


Fotografias tiradas por mim enquanto pensava fazer um filme sobre o lugar onde vivo agora.
Quanto mais aprofundo os assuntos, menos certezas tenho. Em Lisboa, numa noite de Dezembro, fui ao cinema ver uma sessão de curtas-metragens. Entre elas estava Percebes (Alexandra Ramires, Laura Gonçalves, 2024), um filme de animação que tem como base gravações sonoras de algumas conversas com algarvios que expressam o que é viver no Algarve durante todo o ano. As conversas são acompanhadas de aguarelas animadas que lembram o mar, central na vida daquelas pessoas. O filme consegue falar de um assunto complicado e ambíguo com uma leveza admirável. Eu, neste momento, a escrever este texto, deparo-me com a dificuldade de encontrar o ponto em que Percebes conseguiu equilibrar-se.
PERCEBE is a shellfish that grows on the portuguese coast. In Portuguese, the word PERCEBE is used for the animal goose barnacle and for the verb ‘UNDERSTAND’
O filme começa com estas frases, que a uma primeira e segunda vista me pareceram leves e humorísticas. No entanto, ao escrever este texto, começa-me a parecer que, para além deste ser um filme sobre os algarvios (representados também pelos percebes), talvez ele seja, além disso, sobre o conceito de perceber. A condição do Algarve é complexa e não é fácil de decifrar — talvez as realizadoras tenham sentido isso ao fazer o filme, como eu sinto agora.

Desde que nasci, não houve nenhum ano em que não passasse férias no Algarve. Apesar de não me lembrar, sei que também estive aqui muito tempo em bebé, fora do Verão. Essa constante repetição produziu memórias profundamente enraizadas em mim. Até há pouco tempo, sempre que vinha para o Algarve, as recordações despertavam-se mal via as placas na autoestrada sinalizando que estávamos a chegar. Vinham-me à cabeça, na forma de uma sensação de conforto remetente à infância, imagens de mangueiradas e de pessoas bronzeadas em noites quentes, o cheiro do protetor solar e do repelente, as comidas, o mar. Também me tinha ficado na memória o tom azulado que as coisas brancas ganhavam à noite, com uma florescência particular. Ao chegar, parecia que o ano todo era passado à espera daquele momento, em que a vida iria realmente ser vivida como deveria ser.

Em Fevereiro do ano passado, essas chegadas começaram a mudar. Fui ao Algarve para fazer uma residência artística em Loulé, na associação Alfaia, com o objetivo de produzir um trabalho relacionado com a região. À chegada, apesar de me forçar a sentir o mesmo de sempre, aquela sensação já estava enfraquecida. Chegar lá para trabalhar fazia-me adivinhar o que aconteceria: nessas semanas, a minha visão do Algarve mudaria bastante — ele deixaria de ser apenas o que era para mim e passaria a ser também o que era para outros, os que viviam lá o ano inteiro.
O trabalho que ia fazer na residência partia das minhas memórias de infância ligadas ao sumo de laranja que tinha consumido abundantemente no Verão. Falava-se muito da escassez das típicas “laranjas do Algarve” e dizia-se que era, em parte, devido à troca de laranjais por abacatais. Em simultâneo, a seca estava muito intensa e até se começava a falar em racionar a água dos cidadãos. Os culpados supostamente eram os abacateiros — que consumiam muito mais água do que as laranjeiras — e os agricultores, que trocavam de plantações porque os abacates estavam na moda e eram muito mais lucrativos do que as laranjas. Tudo isto indignou-me e tive vontade de ir para lá para tentar perceber o que se passava, e criar uma espécie de obra denunciatória.
Pouco depois de chegar a Loulé, foi-me dito que as “laranjas do Algarve”, que me eram tão queridas e em defesa das quais queria fazer o meu trabalho, já eram motivo de seca, por não serem autóctones da região e por consumirem muita água numa zona em que chovia pouco. Possivelmente, o conceito “laranja do Algarve” teria sido criado para fins de marketing — assim como agora estão a começar a aparecer os “abacates do Algarve”.
O trabalho que fiz acabou por se chamar Altar da laranjeira, e homenageava a ideia inocente que eu tinha das laranjas, enquanto também era uma confrontação com a realidade desconcertante da agricultura intensiva. Foi o início de uma tentativa de perceber algo que sempre tinha dado como adquirido.




