Quando o Carlos Natálio me convidou, veio a alegria de contribuir para um espaço do qual gosto muito desde os primórdios dele e a dúvida “preciso dar um título para a coluna” e se tem algo que detesto é dar nomes. Cheguei em O Vampiro da Cinemateca que é o nome de um ótimo filme diário/ensaio do crítico/cineasta brasileiro Jairo Ferreira, que imagino muitos leitores do À Pala de Walsh não conheçam, mas é um dos meus filmes brasileiros mais queridos.

Jairo foi um ótimo crítico muito envolvido com a cena independente de São Paulo. Tinha um senso de humor tão bom quanto o olhar, lembro-me de um texto ótimo sobre Suspiria (Dario Argento, 1977) que começava falando do desafio de conseguir assistir ao filme em primeiro lugar, desistiu das primeiras duas salas porque a projeção estava uma porcaria, finalmente foi feliz na terceira, as imagens agora fazem justiça aos delírios do cineasta italiano. Mal imagino como ele, que faleceu em 2003, lidaria com esses tempos em que se projetam arquivos e não filmes.
Era extremamente partidário dos filmes e artistas de que gostava, sobretudo os dos amigos. Hoje é conhecido sobretudo pelo livro Cinema de Invenção, inventário crítico e crônica do experimental brasileiro e da geração dele. Jairo era bom de títulos ao contrário de mim e O Vampiro é uma viagem em super8 incrível pelo que passa pela cabeça do artista e crítico terceiro mundista, mas primeiramente tem este título incrível. Aponta para a história do cinema, para tudo isto que vem antes, mas também para este gesto de meter os dentes no pescoço desses filmes todos, sugá-los e de alguma forma devolvê-los ao mundo transformados, que é algo que me parece central tanto no gesto crítico/cinéfilo quanto na criação artística. É uma espécie de atualização da ideia de antropofagia do escritor modernista brasileiro Oswald de Andrade, a ideia de devorar a arte vinda de fora e torná-la coisa nossa, e aplicá-la ao cinema.
Gosto do nome porque sempre fui um rato de cinemateca [tenho ótimas memórias das minhas visitas a Lisboa, mas a melhor é da tarde que passei na Cinemateca assistindo uma sessão dupla de Judge Priest (O Juiz Priest, 1934) e The Sun Shines Bright (O Sol Nasce para Todos, 1953), do John Ford], apesar de, por uma diferença geracional, a minha cinemateca sempre se expandiu para incluir outros espaços para além da sala de cinema. Gosto muito da imagem do cinéfilo como vampiro, de estar por aí a vagar com toda essa coleção de imagens que se absorveu ao longo do tempo. Não quero que a coluna se feche demais, sempre prefiro uma certa liberdade, mas espero voltar muito a esta relação entre cinefilia (e a crítica, mais como uma expressão de pensamento da primeira do que necessariamente desta profissão moribunda que temos hoje), história do cinema e este hoje no qual essa história é por vezes tão difícil de ser vista e discutida.
Quando a Sight and Sound me pediu uma lista para a sua famosa pesquisa decenal em 2022 escrevi meio que às pressas e sem pensar muito um mini ensaio para acompanhá-la onde eu defendia a minha decisão de limitar a minha própria contribuição ao século XX, menos por qualquer desinteresse pelo cinema contemporâneo, do que por saber que seria bom que alguém votasse em Shanghai Express (O Expresso de Xangai, 1932) de Joseph Von Sternberg, ou Ensayo de un Crimen (Ensaio de Um Crime, 1955) de Luis Buñuel. Estamos, creio, cada vez mais no território da amnésia e este resgate, este esforço de garantir que estes filmes existam sempre no aqui e no agora me parece essencial, e o vampirismo de Ferreira já era um pouco sobre isso há quase 50 anos e acho que esta coluna também.
Para não dizer que só me apresentei e pouco falei de filmes entrou em cartaz por estes dias, aqui em São Paulo, um documentário que acaba passando um pouco por isso chamado Otelo, o Grande (2023), de Lucas H. Rossi. É sobre Grande Otelo, que considero o maior ator de cinema do Brasil. Grande Otelo era uma grande presença de cena e trabalhou sobretudo para as comédias da produtora Atlântida, onde aparecia junto ao Oscarito, creio que hoje ele seja lembrado pelos dois filmes do Cinema Novo que protagonizou Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Mesmo que sua carreira inclua muito mais: de trabalhar com Orson Welles no It’s All True, a filmes diversos como o ótimo drama sobre racismo Também Somos Irmãos (1949) ou o divertidíssimo filme que Júlio Bressane fez para ele, O Rei do Baralho (1973).

Rossi esta interessado em Otelo como artista, mas também como uma imagem, e a figura do homem negro que veio das classes populares e a sua relação de embate constante com uma indústria cultural cruel. Rossi toma a decisão de servir como um intermediário de Otelo, tudo que o filme apresenta são suas performances e entrevistas que deu ao longo da carreira, só Otelo fala, seja como artista em cena ou refletindo sobre o seu trajeto. É um filme dos anos 2020, que mantém uma constante relação de fascínio e interrogação para com as imagens do cinema brasileiro.
Uma limitação inevitável dele é que, como as conversas com Grande Otelo, vem de entrevistas para a imprensa, ela é limitada ao que jornalistas da época queriam lhe perguntar, e ele só tem como falar sobre as partes da sua carreira que interessa a mídia, logo mais Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog, do que Natal da Portela (1988), de Paulo Cezar Saraceni.
Isto me fez pensar num filme que me fascina e poucos conhecem por ser dos mais estranhos nos quais Grande Otelo apareceu: O Caçula do Barulho (1949), Riccardo Freda. Depois que a imprensa italiana descobre o seu caso, Freda e Gianna Maria Canale vieram se esconder no Brasil e acabaram fazendo este filme para a Atlântida que, ao menos nominalmente, é uma chanchada.
É a história de um grande desencontro cultural (uma antropofagia às avessas), mesmo se desconsiderarmos que humor não é a primeira coisa que associamos a Freda. O cineasta europeu perdido nos trópicos sem entender bem o Brasil, seu humor ou seus atores. Imagino que não seja um filme que desperte o interesse dos fãs europeus de Freda, salvo pelo completismo e algumas cenas de ação realizadas com o bom olho dele. Ele está muito mais à vontade com o galã e futuro cineasta Anselmo Duarte (que se fosse italiano poderia estar num dos seus capa e espada) do que com Oscarito e Grande Otelo. E é meio que por isso, pelo que tem de falho, que gosto do filme, porque não existe outro filme em que a dupla aparece, como nesse para bem ou para o mal, a desleitura e desconforto de Freda vira um elemento de cena a mais. Meu prazer cinéfilo passa muito pela prospecção de encontrar filmes como este acidente de Freda.