1. A nascença da “modernidade”, entre finais do século XVIII e todo o século XIX, é atravessada pelo estertor de uma múltipla violência: revoluções (a de 1789 em França, as convulsões de 1848 na Europa e a Comuna de Paris de 1871), guerras (muitas, das napoleónicas no início do século XIX à “guerra civil” americana entre 1861/5 ou à franco-prussiana de 1870/1), sem esquecer o permanente efeito devastador das epidemias (cólera, a larvar tuberculose e já, no inicio do século XX, a chamada “gripe espanhola”). Tudo isto conduziu à banalização do contacto com a “morte” transformada num factor de ”con-formação” e “estetização” (percepção e experienciação sensível) do “quotidiano”, algo que se processava sempre num entre-deux, um espaço convulso de crise/ perigo dado entre o “trágico” (sublime) e o “grotesco” (quando não burlesco) da degradação e decomposição dos corpos (dito de outro modo, o fedor da podridão que varria o incenso das áreas protegidas da “aura” e do “espírito”). Esta é a época em que na América Edgar Allan Poe escreve a sua obra (Tales of the Grotesque and Arabesque, que inclui “The Fall of the House of Usher”, saiem 1841) e em França se vivia o “ultra-romantismo” da “escola do cadáver” em que se pode incluir o poema “Une Charogne” de Baudelaire.
Como comenta Christine Marcandier-Colard, em Crimes de sang et scènes capitales – Essai sur l’esthétique romantique de la violence (PUF, 1998), a violência, que impregna tudo, posiciona-se, por um lado, como factor de transgressão dos limites da representação e da linguagem (Literatura) enquanto, por outro lado, se constitui como um novo critério estético, o de uma estética do “mal” (Baudelaire, com Les Fleurs du Mal [1857], continua a ser um bom exemplo) e do “crime” (Thomas De Quincey publica em 1827 On Murder considered as one of the Fine Arts [O Assassinato considerado como uma das Belas Artes]). Comenta Michel Foucault em Surveiller et Punir (1975): “Desenvolve-se então (…) uma literatura do crime: uma literatura em que o crime é glorificado, ou porque ele é considerado uma das belas-artes [De Quincey], ou porque é obra de naturezas excepcionais e revela a monstruosidade dos fortes e dos poderosos [Sade, Les 120 journées de Sodome, escrito por volta de 1785 e de que Pasolini fez um filme, Saló, em 1975] ou porque a malvadez ainda constitui uma forma de ser de um privilegiado [o médico de The Strange Case of Dr Jeckyl and Mr Hyde de Stevenson (1886)]: do “romance negro” [gótico, inglês] a Quincey, ou de The Castle of Otranto [Walpole, 1764] a Baudelaire, há toda uma reescrita estética do crime que é também uma apropriação da criminalidade sob formas agora aceites” (apud Marcandier-Colard [50]) (traduzimos e sublinhamos).
Na nova sociedade de massas das grandes cidades europeias (Paris, Londres) e americanas (Nova Iorque, Chicago), em que o estatuto de “anonimato” do indivíduo (duplamente detectado por Poe em Man of the Crowd [1840] e Baudelaire, em Le Peintre de la Vie Moderne [1863]) propicia o crime, surge uma cultura do fait divers (do banal extraordinário), com a sua retórica (e poética) do “pormenor” escabroso pronto a ser investido pela vaga de fundo do “fetichismo”, que o novo “jornalismo popular”, de massas e sensacionalista – contemporâneo do roman feuilleton, do melodrama social e passional (patológico) (Maria! Não me mates, que sou tua Mãe, de Camilo Castelo Branco, é de 1848), assim como da primeira “literatura policial” (com The Murderers in the Rue Morgue e The Porloined Letter de Poe [1841 e 1845]) – vai difundir um pouco por todo o lado.
2. A sociedade industrial de massas, como observa Hervé Aubron (“Faits divers, Inc”) revela-se ela própria inventiva e romanesca, uma verdadeira “fábrica de acontecimentos” (número especial Faits Divers da revista Vertigo, 2004 [5a]). Dada entre o “documento” (jornalístico) e a “ficção”, ou seja, entre a hipóstase do olhar e o imaginário, a narrativa do fait divers, pela dramatização (melodramática, panorâmica) e pelo detalhe (histericizado pela fotografia), torna-se ela própria um acontecimento (idem).
Assim, se na Literatura o “acaso” (insignificante) é recuperado pelo “sentido” (do belo, da lição ou moral), a matéria do “fait divers” (segundo a bela definição de Pierre Grandrieux, realizador de Sombre [1998], o “fait divers” é “tudo o que acontece”, “o conjunto de possíveis de um mundo que surge” [Vertigo [87b]) tende a ser deixada ao in-significante. Roland Barthes caracteriza-o como “uma informação monstruosa” que tem a ver com “o resto não-organizado das notícias”, ” o “inclassificável” – e precisa, sublinhando o seu carácter “imanente” ao próprio real, que ele “começa a existir onde o mundo deixa de poder ser nomeado” (“Structure du fait-divers” [1962], Essais Critiques, Seuil, Points, 1981 [188/9]). Já Jacques Rancière, na entrevista à mesma revista, comenta que, por ele, a vida (do) comum (a “espessura” da vida social, do povo) passa a ser dada “na sua insignificância” e que daí brota um novo regime de “narração” (representação e significação) em que as categorias tradicionais (estéticas, morais, sociais) se tendem a misturar e apagar nos seus contornos (identidade) [17a].
