Às vezes temo que passo tempo demais nessa série de textos falando sobre história do cinema brasileiro, mas para mim é algo inevitável. A minha geração começou a escrever no começo dos anos 2000 numa época em que havia um rompimento bem claro na discussão sobre o filme brasileiro. Havia um cinema industrial funcional, mas que passava por dificuldades e foi essencialmente encerrado no começo dos anos 90 e quando a produção aos poucos se restabeleceu na segunda metade daquela década o desejo de virar a página, de um cinema mais asséptico, bem-feito de bom gosto, criou esta discurso de ruptura. Alguns cineastas com chancela autoral serviam como imagens a ser referenciadas, mas não emuladas – a imagem ideal da história do cinema brasileiro neste período é a decisão de organizar Central do Brasil (Walter Salles, 1998) como uma viagem a Vitória da Conquista, cidade natal de Glauber Rocha. Quando comecei a escrever, havia entre colegas o desejo de recuperar e reavaliar esta história tanto para além do cânone (bastante centrado no Cinema Novo), como de se contrapor este desejo pela amnésia que era muito recorrente no jornalismo de cinema oficial.

Menciono tudo isso pois foi lançado por aqui a versão ampliada e bastante ambiciosa da coleção da Andrea Ormond, Ensaios Sobre o Cinema Brasileiro. Os dois primeiros volumes tinham sido publicados em 2016/17, mas sumiram num instante (nunca achei o segundo), e esta versão nova pela editora UICLAP é um notável avanço. São cerca de 1300 páginas entre os três volumes, indo de um estudo sobre o cinema silencioso brasileiro até um artigo sobre No Coração do Mundo (Gabriel e Maurílio Martins, 2019). Tem alguns artigos gerais sobre cineastas (Carlos Hugo Christensen) ou momentos (o filme policial do fim dos anos 70), mas como Ormond se especializou em recuperar filmes ele é dedicado quase todo a crónicas a partir dos mais diversos filmes do passado do cinema brasileiro. Ela começou a escrever no seu ótimo blog Estranho Encontro em 2005, então os dois primeiros volumes são escritos sempre por uma lógica de retorno e mesmo os textos de um corpo a corpo do presente mantêm esta curiosidade de filmes brasileiros como imagens que são reencontradas. É um apanhado do trabalho de uma crítica, mas é principalmente uma revisão do cinema brasileiro para bem distante das formas como ele costuma ser discutido tanto nos filmes cobertos como no olhar com o qual ela busca expandi-los. O ponto de partida de Ormond é que para os olhos dela, o Brasil produziu o cinema mais interessante do mundo e que a visita a qualquer filme desse cinema será reveladora.
“Se o leitor quiser saber como era o Brasil há 40 anos, sugiro que veja filmes“, Ormond escreve a certo ponto e este é o princípio organizador de todo o trabalho dela.
Algo muito recorrente nos livros é como cineastas por vezes aparecem por filmes inesperados: por exemplo fala-se sobre Bruno Barreto a partir de Amor Bandido (1978) e Romance de Empregada (1987) não do maior sucesso Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976); um dos filmes de Mojica Marins discutidos é Perversão (1979), que ninguém incluído a Andrea acha exatamente um dos melhores dele etc. Muitos filmes bem estabelecidos são cobertos, mas existe pouco esforço de se escrever sobre um filme porque ele seria relevante, com a possível exceção da curta parte sobre os anos 90 que tem vários textos de posição sobre sucessos do período.

Ormond está bem longe de uma apologista da indústria, mas a preferência dela por um cinema popular sempre foi bastante clara. Os livros não estão interessados em filmes de não ficção ou experimentais e os filmes autorais que circularam em festivais europeus minguam bastante a partir da década de 1970. É um livro onde por vezes se aprenderá mais sobre Paulo Porto, ator, produtor e ocasionalmente diretor nos anos 60 e 70, do que sobre Ozualdo Candeias ou Joaquim Pedro de Andrade. A parte menos interessante deles para mim é justamente quando trata dos clássicos do Cinema Novo porque sobre eles muito já se escreveu e no geral os filmes despertam menos a imaginação dela. Por outro lado, os textos sobre cinema policial em particular são sempre ótimos, um olhar precioso das muitas maneiras que o género expressou o conservadorismo local sem nunca soar de cima para baixo, até porque filmes como República dos Assassinos (Miguel Faria Jr, 1979), Odio (Carlo Mossy, 1977) ou Eu Matei Lucio Flavio (Antonio Calmon, 1979), são genuínos filmes de fascínio e não estudos de caso.

