Antes de ter experimentado viver fora de Portugal, qualquer viagem era uma grande viagem. Entretanto fui viver para a Bélgica durante quase três anos e muitas coisas mudaram. Foi lá que me dei conta de um mundo cinematográfico que tinha ignorado até então: o da vídeo-arte, ou do cinema expandido, como lhe quisermos chamar. Ao contrário do cinema tradicional que, na melhor das hipóteses, nos leva até à sala de cinema mais próxima, estas obras criam uma forte ligação com o espaço em que se encontram. De certa forma, isso é um retrocesso em relação à democratização que o cinema (ou a reprodutibilidade técnica) trouxe à arte. Mas por outro lado confesso que, num mundo em que a internet domina quase tudo e já não é preciso sair de casa para fazer quase nada, agrada-me a “dificuldade” que existe para ver uma obra que não é acessível senão on-site.

Esta movimentação necessária do corpo ao encontro da obra torna-a, a meu ver, mais parte de uma vida ativa. Uma vida em que nem tudo vem ter connosco, em que nós também temos de ir atrás das coisas. Sempre gostei da ideia de um espectador activo, com vontade própria, e, até quando trabalho as minhas coisas gosto de imaginar que quem chegou até ao meu filme, de certa forma, o procurou.
Em relação a esta “vida activa” de que falo, vem-me à cabeça por exemplo a obra de John Cage As Slow As Possible, uma composição para órgão que está a ser tocada desde 2001 na igreja St. Burchardi em Halberstadt, na Alemanha, e está prevista durar 639 anos. Cada vez que há uma mudança de acorde na música, várias pessoas deslocam-se a essa terra para assistir ao evento – algo que, por exemplo, eu gostaria de fazer. Agrada-me a ideia de arte como impulsionadora de movimento.
Quando voltei a estar baseada em Portugal, depois da minha estadia na Bélgica, quis manter o à-vontade em viajar que adquiri durante o tempo em que lá vivi. Então, quando soube que havia em Bruxelas uma grande exposição dedicada ao trabalho da Chantal Akerman, curiosamente intitulada Travelling, decidi fazer uma pequena viagem para ir vê-la, passando também por Paris, onde também tenho quem me dê colchão.
Coincidiu este momento com a ideia de começar uma crónica aqui no À pala de Walsh. Sendo esta a primeira de várias, gostaria de vos apresentar um pouco a minha ideia: penso fazer deste espaço uma espécie de caderno de viagens em que registo e reflicto sobre os movimentos que a (vídeo)arte me leve a fazer. Para a minha prática criativa (de cinema, e mais recentemente também de video-arte/instalação), acho muito importante ver o que se faz actualmente, assim como o que já foi feito. Claro que é impossível ver tudo ao vivo mas, para além de ler sobre o que não posso ver, tenho muita vontade de ir ao encontro do máximo de obras que consiga. Não imagino nada melhor do que ter um lugar para partilhar as minhas experiências e aprendizagens – e espero que elas tenham alguma utilidade, ou pelo menos que sejam entertaining para quem as quiser ler.
Começo já com esta viagem por Paris e Bruxelas, com destino final na exposição da Chantal Akerman em Bruxelas, mas passando por outras paragens inesperadas e importantes, particularmente Bertille Bak e Constantin Brancusi.
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O entusiasmante nisto de viajar é arranjar um pretexto e depois encontrar outras coisas pelo caminho. Foi o que aconteceu desta vez.
O pretexto foi a exposição sobre a Chantal Akerman. Sinceramente, como admiradora dos seus filmes, senti que pouco acrescentou. O que mais me interessava ver era o trabalho de instalação, que esperava ser o principal, para se aproveitar o museu. No entanto, a exposição é organizada em modo timeline da vida de Akerman – que infelizmente acabou cedo e tragicamente, há menos de dez anos. Esta forma de organizar a exposição serve para apresentar a sua obra a alguém que não a conheça de partida, mas, como objecto artístico, não me tocou. A ordem cronológica só traz informação e diminui a eventual potência artística que as peças individuais poderiam ter.
Felizmente, antes de chegar a Bruxelas, passei por Paris, onde vi coisas sobre as quais realmente me apetece escrever. Houve duas exposições que me marcaram: Abus de souffle de Bertille Bak no Jeu de Paume, e a gigante exposição dedicada à obra de Constantin Brancusi no Centro Pompidou.
Curiosamente, a exposição de Brancusi, tal como Travelling, está organizada de forma cronológica. Mas, em Brancusi, isso ajuda a perceber a evolução do escultor e como chegou à depuração das suas últimas obras. A simplicidade é algo que me atrai bastante, então este encontro com a obra de Brancusi foi arrebatador. Impressionou-me a sua persistência ao longo da vida, e como se foi definindo com o tempo… “How did Brancusi become Brancusi?” – perguntam no podcast-guia da exposição.
Eis algo que muitas vezes falta no cinema: parece que, talvez por o conceito de “cinema” estar tão associado à sala de cinema e às restrições formais que ela traz, não é tão necessário uma realizadora “tornar-se” ela própria – ela pode já nascer dentro de uma fórmula.
Isto é algo que diferencia muito as timelines de Brancusi e Akerman: Akerman foi Akerman desde os seus primeiros filmes. Tanto, que a sua segunda longa-metragem, feita quando ela tinha apenas 25 anos, foi recentemente considerada o melhor filme de todos os tempos. Em Brancusi, vê-se claramente uma evolução, proveniente de um acumular de experiências e tentativas, chegando, no final, a algo como “Bird in Space”.

Alguém cuja evolução ainda está a acontecer e quero seguir é Bertille Bak. Na sua exposição no Jeu de Paume havia uma grande leveza, ligada a um conteúdo denso. As peças tratam temas relacionados com o trabalho em comunidades normalmente invisíveis. São peças com vídeo, numa estética low-tech, e com alguns elementos escultóricos.
Depois de uma exposição de outro artista que vi antes, em que a estética ligada à moda ofuscava os temas que tentava abordar, senti como uma lufada de ar fresco o trabalho de Bak, que realmente nos consegue fazer pensar sobre os seus temas.
A obra que mais ficou na minha memória foi Boussa From The Netherlands, composta por dois vídeos e uma série de garrafas. Bak expõe as condições de trabalho das mulheres descascadoras de camarões que trabalham em Tetouan, Marrocos, para uma empresa holandesa.
Os camarões são capturados na Holanda para depois serem enviados para Marrocos para serem descascados por um valor muito baixo e voltarem à Holanda para venda e consumo. A casca é usada em produtos cosméticos e a única parte que sobra são os olhos. Bak sugeriu às trabalhadoras que enchessem garrafas de souvenir com esses olhos. Essas garrafas estão presentes no vídeo e também expostas na parede ao lado.
Acho que apenas uma descrição deverá ser suficiente para despertar curiosidade sobre o trabalho de Bertille Bak. Pelo menos dentro de mim tudo isto suscita muitas coisas e é isso que espero de uma obra de arte (cinema). Pergunto-me como estará Bak a tornar-se Bak? Como será o seu Bird in Space?