No quadro da nova sociedade (e psicologia) de massas, percorrida por essa compulsão ao ver = mostrar que procura sempre um grau mais elevado de “real” (Zola), desenvolve-se também, num crescendo, ao longo do século XIX, uma nova sociedade do espectáculo caracterizada por um novo público (sobretudo popular) e novos “espectáculos” (dispositivos e modalidades de “mostração” cada vez mais sensacionalistas). A própria “morte” vai-se tornar um lugar de práticas de “encenação” e “visibilização” do seu aparato, como sucede com a institucionalização (legal e social) do teatro (espectáculo) da Morgue em que é omnipresente, desde 1804, a “sala de exposição” dos cadáveres (afogados, assassinados, corpos por identificar [ver o impressionante filme de Peter Greenaway, Death in the Seine, 1989]): aí, esses restos eram expostos por detrás de uma grande vitrine frente à qual os mirones, por vezes em bando, circulavam e paravam para observar melhor, e de mais perto, os cadáveres (cf. Vanessa Schwartz, “Public visits to the Morgue: flânerie in the service of the State”, Spectacular Realities -Early Mass Culture in Fin-de-Siècle France, University of California Press,1988).

O “espectáculo” que aqui se dá a ver, contudo, é o espectáculo do real (da “charogne”), um espectáculo universal (democrático) e barato (como os passeios de domingo), que se apresenta como uma espécie de jornal ilustrado (3D) do crime (uma “viva ilustração de publicação em série de mistério”, como se pode ler num jornal, L’Éclair ,da altura [Schwartz (82)]), uma instalação que depois o museu de figuras de cera (o Grévin, em Paris, abre em junho de 1882) embalsamará.
Não é aí também que vem, e se inscreve, a partir de 1895, o cinema? Com a sua componente jornalística de “sensacionalismo documental” (os Lumière) mas também o seu lado atraccional (que não se resume a Méliès)? A própria estrutura destes “filmes-comboio”, anteriores à sistematização da Montagem (Griffith), apresenta-se como um “encadeamento” por justaposição de elementos díspares (heterogéneos) entre si que parece obedecer à lógica de assemblage do fait-divers (no jornalismo ou na para-literatura).

3. Fruto da produção em série, de massa, o serial killer, para lá de poder ser uma figura do “mal-estar” (e viver) da sociedade contemporânea (“a new kind of sickness of our time”, para James McNaughton, realizador de Henry, Portrait of a Serial Killer [Henry: A Sombra de Um Assassino, 1986]), pode também ser encarado como uma alegoria do estado actual das artes.
É conhecida a relação existente entre a “serielidade” e as condições de “reprodutibilidade” técnica e massiça da modernidade. Walter Benjamin, enraizando essa problemática na 2ª metade do século XIX, com a sua interpretação de Baudelaire, alude a uma estética do choque. Para Benjamin, com efeito, “o homem moderno passa a ter de pagar um custo pelas suas sensações”, o do “afundamento da aura na experiência do choque”, e é neste quadro que, com o cinema, “a percepção traumática adquiriu o valor de um princípio formal”, já que “o processo que determina, na cadeia [de fabricação] da indústria, o seu ritmo de produção, se encontra na base do próprio modo de recepção característico dos espectadores de cinema” (Charles Baudelaire, un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, Payot Poche, 1982 [207, 180]) (traduzimos).
No entanto, para lá da relação entre jornalismo e crime – instituída pelo menos desde o caso de “Jack the Ripper” no final do século XIX (1888) -, no cinema, logo no início do século XX tem-se obras serializadas e por partes (os serials) que vão dar cobertura (asilo e campo de acção) aos primeiros grandes criminosos do cinema: Fantômas (1913/4) ou Les Vampires (Os Vampiros, 1915) de Louis Feuillade, Dr. Mabuse, Der Spieler (Mabuse, o Jogador, 1922) e Die Spinnen (As Aranhas, 1919/20) de Fritz Lang, por exemplo.
Na verdade, o carácter de descontinuidade e fragmentação do serial produz um verdadeiro “efeito de morte” (cirúrgico, clínico) na desmontagem (desconstrução) dos valores de “unicidade” e “aura” da obra de arte tradicional. O artista moderno já não se limita a ser um dandy flâneur (Baudelaire) mas é ele próprio um assassino em série: ele estraga as suas obras, retalha-as (vd. Gioconda [L.H.O.O.Q.] de Marcel Duchamp [1919]) ou falseia-as (os ready made de Duchamp ou o dinheiro falso de Magritte e Masters, o falsário-artista de To Live and Die in L.A. [Viver e Morrer em Los Angeles, 1985] de William Friedkin.
