“[…] for here there is no place
that does not see you. You must change your life.”
Tens de mudar de vida é o título de um livro publicado pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk em 2009. Poderia ser o título de um livreco de auto-ajuda, mas a origem desta frase é nobre, correspondendo ao final de um dos mais famosos poemas de Rainer Maria Rilke, “Archaïscher Torso Apollos”. Uma frase que tem tanto de simples quanto de equívoco ou denso. Em Another Woman (Uma Outra Mulher, 1988), ela surge pela voz de Marion (Gena Rowlands), quando revisita os pertences da sua mãe e se perde em memórias: um outro poema de Rilke sobre o qual tinha escrito um ensaio aos 16 anos, sobre uma pantera que contempla a morte do outro lado da grade, e as lágrimas da mãe numa das páginas do livro, sobre o seu poema favorito.

É a voz de Marion que nos guia desde os primeiros instantes do filme, num relato de uma vida plena, com realização profissional e pessoal, com laços sentimentais alargados, uma prateleira cheia de fotografias de momentos de felicidade. Uma posição confortável, aquilo que poderia ser o alcançar de um futuro ambicionado. Em suma, uma vida de que pode orgulhar-se. Et pourtant… é também nesse relato inicial que se detecta já um pequeno grão de areia, quando Marion passa rapidamente pela fotografia do irmão em parcas palavras. Já aí o adivinhar da ilusão, da mentira para si própria, do afastar de realidades que possam chocar com a imagem da felicidade.
A proposta de Woody Allen em Another Woman é muito simples (e nada simples): uma mulher que é obrigada a revisitar o passado e a reavaliar o presente, a reclassificar experiências que já tinham sido arrumadas nas suas gavetas, qualificadas e encerradas. “I guess we all imagine what might have been” – diz-se a dado momento. Imaginar o que podia ter sido pode ser um processo doloroso, feito de lamento e remorso. Um processo tímido e triste como a Gymnopédie que ponteia todo o filme.
Num filme feito de vozes, a “viagem” de Marion é espoletada pela voz de uma mulher que lhe chega através de um sistema de ventilação defeituoso, uma mulher no divã de um psicanalista (esse cenário tão caro a Woody Allen). Hope (Mia Farrow) mostra-se desesperada com o rumo da sua vida, frustrada, afastada do marido que dorme ao lado dela. Essencialmente, ela sente-se sozinha, uma solidão acentuada pelo facto de Hope estar de esperanças (como viremos a constatar). Marion não consegue evitar prestar atenção a estas confissões, ouvindo-a quase como hipnotizada, com um enorme desconforto, mas total compreensão. Porque estes são muitos dos sentimentos que lhe são próprios, mas que ela se recusa a admitir. A situação de Marion contribui para este perigoso abrir de portas, com demasiado tempo solitário e disponibilidade proporcionados pela sabática que deveria ser dedicada à escrita de mais um livro – desvios que Marion tenta continuamente contrariar, mas com pouco sucesso. A inquietação provoca noites mal dormidas e o cansaço adicional provoca irascibilidade e períodos de sono durante o dia, com sonhos impiedosos. A revelação de uma vida usada como uma máscara.

O questionar da sua situação presente prende-se, desde logo, com o seu casamento. Ken (Ian Holm) é, também ele, alguém plenamente realizado profissionalmente, um conceituado cirurgião, mas frio. A relação passa por incontáveis compromissos sociais e muito pouca intimidade. Um pouco como o tema de Jerome Kern e Dorothy Fields que se ouve ao piano, “a fine romance, with no kisses”. O que leva Marion para mais um “what might have been”. Ela conheceu outrora um homem perdidamente apaixonado por ela, um homem de sentimentos arrebatados, o absoluto oposto de Ken. Um capítulo encerrado por ela, mas que ela recorda com nostalgia e ternura. Essa memória acontece numa festa em que se anunciava o casamento próximo de Marion e Ken, onde Larry (Gene Hackman) tenta uma derradeira vez declarar a genuinidade da sua paixão a Marion. Ela é, subitamente, muito jovem, menos controlada, abrindo uma brecha ao seu autodomínio, o seu cabelo num juvenil rabo-de-cavalo, agitando-se (em nenhuma outra fase da sua vida vemos o seu cabelo assim liberto).
O confronto com Ken, o reconhecimento de que o rei vai nu, dá lugar a uma discussão acalorada, justamente o tipo de discussões que Marion dizia sempre evitar, porque levam os intervenientes a dizerem coisas de que se arrependerão. Uma tentativa de evitar comportar-se como a sua amiga Claire (Sandy Dennis), que não guarda para si qualquer das suas amarguras. É Sandy Dennis, um rosto que imediatamente associamos a Who’s Afraid of Virginia Woolf? (Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, 1966) a remeter-nos para outras disfuncionalidades matrimoniais.
Revisitar o passado é uma tarefa aterradora, como o pai de Marion reconhece, dizendo que há momentos em que nem um historiador deve olhar para o passado. O impasse sobre o que poderia ter sido cai como maldição na família de Marion: o pai que lamenta não ter passado a vida ao lado da mulher que mais amou, a mãe que verteu lágrimas sobre o poema de Rilke, Marion que confronta o falhanço do seu casamento, a culpa no suicídio do primeiro marido, a opção de não ter sido mãe.

“Her kiss was full of longing and desire.” Mas talvez o lamento maior seja mesmo ter descartado a paixão de Larry. É a cena mais comovente de Another Woman, quando os dois se abrigam da chuva numa passagem de Central Park, se olham nos olhos e se olham na alma. Larry sente a intensidade de sentimentos que parecia impossível em Marion, mas não é mais do que um momento fugaz, perdendo-a depois para sempre. É o momento mais belo e mais dilacerante do filme.
A concretização de um recomeço improvável está, de forma velada, na presença do actor John Houseman, que desempenha o papel de pai de Marion em idade mais avançada, e que depois de ter ganho notoriedade como produtor de cinema e por ter fundado o Mercury Theatre com Orson Welles, inicia uma produtiva carreira de actor no cinema aos 75 anos. Esta é a ideia com que Marion luta permanentemente – ainda é possível recomeçar? Daí o incómodo que ela demonstra perante o comentário de Laura (Martha Plimpton). Ela não se sente incomodada pelo pai, mas sim por si própria, por aquilo que ainda pode acontecer “na sua idade”.

É na cena final que Marion abandona o cinzento e enverga um conjunto de cor preta, quase em guisa de femme fatale. O preto é aqui o libertar do luto precoce, o redescobrir da intensidade dos sentimentos. Como se Marion tentasse emancipar-se da paleta de cinzentos desenhada por Sven Nykvist, os tons cinza e terra que dominam todo o guarda-roupa de Another Woman. Os tons dignificados e conformados de pessoas que encontraram o seu confortável lugar no mundo, numa vida fria e cerebral.
“I closed the book, and felt this strange mixture of wistfulness and hope, and I wondered if a memory is something you have or something you’ve lost. For the first time in a long time, I felt at peace.”
Será a esperança o contraponto da nostalgia? Se a nostalgia passa por um misto de lamento e felicidade pelo que passou, será a esperança o espaço que vai até esse mesmo misto de sentimentos possíveis no futuro, a incerteza da felicidade?