David Lynch faleceu no último dia 15. Se você está lendo uma publicação online como À pala de Walsh, certamente sabe disso, mesmo que calhe de seus filmes não lhe dizerem grande coisa. Não foi exatamente um choque, o realizador revelou no ano passado que não poderia mais ir a um set de filmagem, de que sofria de enfisema e vinha optando por um isolamento completo. Ainda assim, sua morte foi inescapável dentro de ambientes de fãs de cinema, o luto dos fãs nas últimas semanas se espalhou por toda parte. Seus filmes me dizem muita coisa, ao menos parte deles, e eu me peguei pensando bastante no fim de semana em que assisti Mulholland Drive (2001) pela primeira vez, duas vezes em sessões de pré-estreia à meia noite numa sexta e sábado, no sábado a tarde a Cinemateca Brasileira exibia Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses, 1950), o que calhou de ser perfeito. Isto se deu há quase 23 anos atrás, mas o cinema tem às vezes este feito de manter certas memórias muito vivas.

Também me peguei pensando muito na reputação de Lynch quando eu era adolescente no fim dos anos 90. Não poderia ser mais distante do luto encontrado nessas últimas semanas. Na segunda metade dos anos 90 David Lynch era tanto um cineasta muito famoso, como um invocado com frequência como um picareta, um homem dado a truques malevolentes. 25 anos podem fazer muita diferença e me peguei pensando nessa distância e neste recuperação de imagem. David Lynch não dirigiu um longa-metragem desde Inland Empire (2006), que foi recebido com uma certa confusão. Nos últimos 18 anos ele fez alguns curtas, incluindo algumas encomendas, permaneceu muito ativo em redes sociais e dirigiu todos os episódios da terceira temporada de Twin Peaks (2017), um objeto muito particular que foi tão bem recebido quanto a maior parte do trabalho dele posterior a 1990, que não fosse Mulholland Drive, fora visto com ambivalência. Não é exatamente incomum para cineastas esta pouca atividade nas décadas finais de vida, mas é notável como no caso de Lynch o quanto mais gostado ele se tornou em semi ausência, que as pessoas se mostraram dispostas encontrar seu último trabalho nos seus termos, mesmo que estes muitas vezes não poderiam ser mais distantes do que fãs da série original desejavam.
Creio que pensei tanto na imagem de Lynch quanto nos seus filmes nesses últimos dias, muito porque associei a morte dele a algumas outras tantas dos últimos anos. Lynch era bastante entusiasta de digital, e na minha experiência cineastas veteranos gostam do formato bem mais do que seus fãs. Lembro-me de perguntar a Paul Vecchiali se ele não sentia que seus filmes perdiam algo com a mudança de formato e ele me respondeu de forma bem ríspida. Ainda assim, creio que assim como muitos tendo a pensar em Lynch como um cineasta dos tempos do análogo. Quando Inland Empire foi lançado, suas imagens digitais, muitas das quais produzidas originalmente para seu website, se destacam por como a crueza delas se relacionam com os filmes no seu entorno.
Me peguei pensando um bom tanto em Frederick Wiseman e Clint Eastwood nesses últimos dias. Outros dois mestres de cinema americano que na última década permaneceram bem mais ativos. Eastwood lançou seu último filme, Juror #2 (Jurado #2, 2024), no fim do ano passado. A Warner Brothers, estúdio para o qual trabalhou quase exclusivamente desde 1976, fez muito barulho sobre se tratar do seu último filme e depois mal se preocupou em lançá-lo. Wiseman lançou seu último trabalho Menus-plaisirs – Les Troisgros (2023) no ano anterior. Ambos nasceram em 1930, então que tenhamos filmes deles nesta década é por si só algo notável. A produtora de Eastwood, Malpaso, soltou nota à imprensa sobre como ele está avaliando roteiros para um possível novo filme, mas houve também artigos sobre as filmagens de Juror #2 que sugerem uma filmagem bastante delicada, pensada em torno da saúde e idade de seu realizador.