Também hoje se vive num estado de guerra constante e generalizado. Assim, quando em 1863, no Peintre de la Vie Moderne, Baudelaire (ante)vê no “militar” a figura terminal do dandy , fá-lo não só porque o militar – introduzindo como termo de “reflexão” para a composição da sua imagem (toilette) no espelho, a morte – leva essa figura ao seu limite, mas também – no seguimento da percepção de Stendhal, no seu manifesto Racine et Shakespeare (1823/4), de que “um escritor necessita de ter tanta coragem como um soldado”, “nem o primeiro deve pensar nos jornalistas nem o segundo no hospital” – devido à necessidade dele ter de adoptar na sua acção tácticas (militares) de (contra-)terrorismo e de guerrilha. Algo que os “futuristas” (italianos mas não só) também praticarão no início do século XX (durante e após a Iª Grande Guerra).
É esse também o estado de decomposição e explosão dos corpos e das obras que caracteriza parte importante do “estado da arte” de hoje, tanto na “literatura” (Don DeLillo, William T Vollmann) como no cinema (gore ou não) ou nas ditas “artes plásticas” (Paul McCarthy, Damian Hirst, Orlan). Com efeito, o problema da “violência” na sociedade americana de que o “serial killer” seria um dos nós de (des)articulação e (des)simbolização mais significativos, corresponde talvez à situação do Sujeito na “arte”, dado nas condições (sempre traumáticas) da sua reprodutibilidade técnica. Na verdade, ele é, por um lado, o “assassino em série”, um produto da “massa”, enquanto, por outro lado, no quadro da estética (gore) do “choque” da sociedade industrial, a sua publicitação passa pelas novas fórmulas virtuais de espectralização do real nas imagens (de TV, vídeo, cinema ou das novas técnicas digitais de comunicação). De acordo com a caracterização por Benjamin das condições, técnicas, (re)produtivas e artísticas da “modernidade”, o trabalho em cadeia (série) do “serial killer” reflecte os “modos de produção” (e cadências) do capitalismo (no cinema, a fragmentação do découpage e montagem, aliada ao bruitismo industrial do som [The Texas Chain Saw Massacre (O Massacre no Texas, 1974) de Tobe Hooper]) assim como o estado técnico (mecânico) da perda dos “valores” e do culto (sagrado) da “aura” da “obra de arte” (W. Benjamin, A Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica [1ª versão 1936]).
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Trata-se, assim, de um conjunto de obras (práticas) que coloca no seu centro a questão da (má) relação com o outro, um “outro” que, nas condições americanas, vem do lugar da “origem”, do “mesmo”, da essência (a haver) do lugar (o do indígena norte ou sul-americano) de que o sujeito da cultura WASP (White Anglo-Saxon Protestant) se pretende apresentar como o termo de referência (re)definidor (se não originário). Daí uma dupla violência: a que tem a ver com a exclusão, erradicação do outro (original) do seu lugar, mas também a necessária para que um novo sujeito aí se instale e elabore (imponha) um outro “romance das origens”. O puritanismo WASP, com a sua política de limpeza étnica e definição de uma identidade pura, conduz à exclusão de todos os que, de algum modo, directa ou indirectamente, questionem essa fábula (pense-se em Poltergeist [Poltergeist, o Fenómeno, 1982] de Tobe Hooper ou Wolfen [Cidade em Pânico, 1984] de Michael Wadleigh onde índios shapeshifters defendem o seu antigo território em Nova Iorque).
Dito isto, importa também relacionar a “fantasmização” do outro com o carácter onírico de algum gore, expressão alegórica do “pesadelo americano”: caso da série Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street [1984]), centrada em Freddy Kruger, o assassino que vem pelo sonho, cuja toponímia imaginária remete para um cruzamento trágico da história recente americana associado com o assassínio de John Kennedy em Dallas (a 22 de Novembro de 1963). Mas também o “pesadelo acordado” de American Psycho de Brett Easton Ellis (1991): nele, a “verdade” ou “hiper-realidade” do “sonho” (americano), revelava-se como filme (cinema, pesadelo [vd. filme homónimo, de 2000, de Mary Harron]). Dito de outro modo, a violência com que se força a passagem à realidade desses “mitos” (arqué-tipos) acaba por os des-figurar, deslocar para o plano de um grotesco e pesadelo sempre acordados.
Assim, se o “serial killer” pode ser pensado como a mais radical figura do outro enquanto figura do outro – dado fora do espelho, exteriormente às nossas referências, cultura -, ele é-o em função de um reforço de identidade, de um narcisismo de grupo que podemos talvez designar como um fenómeno (massivo) de serial-identidade.
