– Encontrei-te por acaso. Por acaso!
– O que é isso do acaso?
Imagine-se uma típica cena de sedução num policial dos anos dourados de Hollywood, na carruagem-restaurante de um comboio, a femme fatale que fuma, o homem que investiga um mistério (o mistério da própria mulher), que a aborda, pede um whisky, fala sobre truques de desaparição súbita. E agora imagine-se que esta cena tem lugar a bordo de um comboio da CP, algures entre o Entroncamento e Caxarias. Assim se faz O Lugar de Morto (1984), de António-Pedro Vasconcelos, entre o puro cânone do cinema clássico e uma vidinha bem portuguesa.
Tudo começa, não propriamente nesta carruagem, mas numa passagem de nível, com o carro de Álvaro (Pedro Oliveira), depois de mais uma noite mal dormida, aguardando, pacientemente (o tempo dos créditos iniciais), a passagem de um comboio, no crepúsculo matutino. Seguidamente, vemos a marginal, um Citroën DS parado em frente ao mar – e, com excepção de um comboio, o que poderia ser mais clássico do que um Citroën DS? – um casal em plena discussão, uma mulher que se afasta e que, numa fuga impulsiva, pede boleia a um estranho. Tudo muito clássico e muito cool.

E na década de oitenta, em Portugal, ninguém foi mais cool do que o par Ana Zanatti – Pedro Oliveira, precisamente porque conseguiram emprestar uma patine elegante (ou, para usar um termo fora de moda, “chique”), a personagens que não deixavam de ser bem portuguesas, até naquelas malditas tosses do São Carlos. É a narração desencantada de Saraiva (André Gomes), o crítico de ópera, quando recorda um acontecimento irrepetível da vida cultural portuguesa, a noite de 27 de Março de 1958, em que Maria Callas subiu ao palco do São Carlos para cantar a Tosca. Passadas mais de duas décadas, o que resta é um ambiente pobrezinho, em que o público tosse, os intérpretes tossem, até o ponto tosse! Um espaço onde se respira o cheiro decadente próprio de tentativas goradas de provar o gosto do verdadeiro ambiente cosmopolita, próprio de uma grande capital europeia.
Enleado na vida solitária da cidade, uma cidade de mulheres (até o seu Alfa Romeo tem nome de mulher), a existência de Álvaro resume-se a um ciclo de busca infrutífera.
Álvaro Serpa revela uma inclinação irresistível por mulheres sofisticadas e cosmopolitas, mulheres que se penteiam na Isabel Queirós do Vale, que usam perfume, que frequentam o São Carlos, que bebem conhaque Rémy Martin. Mas ele também tem o seu lado caseirinho, de pregos com mostarda Savora comidos à pressa no balcão do café, da mãe que insiste que ele leve para Lisboa umas taças de marmelada. Estes efeitos de familiaridade abundam em O Lugar de Morto, seja na conversa do inspector da Polícia Judiciária, da recepcionista do jornal ou da empregada da perfumaria – “Vai buscar o Magie Noire, à confiança!”. Para que nunca nos esqueçamos de que estamos, afinal, em Portugal.
Marta (Teresa Madruga) representa a tentativa de Álvaro de se envolver com uma mulher que se alinhe com aquele lado mais “caseiro” da sua vida – uma mãe que cria sozinha uma filha pequena, é empregada numa loja e nunca usou perfume. Em suma, uma “loba solitária” feita à medida para o lobo solitário Álvaro. Apesar do amor genuíno de Marta, Álvaro revela-se constantemente pouco comprometido com a relação, deixando-se seduzir e manipular por Ana Mónica (Ana Zanatti). Ele acaba por sucumbir novamente ao mundo das mulheres sofisticadas, recaindo numa trajectória que, por duas vezes, já lhe trouxe desilusões – dois casamentos, dois divórcios e dois filhos negligenciados. Nessa sua atitude displicente, a atenção de Álvaro para com Marta vai gradualmente diminuindo, acabando ele por cometer uma traição imperdoável: oferece a Marta o perfume que o enfeitiçou no corpo de outra mulher, o várias vezes referido Magie Noire.

A investigação que Álvaro leva a cabo não tem tanto de relevante em termos de interesse jornalístico, sendo mais um jogo de sedução. Descobrir o que verdadeiramente motivou a morte de Álvaro Allen (o duplo de Álvaro Serpa, até mesmo no nome – dois Álvaros, dois lacaios de Ana, dois mortos) não passa de um simples MacGuffin, sendo exclusivamente um pretexto para o desfecho da investigação do enigma “Ana Mónica”. O verdadeiro momento de investigação ocorre na perfumaria onde, após uma série de zelosas inalações, se chega à resposta “Magie Noire”, depois de descartadas as hipóteses Calèche, da Hermès, e Silences, de Jacomo.
As referências a perfumes em O Lugar do Morto surgem das fontes mais inesperadas, a começar pelo inspector Moreira (Carlos Coelho), que, com perspicácia, intui a existência de uma terceira pessoa, apenas pela fragrância presente nos carros de cada um dos Álvaros. Mais adiante acabará, porém, por se deixar enganar, precisamente induzido em erro pelo perfume que Marta começou a usar, contra aquilo que era seu hábito (e que é, afinal, o perfume da mulher-chave à qual o inspector nunca chega).

