Em Outubro de 1993, vi o Jurassic Park (Parque Jurássico, 1993), de Steven Spielberg pela primeira vez, com o entusiasmo e a adrenalina de quem estava a descobrir um filme novo. Por essa altura já tinha visto, na RTP2, filmes do Almodóvar e achado que havia vida para lá da fronteira, se os guardas do posto fossem todos iguais ao Antonio Banderas; e já tinha visto, com igual espanto, o primeiro e o segundo Alien, e haveria de ver o terceiro no mesmo ecrã, de David Fincher, e percebido que a metáfora para a contaminação era igual ao medo que enchia as ruas parisienses filmadas contra o tempo por Cyril Collard em Les Nuits Fauves (Noites Bravas, 1992), que haveria de ver, ou teria já visto, igualmente na televisão, e tanto me impressionara, sem saber muito bem como, mas intuindo o porquê.

Tudo isto eram referências cruzadas, que foram alimentando um olhar feito de atropelos, pressas e VHS trazidos clandestinamente debaixo do casaco das prateleiras do maior supermercado da margem sul, diligentemente arrumadas e classificadas com os recortes das tarjas que vinham nas revistas. Tudo isso eram tardes de cinema sem olhar a formatos, ao tempo nem ao género. Eram as pernas da Victoria Abril no Átame! (Ata-me!, 1989) e a luva de lâminas do Freddy Krueger; era a solidão da Condessa Olenska, para sempre encerrada no rosto marmóreo da Michelle Pfeiffer, vítima da fama apoucada pela sociedade nova-iorquina que Martin Scorsese adaptara do romance de Edith Warthon, The Age of Innocence (A Idade da Inocência, 1983), e as dores do crescimento do Peter Pan no Hook (1991), do Steven Spielberg… era isso tudo, e o Twin Peaks a passar logo depois do Pantanal, com a Juna Marruá e a Laura Palmer a serem um só corpo descoberto num plástico enlameado pelas águas do Amazonas… Por isso, quando chegaram os dinossauros, depois ou antes de algumas imagens, mas e porque de tal forma transformadoras que passaram a ser as imagens iniciais, com isso inventando uma cronologia que ajudou a defender a vontade de viver dentro de um ecrã, foi como se a imagem-primeira, aquela que iria dizer que o cinema podia ser ponto de partida, surgia ali.
Parque Jurássico é um filme de espanto, 30 anos depois da sua estreia. Precisamente porque existindo depois de outros que também mostraram dinossauros, mas não desta forma, e porque existiram outros depois deste, há qualquer coisa de inocentemente inaugural neste filme.
O ecrã da Academia Almadense era muito grande. Era maior do que qualquer movimento de cabeça que um pré-adolescente conseguia fazer de um movimento só. Ecrãs daquele tamanho, hoje, já não existem ou são raros. Como é rara a experiência de primeira vez. Não só a de ver pela primeira vez, mas a de ver como se não se soubesse nada antes e, por isso, o que se vê ser a primeira vez de todas as vezes, porque inicial e iniciática.
O ecrã era grande, a tarde era demorada, o filme era imenso. De todos os filmes ali vistos, este foi o maior de todos. E demorou tanto tempo a chegar. 65 milhões de anos de espera e ei-lo, ta-ra-ram-tam-tam, ta-ra-ram-tam-tam, tarara-ra, tam-ta-raram… e a cadeira foi pequena, e o coração ficou pequeno, e os olhos abriram-se para neles caberem os metros e metros do pescoço à cauda daqueles animais que agora eram reais e verdadeiros e tudo, porque o cinema os havia filmado como eles eram: de sangue quente, a moverem-se em manada, a rugirem como nunca se soube que faziam, e sem qualquer comparação com qualquer outro animal.
Não será o que se vê, mas como se vê. E Parque Jurássico foi, também, o primeiro texto que escrevi sobre um filme. Todas as frases começavam com a mesma palavra: “Excelente”. Era tudo excelente. Não sei já reproduzir, o texto hoje seria o que já era na altura: adolescente, deslumbrado, barroco (característica que não perdi, em bom rigor), mas aquele texto viveu meses no quadro de cortiça que tinha no quarto, tentava fazer com cada frase a experiência aproximada do espanto e da invenção de palavras que ainda não conhecia. Anos mais tarde, a Jodie Foster di-lo-ia melhor, no Contact (Contacto, 1997), igualmente visto na Academia Almadense: “deviam ter trazido um poeta”. Deviam.