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Produto de uma wound culture (Mark Seltzer, Serial Killer – Death and Life in America’s Wound Culture, Routledge, 1999) – uma cultura ferida e da ferida – e ao mesmo tempo tropo de uma narrativa de “fronteira” (“psico-frontier”), o work in progress do “seria killer” corporiza a passagem dos paradigmas verticais aos horizontais: a desconstrução dos “arquétipos” pela proliferação em cadeia, não-motivada e horizontal, dos significantes (corpos ou actos). O corpo em partes que da sua passagem (errante, nómada, sem fim ou destino) deixa o “serial killer” constituiria o seu novo texto (sequencial, não-teleológico, talvez mais descritivo do que narrativo), um texto-catacrese próprio do seu novo sistema de signos (os corpos) e projecto de significação (diabólico, sim, mas também alucinatoriamente re-simbolizador). O carácter monstruoso do “serial killer” tem, afinal, a ver com essa hipótese de um poli-desdobramento, de uma hetéro-configuração do sujeito como outros. Hipótese que, no seu universo de simulação, as “artes” (?) ou o jornalismo (as narrativas protótipo das culturas) experimentam e ao mesmo tempo atenuam e e exorcisam.
Na verdade, o corpo das vítimas do “serial killer” é um corpo de órgãos desmembrável. Do ponto de vista da representação corresponde-lhe o expressionismo abjecionista do “detalhe” enquanto excesso, congregação (assemblage) de partes do real. Ao fim e ao cabo, esculturas (des)feitas de carne, como na série televisiva Hannibal com Mads Mikkelson (3 temporadas entre 2013 e 2015). Tudo bonecas de Bellmer incompletas, a que faltam algumas peças e que se rearranjam de modo a preencher, colmatar, a ausência desse “vazio” (nada ou negativo ontológico). Mesmo que se possa falar de uma schize do desmembramento metonímico, relacionável com uma splitagem psicótica (vd. Split [Fragmentado, 2016] de M. Night Shymalan), ele é sempre percorrido pelo metamorfismo (monstruoso: perverso) de uma catacrese-metáfora (doente). Encontramo-nos, assim, perante uma estética (narrativa) do “pormenor”, detalhe, em que a metonímia surge como a nova (não-)metáfora, com um valor ao mesmo tempo de impedimento do salto (reunificador) do sentido e sua articulação (precipitação) catacrética.

A referência ao “corpo grotesco” (via Bakhtine) produzido pela actividade do “serial-killer” – ele desliga corpos/membros (ou seja, a hipótese de unidade e a medida antropomórfica do corpo [Aristóteles]), ao mesmo tempo que dilui na máscara mortuária a singularidade da “face” (e da “aura” de pessoa) – permite-nos compreender, por muito que isso nos custe, a dimensão simultaneamente estética (no sentido etimológico: produtora de sensações/ emoções) e carnavalesca (uma paródia degradada da própria ideia de “sacrifício”) do seu empreendimento. Enquanto “transformista”, performance artist (vd. personagem de Buffalo Bill em Silence of the Lambs de Thomas Harris, 1988 [versão fílmica, homónima, de Jonathan Demme em 1991]), ele metamorfoseia-se, procura criar uma nova pele (identidade) pelos seus actos.
Com efeito, através dessa prática de “de-composição” em aberto, serial e não resolvida – a sua compulsão, motivada pela atracção e repulsa pelo vazio, é sempre a de acrescentar um termo à multiplicidade compósita e errática dos corpos que profanou -, o “serial killer” procura também chegar a uma nova síntese (há nele sempre um maneirista sedento de composições/assemblages da ordem das de Arcimboldo).
4. Henry, Portrait of a Serial Killer, de John McNaughton, é um dos filmes que primeiro trabalhou sistematicamente a figura do “serial killer” do ponto de vista da sua relação com a forma do cinema, vindo assim, na estreita linha de Psycho (Psico, 1960) de Hitchcock. O realizador, aliás, numa entrevista do DVD do filme, refere-se explicitamente a Psico, assim como, o que nos parece significativo, a filmes de William Castle como 13 Ghosts (1960) e Mr Sardonicus (1961). Nessa entrevista, McNaughton relaciona a “forma” do seu filme (independente, feito com 100 mil dólares) com a estética do cinema vérité, caracterizando-o como a conjugação da técnica do documentário (em que ele trabalhava) com a preocupação formal, aproximando a economia do seu “estilo” (découpage) da necessidade de “talhar” o argumento em função do orçamento (“to taylor the script to the budget”).
O primeiro plano do filme é o de um rosto de mulher (maquilhado): a câmara recua num zoom-out até apanhar o seu corpo nu abandonado no meio de ervas; segue-se o plano de um resto de refeição no balcão de um diner – também aqui a câmara recua, acompanhando o movimento do homem que se levanta, de costas, paga e sai, depois de trocar algumas palavras com a empregada; vemo-lo a seguir a entrar num carro. Corte para plano da empregada morta, debruçada sobre o balcão.