Este mês Wiseman recebe uma retrospectiva completa em Nova York e numa entrevista para promovê-la quando perguntado sobre novos projetos ele foi bastante honesto: nada no momento, filmes demandam muito e lhe falta energia no momento para começar um novo. Salvo uma surpresa é bem provável que Juror #2 e Menus-plaisirs sejam os filmes derradeiros deles e meu lado crítico pode apontar que são ambas belas maneiras de encerrar suas filmografias, não só filmes excelentes, mas que não deixam de iluminar muito do que os torna fascinantes. Quando penso nisso, porém essas observações não importam muito, não estou pronto para um mundo em que não existam novos filmes de Eastwood e Wiseman. Há talvez um excesso de drama nisso e um outro tanto de egoísmo, mas é uma constatação pessoal difícil de negar.
Fãs de cinema são às vezes bastante sentimentais para com realizadores veteranos. Sei que eu sou. Algo muito rico em se permanecer com uma obra por anos a fio, especialmente quando ela é tão ampla quanto as de Wiseman e Eastwood. Permanecer filmando regularmente é um presente para artistas e aqueles que admiram seu trabalho. Lynch tinha 60 anos quando lançou seu último longa-metragem, apesar de imaginar que ele importava menos com o formato do que a maioria dos realizadores. A indústria de cinema é sempre algo cruel. A última imagem que a maior parte das pessoas tem de Lynch é sua ponta no final do The Fabelmans (Os Fabelmans, 2022) de Spielberg, interpretando John Ford a quem Spielberg encontrou uma vez no fim dos anos 60, quando começava a trabalhar na televisão. Ford já fizera seu último longa a época, mas ainda tinha seu escritório num dos estúdios, e não muito tempo depois disso foi obrigado a fechá-lo.

Há alguns cinemas que me parecem bem perto dos seus fins naturais. A passagem da película para o digital, do filme para o arquivo, é tão traumática e radical a sua maneira quanto a chegada do cinema sonoro. Então estes nomes todos que construíram uma obra encorpada antes disso parecem pertencer a um outro tempo e tradição mesmo que as realidades materiais empurrem todos para o digital. Cada novo filme de alguns deles é motivo de celebração. Fico feliz com a notícia que Adolfo Arrieta conseguiu o dinheiro para mais um filme ou que Ruy Guerra lançou um longa (em parceria com Luciana Mazzoti) no fim do ano passado aos 93 anos. Sigo igualmente contente de que nomes como Julio Bressane e Claire Denis sigam bastante ativos.
Nessas últimas semanas também pensei bastante no dia que vi Bonjour la langue (2023), filme póstumo de Paul Vecchiali. Como quase todos os filmes que o realizador francês fez no fim da vida, ele é mínimo e quase amador: alguns amigos numa filmagem digital rápida animada pela abertura para o drama ao qual seus filmes sempre demonstraram. Um filho visita o pai com quem ele não via há décadas, são três cenas longas, mais um reconhecimento do que uma reconciliação. Vecchiali e claro interpreta o pai e se existe uma ficção ali sua presença (como a de Eastwood no seu penúltimo filme Cry Macho, de 2021) por vezes nos atira para fora dali; aquele senhor nonagenário que permanece sentado salvo por um par de planos, a reclamar das coisas, da covid que lhe prejudicou os pulmões, dos amigos que seguem morrendo. Não é um filme funeral, longe disso, mas é de certo um filme no qual a finitude segue presente o tempo todo. Paul Vecchiali teve a ideia do filme quando soube da morte de Jean-Luc Godard, a quem ele é dedicado. Ele viveu quatro meses a mais que Godard, tempo de nos deixar este último filme. Lembro-me de chorar vendo o filme, tanto por Vecchiali, mas por esta finitude mais ampla que estava ali no despojamento do filme, neste sentimento de coisas que acabam, mais aos quais nos apegamos. É uma certeza que parece cada vez mais forte quando lido com o que restou de certo cinema hoje.