O género de terror, especialmente feito nos EUA, é pródigo em criar uma mitologia de imagens, que transformam cenários banais do quotidiano doméstico em algo assustador ou potencialmente perigoso, simplesmente por mostrarem o que o desconhecido pode esconder. Quando, por exemplo, um par de agentes do FBI investiga as casas anónimas de um subúrbio americano, sabemos quase instintivamente que o perigo pode estar em qualquer lado, que no espaço vazio por trás dos ombros destas personagens pode surgir algo terrível, que qualquer uma destas casas impecavelmente cuidada pode afinal ser o esconderijo de um serial killer. No entanto, com Longlegs (O Colecionador de Almas, 2024), Osgood Perkins mostra desde o início que está à procura de algo além desse imaginário do desconhecido como assustador, do susto potencial por trás de uma porta, e que este não é um retrato naturalista do mundo inocente no qual o mal se infiltra, que outros factores estão em jogo.

Numa das primeiras sequências do filme é estabelecido que a personagem principal, Lee Harker, uma jovem agente do FBI na sua primeira missão, possui uma espécie de intuição altamente afinada, capaz de antever o que vai acontecer ou pelo menos decifrar sinais que encontra à sua volta para a conduzir no caminho certo. Num teste, consegue adivinhar um número aleatório oito vezes (ou como ela diz, não conseguiu adivinhar as outras oito vezes). A partir desta capacidade de premonição, mais do que tentar desvendar o mistério do assassino em série que ela e o seu parceiro procuram, fica no ar a dúvida sobre até que ponto ela sabe o que vai acontecer a seguir, até que ponto esta clarividência é de dedução lógica ou de origem sobrenatural. A resolução do primeiro caso que lhe é entregue é exemplificativa desta ambivalência: depois de adivinhar a casa onde se esconde o assassino, entra num labirinto de corredores e portas que deveria ser perigoso (e que nos deixa sobressaltados, pela insegurança dela), sem esperar por reforços: será que para ela essa incerteza não existe, já sabe o que vai encontrar, o assassino à espera dela para se render? Até que ponto o seu ímpeto para seguir os instintos advém de saber o futuro, e sendo assim, será que ela não é assim tão inocente e imaculada como seria de esperar de uma protagonista deste género de filme?
A partir de certo ponto, especialmente o último acto, a acção é demasiado telegrafada, segue um caminho previsível. Mas não é essa a ideia aterrorizadora, perante uma personagem que consegue intuir o que vai acontecer, de ver os seus medos ou visões a tornarem-se realidade?
Longlegs não é um filme particularmente assustador, parece antes mais investido em estabelecer um sentimento de angústia existencial, de uma ideia de destino ao qual não se pode fugir, que tem sido predominante no género do terror americano nos últimos tempos. Em filmes como Smile (Sorri, 2022), de Parker Finn, Hereditary (Hereditário, 2018) de Ari Aster, The Witch (A Bruxa, 2015), de Robert Eggers, The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) de Jennifer Kent, há um caminho que apesar de previsível sabemos ser inevitável, que o encontro com o mal no final é inescapável. Apesar das acções das personagens e de estarem avisadas para o perigo, não conseguem desviar-se desse rumo de confronto com o seu destino que o filme profetiza: é afinal o percurso de The Ring (The Ring – O Aviso, 2002), de Gore Verbinski, que avisa desde o início do encontro com o “monstro” dali a uma semana (em Longlegs há também uma data que se aproxima); é assumir que todos os caminhos vão dar a It Follows (Vai Seguir-te, 2014), de David Robert Mitchell (com o qual Longlegs partilha a actriz principal, Maika Monroe), que é impossível fugir às consequências das nossas acções.