Tudo está já aqui: vai-se do “grande-plano” ao movimento da câmara que acompanha e envolve o elemento humano, inserindo-o num quadro (décor) global (por assim dizer, a teoria do acontecimento). O crime (acto) fica off porque ele é menos acção do que a extensão da ideia, melhor, da pulsão (do imaginário) já contida tanto no gesto da disposição das coisas (a luta de Henry é contra a facticidade e fatalidade do real: ele escolhe as vítimas à medida que as vai encontrando, casualmente, na rua ou na estrada), como no olhar que sistematicamente as tende a agredir (violar). O cinema, portanto, não vem para serenar as coisas mas para as soltar, fazer crescer e imaginar (enlouquecer) na imagem (e se a violência, é elidida das imagens, cabe ao som – a banda sonora “bruitista” e industrial de Steven Jones e Robert McNaughton – dar-nos a reverberação do imaginário nas imagens).
Mais adiante, depois de vermos Henry (o excelente Michael Rooker) a conduzir (primeiro na cidade, depois na estrada), temos de novo planos de um corpo de mulher ensanguentado a boiar num charco: não há conexão, ou causalidade, entre as cenas. Como referia ainda Roland Barthes, o “fait divers”, com a sua falta de sentido (razão), vem sempre numa suspensão da “causalidade” (artº citº) – tudo aqui é <fait divers> -, pelo que o modo como os acontecimentos se encadeiam, sempre na horizontal, é hipotáxico (ocasional, errático), assentando as associações de sentido(s) na literalidade das imagens: o peixe que Becky [Tracy Arnold] esventra, depois a sua carcaça exposta na mesa, por fim os corpos que Henry deixa pelo caminho. Mais do que “interpretar”, psicológica ou socialmente, a câmara procura adaptar-se, seguir o modo de pensar (e só depois agir) do criminoso – é o seu olho foto-eléctrico, de uma câmara de vídeo-vigilância a emitir para o interior, onde o verdadeiro cinema de horror, nesse ecrã/ fundo negro, se projecta (é aí, por exemplo, que decorre o “romance familiar” de Henry e as diferentes versões que ele dá do modo como matou a mãe que, segundo ele, o obrigava a assistir às relações que mantinha com outros homens).
Os crimes sucedem-se assim de acordo com este método, lógica – a compulsão à repetição, com a sua aparente pobreza emocional, faz parte do processo do “serial killer”: “It’s always the same and always diferente”, diz Henry ao seu cúmplice, Otto (Tom Towler). “Retrato”, a haver aqui, é o de um desses photomatons de gare que nos dão não a pessoa (com a sua textura, densidade) mas a objectividade (neutra) da máscara, do fantasma que por ela se manifesta, dá a ver e exterioriza.

Neste registo de pobreza do real, se o trabalho do sexo se iguala ao da morte (os traumas, inibições de Henry, impedem-no de qualquer relação com Becky, apesar dos avanços dela que ele rejeita), é ao “imaginário” que é atribuída a função de dar cor ao que, no aparelho de TV avariado do quotidiano, passa a cinzento. Assim, Henry e Otto roubam numa loja uma câmara de vídeo, passando-se do dispositivo de reprodução em diferido da TV para os home movies a cor do vídeo (no ecrã vemo-los a dançar ao som de “Psychotic Reaction” dos Count Five). O vídeo, claro, é depois utilizado por Henry e Otto para “gravar” (o termo é esse, registá-los mais profundamente em si, produzindo slides mnésicos entalhados no seu imaginário), e depois reproduzir (como uma forma de reenactement) os seus crimes: criar, ao fim e ao cabo, um cinema dentro do filme a que depois assistem, comprovando-se assim da sua existência.
Mas esse teatro ainda de sombras (e simulacros) do vídeo (em que se desvanece o punctum de realidade dos acontecimentos) não é suficiente pelo que acaba por se abrir ao surto selvagem da paixão (desejo): Otto tenta violar Becky, Henry aparece e os dois lutam, acabando Henry, com a ajuda de Becky, por matar Otto. Cena sangrenta que, ao contrário da generalidade do filme, é trabalhada em profundidade de campo, com Otto e Henry à frente e Becky ao fundo.
Ao carácter compacto (cheio) desta sequência e dos planos que se seguem (da carne espojada e fremente de Becky ou do corpo de Otto a ser esquartejado por Henry) contrapõe-se a flatness do final, com um longo plano frontal de Henry e Becky no carro, declarando-se mutuamente amor, a que se segue outro com Henry, já no motel, frente ao espelho: “We better go to bed”, diz a Becky que dedilha a guitarra que ele roubara antes a uma das suas vítimas. Para a cama com o sentido de para a morte? É ao que parece anuir o olhar para baixo, resignado, de Becky (o “erotismo” deste filme é um erotismo doente, mórbido, de morgue, como o sentido por Laurent, personagem de Thérèse Raquin [1867] de Zola [cap. 13]). Seguem-se planos de Henry, de manhã, já noutro motel, a fazer a barba ao espelho e depois a partir sozinho, deixando na berma da estrada a mala ensanguentada de Becky, talvez com o seu corpo dentro.
