Aquilo que nos perturba na nossa relação com o processo de reprodução das imagens é a experiência do vazio que as estrutura, essa ausência desfigurante percebida no acto de as ver. Esse vazio, falha (falta), apercebemo-lo como o lugar de um “acto violento” (regressivo ou transgressor), um “crime” (cometido em relação a nós próprios ou ao devir metamórfico da nossa pulsionalidade) de onde se emitem imagens (enredos) em looping, a cujo desenrolar (como o coleccionador de cigarette burns de John Carpenter [John Carpenter’s Cigarette Burns, 2005]) assistimos de olhos abertos e estarrecidos.
É daí que vem o efeito de horror (terror) das imagens – da certeza de que aquela imagem não sou eu mas possui uma vida própria (autónoma) que não coincide comigo (Der Student von Prag [O Estudante de Praga, 1913] de Stellan Rye) -, razão que me leva a dizer que todo o cinema (mas podíamos falar também da literatura) é fundamentalmente horror e que a sua matéria (sónica e figural) é o fantasma.
Esse (ir)real acrescentado pelas imagens ao “real” constitui também, afinal, o seu vício (doença), diabolia: na verdade as imagens não só acrescentam matéria ao mundo (uma 2ª criação, diabólica), como esse elemento acrescentado não reproduz o real constituindo antes uma sua versão alterada, captada na sua diferença excêntrica e exorbitante. Pior, esse objecto (real) alterado na/ como imagem constitui ele próprio uma entidade mutante (“A imagem mostrou-nos que somos uma espécie mutante”, avisou-nos a tempo Jean Louis Schefer), um monstro feliz com o que experiencia e percepciona.
Deste modo, o que no cinema (terror) faz medo não são tanto as “intrigas” (mais ou menos comuns e sempre talhadas no romance pessoal e universal do fantasma) mas a forma que se antonomiza, selvagem, num registo desantropomorfizado e celibatário, sem a cobertura de qualquer motivação (dramática ou de sentido) e que se dá a ver, manifesta e presentifica como uma espécie, organismo estranho (vírus) de um outro universo, ordem ou tipo.
No prólogo de Teenagers from Outer Space (1959) de Tom Graeff (assistente de Roger Corman em Not of this Earth [1956] e aqui presente, enquanto actor, como Joe, jornalista e primeiro namorado de Betty), um jovem afirma ter visto um objecto a cair do espaço embora considere que se possa tratar de uma “imaginação” sua, devido ao seu grande isolamento. Planos depois, o disco abre-se e um dos seus ocupantes, Thor (Bryant Grant), mata com a sua pistola desintegradora um cão de que resta apenas o esqueleto (como sucederá com outras vítimas que ele vai deixando pelo caminho). Desde o início, dir-se-ia que o código genético do filme – assim como do género, a FC (Ficção Científica) low cost independente dos anos 50 – nos é oferecido: trata-se aqui, como no noir (The Bonnie Parker Story [1958] de William Whitney ou Machine Gun Kelly [1958] de Roger Corman) ou em algum “terror” (Plan 9 from Outer Space [Plano 9 do Vampiro Zombie, 1958] de Ed Wood ou The Tingler [1959] de William Castle) desses anos, de reduzir o plano da “forma” à sua versão mais elementar e rudimentar (vd. efeitos de animação na imagem para dar a queda da nave), ou seja, à sua essência. O filme continua no mesmo registo: décors naturais com o grau matérico suficiente de aspereza para gerar o “estranho” (como nos westerns de Budd Boetticher, tal como 7 Men from Now [7 Homens Para Matar, 1956]), acessórios e cenários ao mesmo tempo rudimentares e expressivos, assim como actores hieráticos e estáticos (“modelos” mais desconectados do plano do que os de Bresson) que carregam no seu corpo a redundância necessária à construção da atmosfera do género (a ordem aqui é mais a da “significância” do que a da “significação”, para usarmos os termos de Barthes).