“As pessoas daqui são muito revoltadas. As pessoas daqui sentem que a terra lhes é tirada sempre”, diz uma voz em Percebes.
Lembro-me de ter falado com uma senhora, mal cheguei a Loulé, que me contou que lhe tinham cortado a água de casa para desviá-la para um resort com piscinas e campos de golfe. Percebes fala muito do turismo, que dominou a economia e por conseguinte a vida no Algarve. No filme, alguém diz que procura empregos diferentes mas acaba sempre como empregado de mesa porque é aquilo de que há mais oferta. Esses trabalhos são virtualmente sazonais, sendo que, no Verão, o Algarve, como todos sabem, é praticamente invadido por turistas, e no Inverno, por comparação, há um vazio económico e cultural. O filme faz uma analogia entre os algarvios, que resistem a estas oscilações, e o percebe que também resiste às marés, mantendo-se sempre lá.

Quando vi o filme, estava quase a mudar-me para o Algarve, onde vivo agora a maior parte do tempo. No Inverno, a casa de férias da minha família estava sempre vazia, algo que deve acontecer a muitas casas do Algarve — há umas semanas, por exemplo, um motorista de TVDE contava-me que várias pessoas, imigrantes que não tinham onde dormir, andavam a invadir casas de férias.
À frente da minha casa, onde antes havia um descampado, nasceu uma micro-cidade. Sempre a imaginei também vazia no Inverno. Chama-se “O Pomar” e compõe-se de várias ruas com casas iguais umas às outras. Se nos aventurarmos por ali adentro, encontramos uma piscina, um pub, e um ginásio. É estranho porque parece ao mesmo tempo um bairro construído do zero e um hotel gigante, a fingir que é cidade. A verdade é que me surpreendem os carros que sempre vejo lá estacionados: há uma vida que floresce. As pessoas que vivem n’O Pomar parecem quase todas estrangeiras, alheadas das tensões algarvias. Com a pele enrugada e vermelha do sol, passam os dias a fazer trekking e a andar de bicicleta com malas à prova de água.
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Ainda estou a tentar perceber a minha presença aqui. Vim cá para fugir temporariamente à crise da habitação, porque por sorte havia esta casa intermitentemente vazia. Mas como realizadora, pensei logo que acabaria por criar algo aqui e que, por isso, era importante tentar perceber o lugar onde estava, e qual poderia ser o meu ponto de vista sobre ele. ( … a verdade é que, primeiro, escrevi esta frase nos tempos presente e futuro, e acabo de mudá-la para o condicional, porque, talvez graças à escrita deste texto, agora não encontro sentido em fazer um trabalho sobre este lugar — parece-me provável que ele apareça, mas não que seja um assunto.)
O cinema e a arte podem encorajar-nos a entendermo-nos melhor. Pelo menos, podem assegurar-nos do nosso não entendimento. Assim como Percebes me ajudou neste momento, várias obras de arte e filmes antes o fizeram. Infelizmente, aqui é difícil encontrar uma sessão de cinema como a que vi em Lisboa. Só há um cinema dentro do centro comercial e um cineclube que parece só ter programação no Verão, assim como a Casa das Artes.
“Quando a cidade está viva, nós não conseguimos usufruir porque estamos a trabalhar, e depois quando temos tempo para usufruir não há nada.”, diz outra pessoa em Percebes.
No final do filme, as vozes falam da necessidade dos tempos de recuperação. “Faz falta a noite, como faz falta o Inverno, como faz falta o turismo ir embora.” De alguma maneira, no final, pressente-se a realidade tal como ela é, encontra-se beleza na consequência do defeito, como o preferir ir à praia no Inverno. É esse o ponto que Percebes encontrou e que me faz gostar tanto do filme.