A figura de estilo por excelência do filme, percebe-se, é a elipse, não só como “laceração” (como no slasher que este filme também é) mas também como corte na continuidade da acção que designa o vazio (blackout de significação) para onde esse corte remete, confrontando o espectador com esse enigma. Como o vórtice (baço, desfocado) do olho da câmara (de vídeo ou cinema) de que tudo deriva e para onde, no fim, reflui (o ralo da banheira, sim, de Psico). Esse black hole, negativo e abissal que nos reenvia por vezes algumas imagens (“glimpses”) do seu sorvedouro.
5. Vindo do documentário (o filme-dossier) da televisão (afinal como John McNaughton), William Friedkin, como observa Jean-François Raugier (L’Oeil qui jouit), é um autor de “ruptura” (do “gesto incontrolável e inconsequente” [Yellow Now, 2012 [107]) que, ou pelo apego (quase entomológico) ao real (à sua banalidade [The French Connection (Os Incorruptíveis contra a Droga, 1971), Bug [2007]) ou pelo excesso (exarcerbação) das explosões gráficas de violência barroca (The Exorcist [O Exorcista, 1973], Rampage [O Dedo da Justiça, 1987] ou Killer Joe [2011]), chega à “abstração” e a uma concepção quase absoluta de “forma” que comunica aos seus filmes uma dimensão antropológica bárbara (Sorcerer [O Comboio do Medo, 1977], The Exorcist) e meta-física: “uma dimensão obscura, mitológica, subterrânea, que emerge iterativamente e que impõe o reino de leis arcaicas”, comenta Rauger [108].
Rampage é um dos “filmes-desastre” típicos de Friedkin (pense-se também em Sorcerer), uma produção de Dino De Laurentiis que, devido à sua falência, ficou por distribuir nos Estados Unidos (foi-o apenas em alguns países europeus, entre os quais Portugal), acabando depois por ser comprado pela Miramax que o relançou (nomeadamente na América) em 1992, com cortes (passa-se dos 97 minutos iniciais para 91) e um final diferente.
Visto hoje, toda a primeira parte, até à prisão (minuto 31), continua a ser avassaladora. Nas primeiras imagens, ainda com o genérico a correr, vai-se do mais abstracto – planos aéreos que linearizam e geometrizam os terrenos (reduzindo-os a uma esquadria linear cromática) – ao mais banal, concreto: a câmara (em zoom) aproxima-se, apanhando um homem com um blusão vermelho a caminhar num descampado e depois pelas ruas de uma pequena cidade (Stockton, Califórnia) [Na versão de 1992 desaparecem os planos aéreos e o filme começa com planos desse indivíduo a caminhar de costas numa rua, plano-sequência a que se seguem imagens (com a câmara em movimento) dele já visto de perfil e de frente: vai-se agora do distanciamento abstracto, analítico, para uma perspectiva mais próxima, directa (comum a outros filmes de Friedkin como Cruising [A Caça, 1980] ou To Live and Die in LA).
A primeira aparição de Charles (Alexander McArthur) aproxima-o do vulto deambulante de Michael Myers (Halloween [O Regresso do Mal, 1978]) mas sem precisar de máscara (bastam-lhe uns óculos escuros): o seu porte, expressão (rosto) e a sua compleição opaca, indecifrável (desajustada de qualquer interioridade), constituem a sua máscara. É esse, aliás, o problema psicológico (moral) e formal (cinematográfico) do filme. Se o cinema só pode dar a exterioridade das coisas como decidir do seu significado (interioridade)? Questão afinal bem bressoniana (pense-se no Michel de Pickpocket [O Carteirista, 1959] ou no Yvon de L’Argent [O Dinheiro, 1983]). Nas suas memórias (The Friedkin Connection), Friedkin refere-se mesmo à influência em Rampage do estilo documental, reatando, afinal, com o seu trabalho inicial na televisão: caso de The People vs Paul Crump (1962). Um estilo que obedece sobretudo ao que designa por “camera logic” e que se traduz num “automatismo formal” (noutros termos, “go straight to the story” [Harper/ Collins,2013 (78)] (daí, talvez a eliminação na 2ª versão de quase tudo o que tinha a ver com o drama do casal Fraser). Mas não só, já que há uma problemática comum a esses dois filmes (o lado languiano de Friedkin que o entrevista em 1975): neles coloca-se não só a questão da “incerteza” quanto à capacidade de revelação dos factos e das imagens (é Charles “louco” ou não?) mas também a da própria possibilidade do julgamento do humano (de que decorre a da justificação, ou não, da “pena de morte” em relação à qual se manifesta, nos dois casos, a ambivalência do realizador).