O plano dos extraterrestres é usar a Terra como o lugar para a criação rápida de uma espécie, os Gargons, que usam na sua alimentação: um plano contra o qual um dos membros da tripulação, Derek (David Love) – filho sem o saber do líder da super-raça alienígena – se revolta, fugindo e entrando em contacto com humanos, uma jovem, Betty (Dawn Bender), e o seu avô, que o aceitam como hóspede. Thor, pelo seu lado, é deixado em terra para capturar Derek. Começa aqui a 2ª parte do filme em que os dois jovens extraterrestres são confrontados com os décors e costumes dos humanos: ao contrário de The Invasion of the Body Snatchers (A Terra em Perigo, 1956) de Don Siegel, em que a “estranheza” do alien funcionava como um elemento de deflacção – tornando-se perfeitos clones dos humanos, eles revelavam o seu vazio -, aqui os dois extraterrestres constituem o elemento acrescentado (a mais) que revela a estranheza (ordinária) da vida dos humanos. Dupla estranheza, portanto: enquanto aliens (o sinal dessa estranheza é o design geométrico – um mais de forma – dos uniformes que usam) e enquanto jovens, cotejando pela sua presença o (sub)género do filme de teenagers, com a sua desadequação habitual em relação aos modelos sociais vigentes (vd. High School Confidential de Jack Arnold [1955]).
Sintomática desta concentração (que exponencia) e intersecção de registos, é a cena de explicação entre Derek (já de fato e camisa) e Betty (usando um fato de banho negro e uma capa listrada) num cenário (natural) agreste onde se pode ver, no chão, o esqueleto do cão descarnado no início. Embora a relação se dê entre dois planos diferentes – o do jovem par com Betty a olhar para baixo e depois o de um monte de ossos no chão – a objectividade fotográfica dos planos funda (também no sentido de uma liga metálico-imaginária) a sua sobreposição numa única imagem no espectador – uma imagem que formula e fixa a hipótese (imagética) de uma realidade paradoxal e alterada (constituída pela co-presença desses elementos não congruentes entre [e em] si, do ponto de vista da verosimilhança e do decorum): a “beleza convulsiva” (“érotique-voilée, explosante-fixe, magique-circonstantielle”) de que falava André Breton, em L’Amour Fou (1937), a propósito das construções efémeras de Man Ray.
Coexistindo com a “utopia”, desejo de uma “forma plena” do filme (e talvez de algum deste cinema de FC), a recorrência do motivo (figura) do “esqueleto”, a que se vêem aqui reduzidos os humanos – casos de Alice, a amiga de Betty, na piscina ou na cena de troca de tiros entre Thor e os polícias em que estes, à medida que são abatidos, têm os seus corpos trocados por ossos –, reflecte bem a persistência dessa espécie de efeito laser (raios X) do super-olho (meta, reflexivo) do cinema de série B em relação às formas do cinema corrente americano do pós-guerra. Não por acaso, pensamos, o monstro do filme (um tipo de grande lavagante com pinças que evoca Tarantula [1954] de Jack Arnold) tem o nome de GARGON, um termo quase homófono de GORGON, sabendo-se que as Gorgonas eram figuras límbicas da mitologia grega que guardavam as portas entre a vida e a morte: uma delas, aliás, Medusa, tinha o poder de petrificar qualquer intruso.
Ao fim ao cabo, talvez a FC americana dos anos da guerra fria e da ameaça nuclear tivesse um papel semelhante ao que Siegfried Kracauer, em Theory of Film (1960), atribuía ao cinema face ao horror dos crimes dos campos de concentração nazis: o de ser uma espécie de um “escudo de Perseu” em que se vinha fixar, já reflectida e diferida, uma imagem transitável desse horror primeiro (e primitivo) contudo suficientemente forte – mesmo que desfigurada sob a forma simbólica de hieróglifos – para não ser esquecida.
Em Teenagers from Outer Space o “monstro”, como em Tarantula, de Jack Arnold, ou Them (O Mundo em Perigo, 1954), de Gordon Douglas, surge já formado, como um signo global, quase uma metáfora, no registo do Fantástico ou do Mito: a não mostragem do processo da sua transformação não deriva apenas de razões técnicas mas do facto de este já estar incluído/concluído na imaginação do espectador (tudo se passa, aliás, no hiato, intervalo, entre as imagens) (vd. prólogo de Teenagers que situa o que se irá ver como possível o fruto da “imaginação” do jovem observador do espaço).
