Trinh T. Minh Ha, quando perguntada sobre como encontrava a estrutura dos seus filmes, respondeu que era ao pôr coisas em relação com outras coisas que começava a mapear a estrutura. Parece-me uma boa forma de começar a criar. Pegar em algo, pôr esse algo em relação com outro, e ir por aí fora até se ter um objecto que quase se criou a si próprio. Frustra-me a ideia de precisar de ter uma ideia para começar a trabalhar em alguma coisa. “Vou fazer um filme sobre x”, “vou escrever uma crónica sobre y”… Gosto mais de começar sem saber onde vou e ver o que acontece.
É isso que estou a experimentar ao escrever este texto, e também um pouco o que vi no seminário Doc’s Kindgom deste ano (2024) em Odemira. Várias obras/artistas colocados em relação uns com os outros, havendo a esperança que desse encontro se produza algo. Neste caso, o nome do seminário, Ways of Listening, era uma espécie de guia que nos dava um ângulo sobre o qual observar o que era apresentado.
O Doc’s Kindgom é uma experiência intensa e marcante em que um grupo de mais de cem pessoas de vários lugares do mundo se desloca para uma terra em Portugal para passar vários dias a ver filmes, participar em debates, almoçar e jantar junto — uma espécie de seita cinéfila concentrada em cinco dias. O programa deste ano, para além de filmes, tinha uma instalação numa igreja e várias performances sonoras. As obras escolhidas tinham todas uma relação importante com o som. Ouviu-se, por exemplo, Expedition Content(2020), de Ernst Karel e Veronika Kusumaryati, uma longa-metragem em que a maior parte do tempo o ecrã está negro; 48 (2010), de Susana de Sousa Dias, cuja forma, através dos depoimentos de ex-presos políticos da ditadura portuguesa, assenta no som como entidade independente da imagem; ou The Tuba Thieves(2023), de Alison O’Daniel, realizadora e artista s/Surda, que “pergunta o que significa escutar”(como refere a sinopse do filme).
Nos debates entendi que algumas pessoas compreendiam o “listening” literalmente, como se de um espectro rigorosamente sonoro se tratasse, e outras pessoas entendiam o verbo mais como um “dar atenção a”. Desta questão em torno da palavra, e também suscitadas pelas obras programadas, surgiram diversas conversas, por vezes acesas, sobre o acto de escutar o outro, de filmar ou gravar o outro, e também sobre colonialismo e antropologia… Por exemplo, o filme Expedition Content, que cria uma composição sonora com os arquivos de áudio da expedição Peabody Harvard de 1961 à Nova Guiné Holandesa, originou bastante tensão pela seguinte questão exposta na página 62 do reader do seminário (online aqui):
Expedition Content directors Kusumaryati and Ernst Karel, both non-Black, were highly conscious that listening to the imperial archive in order to develop an institutional critique of visual antropology, Harvard, or the Film Study Center ran the risk of re-enacting the colonial project itself, in asking the Hubula people to listen to a document of their pacification. Indeed, a screening of Expedition Content for a Papuan audience raised more questions than it answered. Young Papuans asked why Michael [Rockefeller] and the expedition team came in the first place. “What is so interesting about our lives, about our cultures? What makes them come? Is it our land? Our rich natural resources?” One audience member asked.
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Alguns dias antes do Doc’s Kingdom, em Kassel, ouvi alguém auto-corrigir-se quando ia dizer que um filme “dava voz” a certas pessoas. A meio da frase parou e disse: “não dá voz, porque as pessoas já têm voz”. Esta frase ficou a ecoar na minha cabeça enquanto ouvia estas discussões… Talvez o que me atraia tanto e o que distinga o filme de Alison O’Daniel dos outros que vimos no Doc’s Kingdom é o facto de, apesar de ela própria não entrar no filme, este ser claramente uma expressão de si e da sua intimidade, na primeira pessoa. Não digo que os filmes tenham sempre de ser literalmente sobre nós mas, como diz Trinh T. Minh Ha no início do reader, “the named ‘other’ is never to be found merely over there and outside oneself” — o outro está sempre em relação com o eu, e faz parte do eu. Em The Tuba Thieves, sinto que o “eu” de O’Daniel aparece em relação com o mundo do qual faz parte — mundo esse onde há pessoas surdas, pessoas não surdas, sons belos, destrutivos, silêncio…
Por outro lado, em Expedition Content, senti falta do eu. Ernst Karel disse, em conversa, que se tinha perguntado, enquanto fazia o filme, o que estava uma nova geração de brancos de Harvard a fazer com estes arquivos mais uma vez. Era essa questão íntima e que lhe dizia diretamente respeito que eu gostaria de ter sentido mais no filme. Pelo contrário, mesmo com a tentativa de ser menos taxativo ao usar quase apenas som — um elemento muito mais aberto à interpretação do que a imagem — pareceu haver no filme uma pretensão de objectividade, no sentido em que o eu, originador da subjectividade, pareceu tentar ser apagado. No reader menciona-se que “ao contrário do filme de Gardner [Dead Birds (1963)], que remove qualquer presença dos membros da expedição, Expedition Content torna a sua presença explícita e audível”. Torna a presença dos membros da expedição original explícita, no entanto, eu pergunto-me: e a presença de Karel e Kusumaryati? Não são eles uma espécie de exploradores neste arquivo? Onde está a sua voz?