Sem aparente razão, Charles entra numa casa, bate à porta, entra, ouvem-se tiros e depois planos em que ele executa a família que aí vive (numa sequência muito semelhante, na sua descontinuidade apática, à do assassinato da família da “velha senhora” em L’Argent de Bresson). Tudo “acidentes”, como ele diz. A sequência, na sua parte mais sangrenta, é entrecortada com imagens de uma missa em que o padre (está-se no Natal) fala da “vinda do filho do Senhor” (na assistência vêem-se os Fraser, Tony [Michael Biehn] e Kate [Deborah Van Valkerburgh]) e flashes de Charles a banhar-se em sangue com a imagem de um tigre numa jaula por detrás (será Charles o Jesus [Anjo Vingador] de que se anuncia a vinda?). Duas eucarístias, transubstanciações (mutação de sangues), portanto, que não se cumprem: de facto, o problema dos Fraser (a morte da filha, de que Tony se culpabiliza) não se resolve, tal como a reincidência no crime de Charles ou o carácter insaciável da sua pulsão (ele bebe o sangue das vítimas para se regenerar). É nesse ponto de falha que, pensamos, se insere o cinema de Friedkin. Mais adiante, já na segunda parte do filme, durante o julgamento, Charles consegue fugir da carrinha prisional e volta à igreja onde, apenas parcialmente coberto pelo macacão vermelho da prisão – que o faz parecer iconograficamente com o Jesus das pinturas da “paixão” -, exige que o padre lhe dê a beber o vinho da eucaristia (“Where’s the blood?”, grita). Como o cálice está vazio serve-se do sangue do eclesiástico. Quando o prendem, ele encontra-se deitado, ébrio como Baco, com as paredes manchadas de sangue por detrás. Roy Menarini chama a atenção para a importância da questão do rito no filme (como em O Exorcista ou The Guardian [O Anjo das Sombras, 1990]), contrapondo Friedkin o rito “sagrado” da igreja (a missa) e o “profano” dos crimes de Charles (ou da sua associação com a imagística nazi) (William Friedkin, Le Castore Cinema, 2002 [83]).

Os crimes seguem a mesma metodologia: do mais banal – no segundo, depois de se ver uma famíla a enterrar um cão (nova profanação?), passa-se para planos da mãe e de um dos filhos na cozinha, dando-se a irrupção da violência enquanto ela lava a louça: Charles entra na casa, abate a mulher com um tiro (ao vê-lo apontar a arma à mãe, a criança diz: GUN -é essa a função indicial do cinema) [Na versão de 1992, depois da sequência de abertura, Charles entra numa loja de surplus com máscaras e outros artefactos pop ou militares: compra aí uma pistola que experimenta. O empregado pergunta-lhe se alguma vez esteve preso ou foi internado ao que ele responde sempre que não].

Como se a violência (loucura) estivesse embrenhada na própria banalidade (também ela violenta) do real: se o crime, “acto de loucura”, pode ser explicado pelo determinismo neurológico (da “chemistry of the brain”, como será dito adiante), também a sociedade obedece aos desregulamentos/disfuncionamentos dos seus determinismos. Deste modo, o outro lado do “funcionalismo” do comportamento de Charles, ou do estilo documental do filme (nisso próximo de Henry de James McNaughton), encontramo-lo no bric à brac do teatro de horror do inconsciente (da história/romance familiar) de Charles (nas suas relações com o pai autoritário e abusador da mãe e com uma mãe severa e também ela opaca, Naomi [Grace Zabriskie, depois actriz habitual do universo de Lynch, da série Twin Peaks (1990/91) a Wild at Heart (Um Coração Selvagem, 1990) e Inland Empire (2006)]) ou ainda no recheio da arrecadação em que Charles guarda a sua parafernália fetichista (bandeiras nazis, caveiras e partes de corpo a apodrecer, fotos porno-gore, etc). La folle de la raison, ou da maison, é essa dimensão imaginária, entregue ao seu próprio automatismo que é também o dos mecanismos do dispositivo do cinema (o Tobe Hooper [The Texas Chain Saw Massacre, 1974] em Friedkin). Como Kiyoshi Kurosawa afirma, a propósito de Tobe Hooper (em particular de The Funhouse [Acidente no Luna Parque, 1981]), no seu cinema (e podemos aplicá-lo a Friedkin) trata-se de “pôr em cena o mecanismo implacável que conduz à morte”, uma “mecânica fatal” que se manifesta no filme simultaneamente como “motivo” [tema] e “movimento” [pulsão] do récit (Mon effroyable histoire du cinéma, Rouge Profond, 2008 [137]). Com efeito, o que desarranja os mecanismos é a “falta” de qualquer coisa, de uma peça: a do “objecto do desejo” (infantil) em Charles ou a da filha dos Fraser (na versão de 92 vêem-se mesmo planos, talvez imaginados por Tony, de Charles frente a um carrossel a olhar para a criança e depois os braços dele a pegar-lhe).