Nos anos 80/90, com efeito, não só o desenvolvimento da técnica (com o morphing, a digitalização) permite dar o contínuo do processo (The Howling [O Uivo da Fera] de Joe Dante e An American Werefolf in London [Um Lobisomem Americano em Londres] de John Landis, ambos de 1981) como o “horror” se torna progressivamente orgânico e corpóreo, físico (caso dos Aliens entre 1979 e 1997 mas também do trabalho de Cronenberg, sobretudo na sua fase inicial com Shivers [Os Parasitas da Morte, 1975], Rabid [Coma Profundo, 1977] e sobretudo The Brood [A Ninhada, 1979]).
Em Alien: Romulus (2024) de Fede Alvarez dá-se mais um passo em frente na figuração do “monstro” com a criação de um híbrido humanóide, majoração do humano e protótipo de uma espécie de super-trabalhadores (escravos) a empregar nas minas da Weyland-Yutani.
Se Rómulo e Remo (eles próprios híbridos, filhos de um deus, Marte e de uma vestal, Reia Sílvia), criados por uma loba, se podem considerar um caso potencial de licantropia, Kay (Isabela Merced) dá aqui à luz uma criatura – resultante da fusão de duas naturezas distintas (a nave que guarda os “xenomorfos” encontra-se também ela dividida em duas alas com os nomes dos gémeos) – ela própria híbrida (mutante) e com traços humanóides bem marcados devido à inoculação, com o DNA do alien, do feto que já existia em Kay. Na verdade, em Alien³ (Alien 3 – A Desforra, 1992) de Fincher, Ripley (Sigourney Weaver) suicida-se com o embrião do alien dentro dela enquanto em Alien Ressurrection (Alien O Regresso, 1997) de Jean-Pierre Jeunet o clone de Ripley, ao ser recriado, contém em si esse embrião do monstro: curiosamente, aí, a rainha-alien acaba por desenvolver um útero, por contaminação com Ripley, dando origem a uma criatura já com um esboço de traços humanóides.
Contudo, há também diferenças no registo narrativo do filme, nomeadamente nos protocolos de decomposição do horror e de mostração (metamorfização) do “monstro”. Se nos primeiros 3 Aliens (Riddley Scott, James Cameron, David Fincher) o processo de criação de efeitos (e suspense) tendia ainda a trabalhar com signos globais (o alien já formado), aqui a lógica é a de uma maior fragmentação (parcialização), adiando-se o momento do confronto com a sua forma já acabada (algo particularmente sensível em toda a sequência em que o alien persegue Bjorn e Navarro no Corbelan).
Fede Alvarez já mostrara como trabalhar com raparigas em apuros (em Don’t Breath [Nem Respires, 2016] e sobretudo, como argumentista e produtor, Don’t Breath 2 [Nem Respires 2, 2021]) e aqui continua essa linha com Cailee Spaeny (Rain, uma Ripley rejuvenescida e menos musculada). Um traço, aliás, de alguma FC actual (vd. o recente Borderlands [2024] de Eli Roth ). Se os heróis masculinos se mostram hoje cansados e pouco inventivos (percorridos por uma melancólica pulsão de morte [vd. Justice League (Liga da Justiça, 2017) de Zack Snyder]), os femininos trazem em si uma capacidade de invenção e humor que revigora o género. Com efeito é a piada do andróide Andy sobre a “gravidade (“I was reading a book about gravity, I couldn’t put it down”) que permite a fuga de Rain de Romulus. Lição também formal/estética: o humor como “reprise” dos “lugares comuns” (clichés) com um twist (de invenção, suspense, paródia) que permite a novidade e mutação da forma. Uma mutação cujo horizonte, utopia formal, podemos talvez encontrar nos planos do espaço sideral (dos anéis de meteoritos, por exemplo), planos que evocam os céus/cortes celestiais da pintura medieval ou do 1.º Renascimento (antes de Galileu). O que não nos parece pouco.
Altura, portanto, de tentar compreender e saudar esta nova “linhagem” de filmes.