Achei que nunca mais viveria esse espanto. E que sorte poder tê-lo sentido uma vez. Há uma memória de que me lembro sempre, a do Augusto M. Seabra quando viu o E.T. (E.T. – O Extra-Terrestre, 1982) no Festival de Cannes, e que ele contou num documentário do Edgar Pêra, O Espectador Espantado (2016): “Eu, entre aquelas que acho de certeza das projecções da minha vida, está a estreia mundial, a encerrar o Festival de Cannes de 1982, o E.T. do Spielberg. O texto que eu então escrevi chamava-se O filme do nosso deslumbramento. Eu não acreditava, eu dava pulos na cadeira!”.
Não achei que pudesse voltar a ter essa experiência, a mesma que busco de cada vez que, nunca interessou onde nem quantas vezes, volto a entrar numa sala onde esteja a passar o Alien. No espaço ninguém nos ouve gritar e, numa sala de cinema, ninguém sabe quantas vezes viste o mesmo filme. E, no entanto… no entantam-tam, taram-tam-tam, ta-ra-ra-ra, ra, tam-tam-tam…… no início deste ano, o Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian programou três datas para um cine-concerto, com a direção do maestro Anthony Gabriele, onde a música de John Williams se tornava o centro da relação entre o ecrã e o espetador. Os bilhetes esgotaram num ápice e, na plateia do segundo dia, eram muitos os que, como eu, terão tido essa experiência transformadora e agora levava filhos, sobrinhos, namoros de relação sólida, porque não se partilha tamanha comoção com quem esteja ainda à prova – porque nem tudo vale todos os riscos – e se sentava na plateia desenhada a Bartok, Shostakovitch e Britten e dizia: esta música é do meu século XX.
O debate sobre se este é um concerto digno de uma temporada de música, deixo-o para quem se refreia nas emoções e as hierarquiza, esquecendo-se que são oblíquas as portas de entrada para um panteão de referências. Onde estaríamos sem as bandas-sonoras dos filmes e o que se ouve, no silêncio e solidão dos nossos pensamentos, se não, e tantas vezes, passagens inteiras que serviram para acompanhar imagens que são esses lugares felizes onde nos refugiamos? Eu não sei. Mas sei de cor as cores de todas aquelas sequências excelentes e nunca hesitarei em me colocar do lado dos dinossauros, agora que os forçamos ao regresso. Santo Ian Malcolm (Jeff Goldblum) explica: “Deus criou os dinossauros. Deus destruiu os dinossauros. Deus criou o homem. O homem destruiu Deus. O homem criou os dinossauros.” Se tirarmos, como devemos tirar, Deus da equação, é sempre preferível defender os dinossauros, porque há qualquer coisa de absolutamente irracional que nos estrutura, e que é esta crença absoluta não em Deus, mas na transformação pela emoção que o desconhecido e o imprevisível pode propor. O início de cada filme é isso: acreditar que nos vai mudar a vida. Por isso, quando a história se oferece na repetição, refazemos o gesto mas não estamos preparados para o que se segue.
Quando o Dr. Grant (Sam Neill) e a Dra. Sattler (Laura Dern) vêem os dinossauros pela primeira vez; quando a música de John Williams se eleva à altura da folhagem a ser arrancada pelo Brontossauros, quando a magia do cinema se concretiza num plano que se coloca ao nível do indizível e observa, levando-nos, como se ele próprio visse pela primeira vez… o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian transformou-se na sala da Academia Almadense, eu voltei a ter 13 anos e as lágrimas caíram porque era assim que não sabia que ia ser.