A sequência do TAC ao cérebro de Charles é, assim, fundamental: “We are gonna look into your brain”, diz-lhe o médico. Não só pela abordagem determinista (neurológica) que ela comporta mas também pelo novo tipo de imagens que introduz no filme: contrapondo-se aos planos aéreos que nos davam uma visão plana (2D) da geografia do terreno, próxima das fotos de Land Art, as imagens do TAC, diagramas quase expressionistas que se destacam de um fundo negro, tanto possuem uma dimensão 3D (hologramática, por oposição aos planos do início) como sugerem uma “profundidade” da imagem (do cérebro?, inconsciente?) em que tudo se funda. De facto, mergulha-se nelas, entra-se no cérebro, como é dito pelo operador, no seu abismo. Face a elas, tanto discursos (de reelaboração) psiquiátricos como depois os judiciais, no tribunal, revelam-se tíbios: as próprias imagens de cinema, a sua narrativa (“récit”), ficam aquém da insondabilidade mecânica da câmara (talvez em sintonia com a estação de rádio, Devil’s Station, de onde Charles diz ouvir mensagens e apelos para que mate [O Exorcista de novo?]).
Já depois da primeira sentença do júri, que o condena à morte, há uma segunda análise ao cérebro a que Charles é sujeito: se o primeiro teste detectara “no structural brain desease”, este, agora, revela lesões e portanto uma compulsão orgânica (química) à violência. As imagens do novo TAC são contudo diferentes: não assentam no preto-e-branco binário e contrastado da primeira sessão mas exibem diferentes formações, figuras, a cores. “What we see is a picture of madness”, afirma o médico. É neste teste que surgem flashes da infância de Charles em que a mãe, sempre vista por detrás de uma espécie de cortina, o impede de contactar o pai (que ele idolatra).
Como referimos, Rampage é não um mas dois filmes, à sua maneira também ele um filme schizo, splitado: uma primeira parte noir-gore (os 30 minutos antes de Charles ser preso) e uma segunda parte de filme de tribunal (na linha de um cinema também presente em Rules of Engagement [Compromisso de Honra, 2000] e a que Friedkin regressa na sua última obra, The Caine Mutiny Court Martial [2023],versão para a TV do filme homónimo de Edward Dmytryk, The Caine Mutiny [Os Revoltados do Caine, 1954] que Robert Altman também adaptou [1988]). Aqui discute-se a inimputabilidade de Charles, ou seja, se se pode aplicar-lhe a pena de morte (a posição do procurador, que antes se lhe opusera) ou se ele deve ser internado num hospital psiquiátrico ( a questão da “escolha”, aliás, é central em Tony que já antes tivera de decidir desligar a máquina que mantinha a filha em vida). Na versão de 1987 Charles é condenado e suicida-se na cela com comprimidos que talvez lhe tenham sido dados pela mãe que antes o visitara.

Cinco anos depois, contudo, Friedkin realiza um outro final para o filme: no início da nova sequência vê-se Tony a arrumar os papéis no seu escritório, deserto, enquanto uma voz-off (de um elemento do júri) afirma que, devido a novos dados (o resultado da segunda análise), Charles deve ser internado numa instituição psiquiátrica. Se a primeira versão acabava com planos dos Tibbets (pai e filho) a passearem à noite por uma feira (sequência luminosa que comunicava alguma paz ao filme), agora, embora se mantenham esses planos, eles dão lugar a outros, de Charles na cela, com o macacão vermelho, a escrever ao pai Tibbet, justificando-se e pedindo-lhe que o visite (a câmara aproxima-se do seu rosto, visto por detrás de barras). Então entra um cartão com a seguinte inscrição: “Charles Reese has served 4 years in a state mental facility. He has had one hearing to determinate his elegibility to release. His new hearing is due in 6 months”. Confirmar-se-iam assim os receios dos que temiam a sua libertação e possível reincidência.
No entanto, para lá da “ambivalência” da questão moral (e da discussão sobre a “amoralidade” ou “niilismo” do autor [Menarini (11, 45), Rauger (104/7/8)]), tem-se aqui também uma questão de cinema: na alegação final de Tony Fraser no julgamento, tendo a noção de que as palavras (e as imagens) não chegam, ele decide fazer o júri passar em silêncio o tempo (3 minutos) que uma das vítimas levara a morrer. De facto, 2 minutos preenchidos com rostos de elementos do júri, de Charles, da mãe e flashes dos crimes. E voltamos a Kurosawa (no seu livro de entrevistas com Makoto Shinozaki): aí ele dizia que “a passagem da vida à morte levava certo tempo” para depois afirmar que, em certos casos (cita Vampyr de Dreyer [1932] e Il Mulino delle donne di pietra [O Moínho dos suplícios, 1960] de Giorgio Ferroni), o filme “aparenta-se na globalidade a uma transição, uma imagem da longa passagem da vida à morte” (op.cit.[148]).
É essa, talvez, a verdade última, terminal, que estes filmes – o de Friedkin mas de um modo geral os de serial killers – , por assim dizer, testam e constatam. Algo que está antes das imagens mas as funda, o centro imóvel (mecânico e inumano) da máquina (da lente, o seu “olho”, mas também do pensamento por detrás dela) que o movimento das imagens constantemente circunda, aborda e aprofunda.
