Minhas duas semanas favoritas todos os anos acontecem no final de outubro quando acontece a Mostra Internacional de São Paulo. Trata-se de um evento inflado de cerca de 400 filmes que existe desde o final dos anos 70, se arrasta por 14 dias (mais uma semana de “repescagem”) e parece obcecado em achar maneiras de crescer ainda mais. Em 2024 (ou por sinal 2004), um evento desses precisa sempre anunciar que a próxima será a sua maior e melhor edição. Eu poderia apontar mil defeitos nela, mas é verdade que tenho profundo carinho pela Mostra, eu adoro poder ver cerca de 3 filmes por dia numa sala de cinema e encontrar e jogar conversa fora com amigos queridos que muitas vezes nem são da cidade e vejo pouco. Algo que a critica frequentemente falha muito quando lida com filmes vistos nestes eventos é que o entorno tanto institucional como o humano tem um impacto muito real na experiência dos filmes.
Meu dia favorito na Mostra deste ano foi a segunda feira da segunda semana quando eu já estava cansado (os primeiros sinais de exaustão costumam aparecer lá pelo nono dia) e passei o dia todo na Cinemateca Brasileira. O meu principal objetivo do dia era conferir dois restauros de filmes brasileiros, Também Somos Irmãos (1949) de José Carlos Burle e Um é Pouco, Dois é Bom (1970), de Odilon Lopez, que seria seguido de um debate sobre a importância da preservação do cinema negro brasileiro. Também Somos Irmãos é um desses filmes de ótima reputação, geralmente aparecendo nas historiografias como o primeiro filme brasileiro sobre racismo, que quase ninguém viu por que a cópia que circulava antes dessa restauro era de péssima qualidade. Revisto no cinema numa cópia digital muito superior (apesar do fotógrafo Lauro Escorel que supervisionou o trabalho ter apontado que dado o mau estado do material existente havia um limite do que podia ser feito), confirmou-se como um dos melhores feitos por aqui. Já Um é Pouco é o único filme do ator Odilon Lopez, dividido em dois episódios e só o segundo, co-protagonizado por ele, costumava circular, agora completo fica mais fácil apreciar como Lopez explora a crônica de costumes brasileira para um filme sobre o que fazer para conseguir dinheiro com uma boa dose de absurdo. A nova cópia vem circulando o país faz alguns em vários eventos sempre com recepção muito positiva.
No papel é uma seleção histórica fortíssima, mas a prática é bastante frustrante. Nos 25 anos em que acompanho a Mostra Internacional de São Paulo, talvez nada seja mais notável do que como a parte histórica foi marginalizada.
A sessão de Também Somos Irmãos estava lotada e é sempre um prazer observar uma sala de cinema descobrindo um belo filme que você conhece. Especialmente um como este cuja premissa e cenas iniciais te faz esperar um filme bem diferente daquele que ele realmente se revela. Um é Pouco, Dois é Bom é o tipo de comédia que é ótima de se assistir com uma plateia que ri o filme todo. Quando a sessão de Também Somos Irmãos terminou era visível o impacto na sala, um misto de elogios a Grande Otelo (num dos seus melhores papeis dramáticos) e “este filme existe mesmo”, adoro os filmes, mas acho que gosto ainda mais de ter presenciado esta sessão. Era inegável a sensação de que algo especial aconteceu ali. Noites como esta, meio que justificam eventos como a Mostra, te fazem perdoar todos os seus defeitos.
Não foi a única boa sessão histórica que acompanhei ao longo do evento. Agradeço aos programadores por me apresentar ao cineasta palestino Michel Khleifi que recebeu uma pequena homenagem e do qual vi Al Dhakira al Khasba (1980) que foi o primeiro longa rodado por um palestino no território ocupado por Israel e se revelou um documentário muito potente. Houve uma retrospectiva dedicada ao Satyajit Ray e é sempre um prazer ver Pather Panchali (O Lamento da Vereda, 1955) no cinema. Ainda no cinema brasileiro foi ótimo ver a cópia restaurada de Onda Nova (1983), de Icaro Martins e José Augusto Garcia, um dos melhores filmes brasileiros do começo dos anos 80. E a parte histórica ainda contou com uma homenagem ao centenário de Mastroianni com filmes que iam de Angelopoulos a Ruiz e muitos outros restauros de filmes diversos como o menos conhecido dos longas de Rogério Sganzerla, Abismu (1977), o épico maldito de Hector Babenco At Play in the Fields of the Lord (A Brincar nos Campos do Senhor, 1991) ou filmes mais que consagrado como Paris, Texas (1984), de Wenders ou um clássico com Cineglaz (Câmera Olho, 1924), de Vertov.
No papel é uma seleção histórica fortíssima, mas a prática é bastante frustrante. Nos 25 anos em que acompanho a Mostra, talvez nada seja mais notável do que como a parte histórica foi marginalizada. Estamos bem longe da edição de 2003 quando entre as retrospectivas de João César Monteiro, Yoshishige Yoshida e Mauritz Stiller a agonia era como encaixar algum filme novo. A seleção é ótima, mas os filmes passam poucas vezes (os restauros quase sempre só uma) e raramente nas melhores salas a parte a própria Cinemateca que fica distante do centro nervoso do evento.
A Mostra parece mais focada em chamar a atenção para o fato de exibir esses filmes do que os tratar bem. O pôster da edição foi feito a partir de uma arte de Ray, algo que do site oficial a boa parte das matérias na imprensa fazia-se questão de destacar, mas a retrospectiva era pequena, 7 longas, e para além da trilogia de Apu, compostas por uma série de filmes dos anos 60 que descobrimos durante o evento entrariam num serviço de streaming local (15 anos atrás poderíamos ao menos contar com uma ou duas semanas em cartaz). A homenagem a Mastroianni teve como evento central não uma das muitas obras primas que ele protagonizou, mas Marcello Mio (2024), novo longa do Christophe Honoré. De fato, o elemento mais curioso dela é que a seleção de seis filmes do ator não incluía nenhum realizado na Itália e se é bem verdade que não precisamos necessariamente dos Fellinis mais manjados, não faltavam filmes de Zurlini, Ferreri, Emmer, Monicelli, etc. que não são exibidos com frequência.
Existe uma lógica de press-release que domina a parte histórica do evento e me parece que a Mostra de São Paulo é regra e não exceção a este respeito. Dentro da economia dos grandes festivais de cinema contemporâneos, a história do cinema entra como um chamariz que agrega valor, mas de que não se sabe bem como lidar com. Estes filmes geram um tipo de cobertura nobre que soa bem para o evento. Trata-se de um símbolo a ser aludido, mais do que cinema para se engajar com.
Trato da minha experiência porque ela me parece bastante universal do que observo de amigos em outros festivais similares. É um estado das coisas no qual a marginalização do setor histórico é só um sintoma. Apesar de tudo, a Mostra de Cinema de São Paulo me parece acima da média nesta relação, a pequena retrospectiva de Michel Khleifi é uma tomada de posição que a maior parte dos grandes eventos de cinema de 2024 passaram muito longe de fazer, mas é como se nessa ânsia de seguir crescendo uma relação mais vigorosa e atenta para tudo que não se encaixa na ansiedade do contemporâneo se tornasse cada vez mais difícil.