É bizarro ver um filme como este, hoje. Há sequências inteiras sem um único corte, que deixam que se terminem as frases das personagens. Personagens essas que falam sobre ética e genérica. Para lá da evidente ausência de telemóveis – a não ser aqueles que estavam na plateia e que, para grande espanto, só se ouviram uma vez –, a tecnologia é toda ela obsoleta: há CD-Roms, e telefones fixos, e é preciso atravessar um parque cheio de velociraptors para ir ligar, à mão, umas tomadas. Mas há uma constante novidade na presença destes animais, devolvidos ao ecrã como se isso pudesse ser possível, e repetissem a evidência: o homem perderá sempre. E Ellie Sttaler poderá ver confirmada a conclusão da teoria: “Os dinossauros comem o homem, a mulher herda a terra.”

Parque Jurássico é um filme de espanto, 30 anos depois da sua estreia. Precisamente porque existindo depois de outros que também mostraram dinossauros, mas não desta forma, e porque existiram outros depois deste, há qualquer coisa de inocentemente inaugural neste filme. A fronteira entre o digital e o híbrido ainda trazia a memória dos filmes de Ray Harryhausen, mas não eram a distopia que tinha estragado o universo dos jedis de George Lucas. Não era completamente um jogo de computador, porque filmado ao lado das personagens, nunca se antecipando nem lhe criando armadilhas que lhes seriam fatais, como os seguintes. Era um filme que esperava pelo espetador, que se punha do lado dele, que se deixava cair de medo e se levantava porque queria resistir. Era um filme que ensaiava respostas, mas percebia que podia falhar. E essa imperfeição, embrulhada na tecnologia de ponta, foi, no início da década de 1990, a fronteira entre a ficção científica e a ambição desmedida do homem. Uns anos mais tarde, na mesma altura da sequela de Parque Jurássico, intitulada O Mundo Perdido, surgiria o primeiro animal criado em laboratório, a ovelha Dolly. Morreria seis anos depois. O circo de pulgas de John Hammond era a ilusão, como explicaria Ellie Sttatler ao magnata que, aos olhos de hoje, nos parece inofensivo, porque aparentemente menos ganancioso e manipulador do que os que começaram a surgir depois, no ecrã e fora dele. E este cinema ainda acreditava, ainda esperava, pelo espetador. Via, afinal, com ele. E avisava.
Sempre me surpreenderam os relatos de Spielberg sobre a rodagem simultânea deste filme com Schindler’s List (A Lista de Schindler, 1993), projeto mais do que pessoal, rodado no inverno polaco, e onde a perfídia e a experimentação dita médica, promovida pela máquina de morte nazi, ecoava nesta manipulação que permitia criar e eliminar seres já extintos. Não irei encontrar uma entrevista que me marcou, e onde Spielberg dizia que vinha descansar da violência emocional de um filme sobre as origens da sua família num filme onde várias personagens formam uma família para tentarem sobreviver a quem os quer comer. Bom, a vida encontra sempre um caminho, avisou o Dr. Malcolm, não se tivessem posto a fazer de criadores, e talvez não precisassem de se proteger. Again: é sempre melhor estar do lado dos dinossauros, que não são os vilões desta história.
Trinta e dois anos depois, rever Parque Jurássico, nesta versão de concerto, onde a música ganha a escala que lhe é devida, e onde a grandiosidade e opulência das imagens se transforma perante a sinceridade e o diálogo que a partitura propõe, é perceber como podemos viver um filme a partir de uma experiência física, e de como ver um filme é, de facto, uma experiência coletiva. A sala susteve a respiração quando os dinossauros surgiram pela primeira vez, porque se lembraram do que haviam sentido há, repito, trinta-e-dois-anos. E, no palco, o entusiasmo de uma orquestra a tocar num transbordante entusiasmo, sem precisar de dizer se era melhor ou diferente de uma outra obra que talvez pudessem ter estado a estudar nessa tarde. Ali, naquele momento, eram aqueles interpretes que nos levavam a essas memórias que nos fizeram levantar da cadeira e achar-nos no meio de um parque que só tínhamos desenhado, montado em peças vindas em fascículos semanais da Planeta Agostini, vistos nas televisões pequenas, projetado a partir das aulas de biologia.
Por uma noite, por três noites, ao fim destes milhões de anos todos à espera, o cinema que tinha conseguido filmar o que seria o encontro entre os humanos e os dinossauros, tornava-se, outra vez, o primeiro filme da memória futura.