E porquê esta omnipresença de eflúvios percorrendo todo o filme? Na cena em que Álvaro oferece a Marta o frasco de Magie Noire, ele acaba por definir de forma perfeita o que é um perfume e possivelmente o seu papel no filme:
– Nunca usei perfume.
– Passas a usar.
– Achas que me faz falta?
– Não, acho que te vai bem. Nem só o que faz falta é importante.
Trata-se de uma fusão entre futilidade e essencialidade, um equilíbrio que confere aos perfumes a capacidade de se aproximarem dos traços mais íntimos da personalidade de quem os usa. Mas no caso de Marta, esta associação revela-se simplesmente um erro de casting. Marta poderia, por exemplo, ter escolhido o Chanel n.º 19, mencionado por Álvaro na sua conversa com Ana, um perfume de carácter inocente, delicado e romântico, mas jamais poderia ser associada a Magie Noire. Este último, lançado pela Lancôme em 1978, surgiu como uma resposta à intensidade opulenta e inebriante de Opium, o perfume lançado por Yves Saint Laurent no ano anterior com estrondoso sucesso, e que com ele partilha essa opulência.
Magie Noire usa gargantilha de diamantes, casaco de zibelina e batom carmim. Não corresponde, de modo algum, à imagem terna e tímida de Marta.

Álvaro vive mergulhado numa rotina incessante, preso entre o encanto cosmopolita e o amargo provinciano. Corre, ora atrás de Mafalda (Manuela de Freitas), a mãe do seu primeiro filho, ora em direcção a Luísa (Lídia Franco), da qual tenta divorciar-se, e pelo meio vai recolhendo recados junto de Dulce, a recepcionista do Diário Popular (sendo a presença de relógios, nos diferentes espaços, sempre constante). Segue, como que guiado por um misto de faro jornalístico e jogo de enamoramento, as migalhas deixadas por Ana Mónica, que o conduzem na busca por algo que lhe escapa constantemente, com a (falta de) determinação de um herói antonioniano, numa perseguição ansiosa de um objectivo que lhe é inalcançável, pelo seu carácter insondável.
Enleado na vida solitária da cidade, uma cidade de mulheres (até o seu Alfa Romeo tem nome de mulher), a existência de Álvaro resume-se a um ciclo de busca infrutífera. Tudo isto é encapsulado na citação do Prof. Bulwer, retirada do Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (Nosferatu, 1922) de F. W. Murnau, que abre o filme: “Não é por correr que se escapa ao destino.”

Essa inevitabilidade confere ao filme uma lentidão ilusória, erguendo-se como um contraste ao frenético ritmo da cidade. A incessante ânsia de Álvaro em tentar dar resposta a todas as solicitações faz com que se distancie de tudo, desde as necessidades dos filhos até ao amor de Marta, que se vê obrigada a enfrentar sozinha um aborto – uma cena breve, mas profundamente triste, que marca de forma irremediável o fim da relação.
A vida de Álvaro é feita de uma confusão de mulheres e dos espaços que a elas correspondem. A mulher da alta sociedade, sempre fugidia, a rapariguinha do shopping que trabalha na loja da Cenoura, a mulher independente de espírito romântico, pronta para, num ápice, embarcar para o Cairo, a mulher com a verve afinada, que distribui recados telefónicos e conselhos de vida, a mãe que vive longe e que tenta ainda manter o elo com a infância do filho.

Álvaro vive acomodado na imperfeição agitada da sua vida, entalado entre uma verdadeira sofisticação e uma vivência comezinha – “O que é que tu queres? Gosto de camisas mal passadas, pregos mal passados, noites mal passadas”. O que o faz vibrar verdadeiramente (mas que também o deixa em irritação crescente) é a perseguição a Ana Mónica, a atracção por ela é uma forma de contrariar a rotina, o tédio, a insónia. É aí que está todo o seu empenho. O seu discurso sobre perfumes na carruagem do comboio em direcção ao Porto pode soar a ensaiado, mas não deixa de ser um golpe de virtuosismo:
– Magie Noire não é provavelmente o perfume mais indicado para quem tem o hábito de desaparecer bruscamente. Para criar uma atmosfera macabra, o mais adequado é provavelmente o Opium de Yves Saint Laurent, que sugere as pétalas da papoila em decomposição. No domínio da desaparição súbita, creio que ainda não se inventou nada como Chanel 19, perfume tão delicado, que perde a cor e o cheiro, quando as condições de conservação não são escrupulosamente respeitadas.
– É vendedor de perfumes?
– Da última vez que nos vimos, era chauffeur particular. Lembra-se?
Ao que cabe acrescentar: alvíssaras a quem for capaz de revelar o que iria na cabeça de Carlos Saboga quando escreveu este diálogo.
No final, não sabemos se Álvaro está a fugir do destino ou a correr para ele, mas o resultado é o mesmo. O carro desfaz-se no penhasco, sem salvação e sem perfume, obra do acaso. Como referia o inspector da PJ, “o acaso é o deus dos polícias.” Mas não dos jornalistas.

O inspector identifica nesse desfecho algo que cheira a investigação não encerrada, pedindo ao colega que tente, “com habilidade, no meio da conversa”, descobrir qual o perfume que Luísa usa. Mais uma pista falsa, ironicamente falsa, já que a mulher sem nome (apesar de ter um nome, “Ana Mónica”, é uma verdadeira mulher sem nome, misteriosa e ambígua) está mesmo ali ao lado, fitando incredulamente o carro despenhado.