Em Julho tive a sorte de ter um filme seleccionado para um festival em Itália, a norte de Veneza. Juntei uns amigos, encontrámos sítio para ficar, e depois fomos a Veneza. Aproveitei para ir, com entusiasmo, pela primeira vez à Bienal de Arte.
Já tinha visitado Veneza há três anos, num dia rápido e fantástico que guardei como um dos melhores da minha vida. Lembro-me de sentir que era uma cidade louca e absurda, que me deixou com a cabeça a andar à roda (no bom sentido). Desta vez ia com o objectivo mais específico de ver a Bienal, que esperava ser algo como a cidade em si, super estimulante e, ao mesmo tempo, um pouco confusa.
Esta edição da Bienal mostra obras de 332 artistas e tem como tema “Estrangeiros em Todos os Lugares”. O curador brasileiro Adriano Pedrosa focou-se em dar lugar a artistas contemporâneos de grupos sub-representados como indígenas, queer e diaspóricos, bem como a artistas que já não estão vivos e nunca foram representados na Bienal como, por exemplo, e surpreendentemente, Frida Khalo.
Em geral, a ida à Bienal agradou-me bastante. Senti que consegui, dentro da confusão, apreciar as obras com tempo suficiente e retirar algo dali. Mas houve uma obra que me tocou particularmente e que acabou por condensar a experiência: The Mapping Journey Project de Bouchra Khalili, uma artista Marroquino-Francesa com formação em cinema e artes visuais.
Na sua instalação vemos oito planos-sequência fixos distribuídos pelo espaço em ecrãs flutuantes. Em cada ecrã há um mapa – uma mão, segurando um marcador permanente, desenha um percurso. Se nos sentarmos no banco que se encontra à frente de cada ecrã, ouvimos o som direto do plano: a voz de cada pessoa descreve a sua travessia enquanto a deixa permanentemente traçada – histórias de vidas de pessoas em migração.
Bouchra Khalili convida-nos a criar o nosso próprio percurso através dos vídeos. Numa conversa na Lisson Gallery ela diz que, como se formou em cinema e em artes visuais, lhe preocupa bastante a forma como se apresenta a imagem em movimento no espaço. A mim isso também me interessa muito e achei a forma como Khalili o fez nesta instalação muito interessante. A disposição não linear dos vídeos pelo espaço faz com que os espectadores, com os seus movimentos, criem linhas que potencialmente espelham os traços criados pelos migrantes nos mapas. Assim, a artista dá uso à existência de um espaço por ocupar, bem como à liberdade de movimento dos espectadores (elementos que não existem da mesma forma numa sala de cinema). Quando estou a pensar os meus filmes, pergunto-me sobre o porquê de um plano vir antes de outro e parece que, às vezes, não há uma razão para tal — temos de a inventar porque tudo tem de ser mostrado no mesmo ecrã, obrigando a uma linearidade e a uma ordem que, de outra forma, seriam dispensáveis.
Frequentemente os traços desenhados nos mapas mostram deslocações que não parecem ter sentido. Andam para a frente e para trás, de um país para outro, passando várias vezes na mesma cidade, mudando de continente. São um reflexo da necessidade. Linearidade e ordem não fazem sentido com estas histórias.
Há um momento em que alguém fala de uma travessia de barco do Mediterrâneo e menciona que várias pessoas morreram. Na minha memória, esse facto é apresentado com uma naturalidade desconcertante. Quando falamos de tragédias alheias tentamos reconhecer o lado trágico da história, quase como se déssemos as nossas condolências ao outro, mas quando somos nós o sujeito habituamo-nos a contar a história até que ela nos sai com leveza. Em The Mapping Journey Project é dado o poder da palavra a pessoas que raramente o têm, e por isso temos acesso a esta particularidade da fala em primeira pessoa – que significa bastante.
Para além dos vídeos, também está presente na exposição The Constellations Series, que Khalili descreve como o capítulo final de The Mapping Journey Project. Trata-se de uma série de oito impressões em serigrafia que traduzem as viagens relatadas para a forma de constelações de estrelas. Sobre um fundo azul vêem-se cidades, marcadas a branco por pontos, ligadas umas às outras por tracejados. No seu website, Khalili fala das constelações como tradução de uma geografia subjectiva, desafiando fronteiras e concepções de países. Os lugares que conhecemos, nestas constelações, parecem pertencer a outro mundo, estar desligados da triste realidade das burocracias e da complicação que é emigrar, especialmente no sentido sul-norte globais. Estas imagens tocaram-me também pela forma como expressam uma ideia de eternidade, como se fixassem no céu e na história as viagens destas pessoas de quem só conhecemos a voz e uma mão.
Talvez possamos usar o exemplo de Khalili, das constelações, para refletir também sobre o cinema. Não será a divisória entre cinema e vídeo-arte/instalação uma espécie de fronteira imposta? Será que devemos ver o cinema como uma cidade (um ponto) numa constelação, ou antes como o sujeito que, através da sua viagem, cria uma nova constelação? Como o título desta crónica indica, eu penso que o cinema está “au hasard” e é um sujeito, neste momento à deriva, de um lado para o outro, a criar a sua constelação. No meio dessa viagem parece-me contra-produtivo excluir uma obra como The Mapping Journey Project daquilo que consideramos ser cinema. Porquê excluí-la? Porque para existir na sua melhor forma precisou de oito ecrãs e algumas serigrafias?
A única obra de Khalili que encontrei online.