nada, excepto a precariedade dos seus trabalhos. O verdadeiro valor da vida, para as personagens do realizador finlandês, encontra‑se na dimensão imperceptível dos elos humanos, matéria por excelência de um cinema delicado que trouxe um novo realismo poético às imagens em movimento.
O retrato individual de cada personagem, tal como o olhar que Mizoguchi constrói sobre um grupo, trouxe um reflexo realista para espectadores se reverem nos problemas normais das vidas marginais, desmistificando tabus e mostrando como qualquer mulher estaria a um passo de entregar o seu corpo, numa vida já subjugada nas relações conjugais, para assumir um papel servil face a um género fraco mas dominante.
Filmando uma criança como personagem de sentimentos e angústias tão graves quanto os de qualquer adulto, Kiarostami filma o esforço de um rapaz num sítio onde, tal como as histórias e as fábulas que ouve em casa e na escola, cada esquina e cada porta podem esconder tanto um amigo como uma ameaça à sua estatura.
As personagens de Ozu convivem com um dilema constante: aceitar o momento em que nos devemos desapegar dos elos que nos deram vida – um pai, uma mãe, um amor – para nos juntarmos a outros que trazem um tempo novo e desconhecido. O estilo visual do realizador, pela delicadeza com que olha para os intérpretes e os sentimentos que se lhes adivinham nas feições, é um reflexo da vida no verdadeiro sentido do termo.
“Sonhos de Ouro” e “There Is a Light That Neves Goes Out” intitulam os finalíssimos capítulos 12 e 13, e mostram-nos, a partir de realizadores como Charlie Chaplin (The Kid – O Garoto de Charlot, 1921) e Nanni Moretti (Ecce bombo, 1978) e dos seus respetivos alter egos, o modo como a comédia opera enquanto antídoto cinematográfico, assumindo “um papel de destruição das aparências”, provocando-nos risos “por reflectir a realidade com recursos dramáticos” e salvando “as nossas vidas não por nos distanciarmos dos momentos difíceis, mas por nos aproximar, de maneira comovente, de tudo o que nos causa sofrimento”; assim como de que modo, contemporaneamente, a sala de cinema continua a ser “um lugar de acção e trazer dignidade aos espetadores”, recuperando cineastas como Pedro Costa, que realizou No Quarto da Vanda (2000) e Vitalina Varela (2019) sem quaisquer hiperproduções e equipamentos pesados, recorrendo a dispositivos minimalistas e captando, assim, lugares marginalizados. Dispositivos minimalistas, esses, utilizados também pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul [Sud pralad – Febre Tropical, 2004; Loong Boonmee raleuk chat (O Tio Boonmee Que Se Lembradas Suas Vidas Anteriores,2010)]que, com o seu slow cinema, “transforma a sala de cinema numa experiência sensorial que nos levanta das cadeiras, funde‑nos ao inconsciente e reflecte o desejo de sermos tocados pelas imagens que vemos.”
Se no início do presente texto referia que à reflexão sobre as narrativas e histórias se juntava a pertinente análise dos elementos visuais e, consequentemente, o recurso à linguagem cinematográfica, não pode deixar-se de salientar a ideia anteriormente apresentada no que diz respeito à sala de cinema – lugar sagrado, “condenado a encerrar-se ao mundo”. As valiosas considerações partilhadas por Francisco Valente sobre a conjuntura contemporânea contribuem, e muito, para a discussão sobre os diferentes formatos de exibição cinematográfica e a experiência de visionamento e fruição. Pese embora não seja recente, a mudança de paradigma, sentenciada (por muitos) como a decadência ou a morte do cinema, continua a dar pano para mangas.
Na intimidade, na política ou nas imagens em movimento, a nossa relação com a realidade passou a ser dominada por elos virtuais que, embora imediatos, nos afastam de uma relação mais estreita com o mundo, levando‑nos de um grande ecrã, entre outras pessoas, a outros mais pequenos feitos para perfis individuais.
Se em Espelho Mágico: Uma História do Cinema a procura por estabelecer uma interação e diálogo entre os leitores e as imagens em movimento foi uma constante ao longo das incontáveis linhas que o compõem, concluí-lo com a ideia da convivência e comunhão entre os cinéfilos e o cinema foi aproximar-nos ainda mais. Assim como as carruagens, os carris e as janelas do comboio necessitam dos passageiros para completar a viagem, também os rolos de película, os projetores e a realidade dos filmes precisam dos espetadores para fazer parte da história do cinema. Independentemente dos desafios que daí advenham e das direções para onde caminharemos, perdurará a certeza:
De tudo isso somos feitos e com tudo isso continuamos a viver entre os outros, se reconhecermos o quanto precisamos deles: dos espaços onde nos juntamos, das pessoas que os preenchem e dos filmes que revelam o que somos e podemos ser. Os filmes, frágeis e imensos, talvez apenas nos digam, na luz que vem ao nosso encontro numa sala escura, aquilo que mais desejamos ou tememos ouvir: sem nós, também eles não conseguem viver.
[1] Fernandes, B. C. (2022). Os novos espaços da crítica cinematográfica no contexto da digitalização: O caso de À Pala de Walsh [Dissertação de mestrado, Iscte – Instituto Universitário de Lisboa]. Repositório Iscte. http://hdl.handle.net/10071/26807.