Este sentimento acentua uma incapacidade de individualmente conseguir alterar um rumo que continua a ser escrito, de sozinho fazer a diferença e conseguir mudar um desfecho que se anuncia trágico e que os outros não parecem ver. É o exemplo definitivo do embate entre o determinismo (em que as coisas estão pré-determinadas, e que o que seja que tentemos fazer não muda o rumo dos acontecimentos), e a livre vontade, confrontado com uma realidade que parece impossível influenciar. São doze meses seguidos de temperaturas 1.5º C acima da média das temperaturas pré-industriais, o limite que deveríamos atingir apenas em 2100. São 40 mil mortos, a grande maioria crianças e mulheres, um prolongado estado de fome e abandono, num genocídio em curso, à vista de todos. É uma outra guerra que dura desde fevereiro de 2022, com mais de 11 mil mortos civis, vidas desfeitas e um estado de completa vulnerabilidade perante um ataque externo, sem desfecho à vista. É um crescimento da extrema direita e a sua xenofobia e ataques violentos a imigrantes a espalharem-se pela Europa enquanto refugiados morrem nos mares. É a sensação de impotência perante tudo isto, de não conseguir parar o desastre. É o protagonista de Take Shelter (Procurem Abrigo, 2011), de Jeff Nichols, a gritar: será que mais ninguém vê isto?
Depois do seu início auspicioso, a agente Lee Harker é chamada a resolver um caso ainda em desenvolvimento: há 30 anos que um serial killer escapa às autoridades, deixando depois de cada crime uma carta em código assinada por Longlegs, com um pormenor macabro: Longlegs, como uma espécie de Charles Manson, não executa as suas vítimas, antes convence de alguma forma um dos membros da família a assassinar os outros, antes de se suicidar – tudo sem a participação directa do serial killer, ou assim parece; outra vez a questão do determinismo versus a livre vontade, quer das vítimas que parecem perder o poder de decisão, quer de Harker à medida que caminha perigosamente para desvendar este mistério. Perkins desenvolve uma espécie de filme de investigação criminal de tom sobrenatural, construindo meticulosamente uma atmosfera claustrofóbica, de cenários noturnos e aproximação estética ao American Gothic de Grant Wood, às personagens solitárias em composições taciturnas de Edward Hopper, que se alimenta das inseguranças de Harker para substituir melancolia por inquietude. Esta é uma protagonista enigmática pelo pouco que revela, a sua forma de auto-defesa num cenário hostil (quando num gesto surpreendente, acende um cigarro, quase que nos sobressalta, por finalmente mostrar algo pessoal).
Longlegs tem as suas fragilidades, particularmente num argumento demasiado conveniente ao que quer explorar (as investigações acontecem quase sempre ao anoitecer sem nenhuma razão a não ser acentuar a tensão artificialmente; as ligações entre as personagens, como a mãe de Harker ou a família do seu colega do FBI servem um propósito demasiado evidente). Não é também o filme mais original, parecendo às vezes uma remistura de vários elementos dos géneros a que vai buscar inspiração (investigação criminal, terror, sobrenatural). A partir de certo ponto, especialmente o último acto (intitulado “Birthday Girls”), a acção é demasiado telegrafada, segue um caminho previsível. Mas não é essa a ideia aterrorizadora, perante uma personagem que consegue intuir o que vai acontecer, de ver os seus medos ou visões a tornarem-se realidade? Não é esse o verdadeiro terror, de saber que algo vai acontecer e não conseguir fazer nada para o alterar?
Nessa exploração de um sentimento de desespero existencial, que de forma derradeira é o encontro com a mortalidade, Longlegs é muito próximo de filmes como Cure (1997) e Kairo (Pulse, 2001), de Kiyoshi Kurosawa, dois filmes fundamentais no retrato da condição humana perante uma ameaça que avança sem previsão de poder ser parada, e que Perkins procura aqui acompanhar. Apesar da falta de originalidade, Perkins consegue jogar com uma certa expectativa de repetição pelo espectador e do que vai acontecer para habilmente explorar a tal angústia niilista-millenial, a tal ideia de estar literalmente num filme de terror, sem conseguir alterar o seu desfecho, ou pelo menos influenciar o embate final – e dessa forma, aproximar-se, pelo menos, de outros filmes que tentaram o mesmo diagnóstico no retrato desta aflição colectiva.
★★★☆☆