Um exemplo em The Tuba Thieves deste eu em relação ao outro de que falava é a questão da poluição sonora que o aeroporto de Los Angeles causa em certos bairros. Como habitante do centro de Lisboa que dorme todas as noites com tampões nos ouvidos, este tema diz-me respeito, e penso que as pessoas do mundo ouvinte pensariam normalmente que, se há alguém a quem o barulho dos aviões deve, no mínimo, incomodar menos, é às pessoas surdas. No entanto, em The Tuba Thieves, fica claro que nada é preto ou branco; a poluição sonora (e não só) preocupa e afeta toda a gente; e, como diz casualmente um personagem do filme, em língua gestual, sobre o facto de Prince ter decidido dar um concerto para uma audiência surda, ele percebeu que “gostamos todos de música”.
Senti em O’Daniel um ponto de vista forte, curioso e humano, que abraça a sua subjectividade. O seu filme mostra-me que não precisamos de nos limitar a falar daquelas que parecem ser as nossas próprias coisas para falar de nós — podemos falar de nós ao falar do outro, e assim chegar potencialmente à conclusão de que as coisas “do outro” talvez sejam também bastante nossas. No entanto, é importante que todas as vozes sejam ouvidas, e este não é, muitas vezes, o caso. Com o escutar da voz de Alison, veio também uma forma nova para mim de ver um filme: na sessão foram distribuídos balões, que deveríamos encher e agarrar durante o visionamento, algo que O’Daniel explicou ser uma tradição em que pessoas surdas se juntam em clubes sociais para ver filmes segurando balões, cuja fina membrana de látex permite sentir as vibrações de todas as ondas sonoras que a atravessam. Senti, ao ver o filme com um balão na mão, uma aproximação à experiência da surdez, uma atenção diferente a uma escuta nova, muito mais física. Como Alison disse, numa apresentação do seu filme, esta experiência é para todo o espectro da surdez, onde se inclui, num extremo, as pessoas perfeitamente ouvintes. Também achei interessante, ao ir investigar mais sobre o filme, a expressão “deaf gain”, por oposição a “hearing loss” (ganho surdo, por oposição a perda de audição). Muitas vezes, do lugar do privilégio, vê-se a diferença como negativa, e esta expressão pode ser algo a ter em mente e que podemos aplicar em diversas situações.
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Várias vezes em Odemira, durante o Doc’s Kingdom, senti-me sobrecarregada com demasiados filmes, demasiadas conversas, demasiados sons. Isto não é estranho, como expressa John Berger, curiosamente, em Ways of Seeing: “os visitantes dos museus sentem-se frequentemente esmagados pelo número de obras expostas e por aquilo que tomam, com algum sentimento de culpa, como sendo a sua incapacidade para se concentrarem em mais do que um punhado delas.” Há algo neste sobrecarregar de informação que me parece, de certa forma, agir como um tampão de ouvido.
Por vezes, enquanto ouvia as performances sonoras apresentadas, que frequentemente traziam sons de grandes cidades para Odemira, punha-me a pensar que, por muita qualidade que tivessem, não eram o que queria ouvir ali. Falou-se em performances site-specific, mas a única coisa que se fazia para criar uma ligação das obras com o ambiente à volta era abrir as janelas da sala… Não me pareceu haver uma ligação do seminário com o lugar onde estávamos e, num ano em que o tema era “formas de escutar”, e em que se discutiu tanto sobre a descolonização, pareceu-me mal, por exemplo, nunca se mencionar o caso dos imigrantes trabalhadores da agricultura de Odemira, de que tanto se falou há pouco tempo. No meio de tanto pensar sobre o que é escutar, deixou-se de lado, muitas vezes, realmente escutar.
Havia, no entanto, uma performance sonora verdadeiramente site-specific — mas que não estava no programa. Acontecia todos os dias antes das incríveis refeições cozinhadas, essas sim, com produtos locais e sazonais: quem actuava era a cozinheira que, para pôr em silêncio as 150 pessoas desta seita cinéfila, batia repetidas vezes com uma colher de pau gigante numa tampa de panela gigante. No mercado grande onde se comia, a barulheira de vozes que ecoava ia-se acalmando, pouco a pouco, com as batidelas. Finalmente, ela, aos gritos, e a avisar que tinha de gritar para as pessoas ouvirem mas que não era “bossy”, explicava o menu da refeição, que escutávamos todos atentamente.