“Se o leitor quiser saber como era o Brasil há 40 anos, sugiro que veja filmes“, Ormond escreve a certo ponto e este é o princípio organizador de todo o trabalho dela. O cinema é uma grande máquina do tempo em que se passeia pelas mais diversas partes da sociedade brasileira, as imagens que ele nos deixou podem se revelar muito pouco mediadas, especialmente quando busca-se driblar o discurso que se formou ao longo do tempo a partir deles. Num texto bem típico sobre Garota de Ipanema (1967), o filme de ficção menos visto do Leon Hirszman, ela observa que redescoberto hoje o filme fascina pela sociologia incidental que extrai do gesto de colocar a juventude carioca de meados dos anos 60 na frente das câmeras, do que pela sociologia intencional que busca estabelecer a partir deles.
Ormond tem um gosto particular pela rica tradição de costumes do cinema brasileiro. Existe bastante de sociologia e psicologia espalhadas pelos livros, mas eles estão presentes mais na observação das relações íntimas que os filmes retratam, ela prefere colocar filmes a artistas no divã, por exemplo. É algo que enriquece bastante o terceiro volume que faz uma crônica do cinema do século XXI. Ormond concentra-se muito mais no cinema popular do período, cinebiografias ou comédias com Ingrid Guimarães, Paulo Gustavo e Leandro Hassum. Não é o cinema brasileiro do qual se tem orgulho e geralmente muitos dos mesmos críticos que celebram filmes da Boca do Lixo morrem de preguiça de lidar com eles (Andrea cunhou a expressão moneychanchada para obsessão deles por afluência que ajuda a aproximá-los de comédias de costumes do passado). É o mesmo esforço que ajuda com que ela extraia bem mais de filmes muito galados como Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015) e Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016) ao mover a discussão política sobre eles ao observá-los pelo ponto de vista da relação familiar e num retrato da esquerda aristocrática, respectivamente.
O que importa é que pelo olho de Ormond o cinema brasileiro parece mesmo o cinema mais interessante do mundo.
Uma das ideias feitas mais recorrentes sobre o cinema brasileiro é de que ele sempre funcionou por uma série de ciclos, o que tem suas utilidades, mas é sobretudo muito cómodo para os historiadores. Mas é também verdade entre a fundação da Atlântida aos últimos filmes desenvolvidos no suspiro final da Embrafilme, de O Moleque Tião (José Carlos Burle, 1943) a Não Quero Falar sobre Isso Agora (Mauro Farias, 1991), um movimento contínuo de formação e desenvolvimento de uma indústria popular, e boa parte do que estes livros têm de melhor é uma crónica sobre as imagens que esses filmes deixaram para trás.
Não é acidente que as décadas de 70 e 80, a segunda metade do primeiro volume e dois terços do segundo, sejam as mais ricas, frequentemente voltadas para filmes pouco discutidos e cheios de boas observações sobre o cinema e a sociedade. É um curioso paradoxo que o período mais rico do cinema brasileiro coincida bem com as duas décadas da ditadura militar de 1964-1985. A seção sobre os anos 1980 é especialmente rica, trata-se do patinho feio do período, geralmente visto como uma época de agonia, no qual salvam-se uns poucos filmes de autor, mas não na visão de Ormond, que extrai muito sobretudo dos primeiros anos.

Alguns dos gostos particulares da Andrea (os policiais dos anos 70, os filmes do Jean Garret ou Neville de Almeida) são muito próximos dos meus, outros bem menos, uma revisão dessas da minha caneta certamente falaria mais de Cláudio Cunha do que Alfredo Sternheim, de David Neves do que Arnaldo Jabor, mas isto é perder-se em detalhes do gosto, e uma das coisas boas aqui é que o gosto dela é ao mesmo tempo determinante curatorialmente e quase um detalhe. O que importa é que pelo olho de Ormond o cinema brasileiro parece mesmo o cinema mais interessante do mundo. Desconfio que ela produziria facilmente outras 1300 páginas falando de uns 200 filmes diferentes sem parecer que se trata de um lado B, assunto e imagens fascinantes é o que não falta.
Passaram uns vinte anos desde que cinéfilos como nós começaram a escrever sobre cinema brasileiro e a tentar buscar novos diálogos com sua história. Algumas batalhas foram bem vencidas outras nem tanto. Às vezes passo tanto tempo com amigos que sou pego de surpresa quando lembrado que para muitos ao nome de Neville segue um palavrão e que o discurso medíocre sobre a produção da Boca diminui, mas segue como um fantasminha por aí. A verdade é que este discurso sobre a amnésia histórica se transformou, mas permanece muito vivo, para ele o passado do cinema brasileiro vai ser sempre algo feio cuja superação passa pela supressão como se para se promover o hoje precisássemos sempre fingir que ele não existe num contínuo. Esforços como este da Andrea Ormond me parecem fundamentais como contraponto e creio que ninguém da minha geração tenha feito um esforço tão amplo como o desses três livros.