I’m wild again!
Beguiled again!
A simpering, whimpering child again!
Bewitched, bothered and bewildered am I.
O trecho acima transcrito pertence ao tema “Bewitched, Bothered and Bewildered”, composto por Richard Rodgers e Lorenz Hart para o musical Pal Joey. Ao longo das décadas, muitas foram as vozes que o cantaram (notavelmente Ella Fitzgerald) e muitas foram as suas versões. A letra dá voz a uma mulher madura e abastada que se vê enfeitiçada por um jovem oportunista. Não se trata, no entanto, de uma ilusão ingénua quanto ao carácter do homem mais novo, mas antes da aceitação consciente de um envenenamento emocional – a rendição ao prazer intoxicante que advém da própria vulnerabilidade.
A mulher da canção não se engana sobre o que vive; antes reconhece, quase com melancolia, que há um certo deleite em permanecer nesse estado de encantamento e confusão – um torpor que é, ao mesmo tempo, sofrimento e êxtase. Esta dinâmica, de uma mulher madura enredada num amor desequilibrado, é central na narrativa de um dos dois únicos romances escritos por Tennessee Williams, The Roman Spring of Mrs. Stone. O tema, aliás, seria mais tarde revisitado por Williams em Sweet Bird of Youth, embora aí a inversão de papéis transfira o foco da relação para o lado masculino, mantendo, contudo, a tensão geracional e a assimetria emocional que tanto fascinavam o autor.

Em The Roman Spring of Mrs. Stone (A primavera em Roma de Mrs. Stone, 1961), de José Quintero, deixamos para trás Chicago, o cenário de Pal Joey, e rumamos a Roma – essa Itália cinematográfica que, nas décadas de 1950 e 60, serviu de cenário a tantas histórias de paixão. Algumas May-December, outras May-May, outras ainda December-December. E até uma memorável September-September, com o cativante par formado por Joan Fontaine e Joseph Cotten em September Affair (Paraíso Proibido, 1950).
O filme torna-se assim um espaço onde a beleza – mesmo em decadência – se confronta com o seu próprio ocaso, e onde o amor, longe de redimir, apenas ilumina o vazio que o precede.
No filme realizado por José Quintero, o lado “December” da equação é Vivien Leigh – o que, visto à luz de hoje, tem algo de cruel, já que implica que uma mulher a aproximar-se dos cinquenta anos se insere na categoria de “mais velha”. Mais velha do que o quê, afinal? Talvez apenas mais velha do que o homem a seu lado – o que, no jogo de forças desta narrativa, basta para a etiquetar. De forma mais delicada, poderíamos chamá-la de “mulher madura”, mas mesmo esse termo carrega em si o peso da comparação e da limitação, mais do que de algum tipo de sabedoria dignificante.
Dizer que Karen Stone (Vivien Leigh) é uma mulher madura será contar a história pela metade. Ainda que seja verdade que ela é uma actriz conceituada, que decide pôr um termo à sua carreira, ficando viúva justamente quando decidira mudar-se para Roma, também é verdade que Karen parte para essa nova vida como uma criança, como se ninguém a tivesse instruído sobre a forma de viver essa nova fase da sua vida. Na narração inicial fala-se de uma “vida póstuma” que Karen experienciará em Roma, uma Miss Havisham resguardada no seu majestoso apartamento, fugindo ao convívio, algo perdida, abraçando rotinas como portos seguros. Mas ela será também criança no modo como descobre coisas novas, novos sentimentos, aprendendo verdadeiramente o que é a paixão e o desejo pela primeira vez, alheia ao que se passa em reu redor quando extasiada com o seu “brinquedo novo”.
Aquilo que existe de magnífico em The Roman Spring of Mrs. Stone é, paradoxalmente, aquilo que mais escapa à linguagem analítica. É uma qualidade quase indizível, difícil de fixar num texto que, por natureza, se vê obrigado a deter-se nos traços impressivos da obra. O filme move-se num território ambíguo, onde puerilidade e morte se entrelaçam, e onde a redescoberta da vida surge como uma antecâmara do fim. Karen Stone empreende, sem o saber, uma viagem interior: descobre-se a si própria, mas sem saber exactamente o que fazer com essa revelação – como se a lucidez chegasse tarde demais, ou viesse desprovida de utilidade prática.
A morte atravessa o filme como uma presença silenciosa, mas constante. Está encarnada na figura espectral de um jovem que deambula pelas ruas de Roma, seguindo Karen como uma sombra, um espelho da sua própria deriva (“drifting”, tal como ela). Mas a morte está também nos gestos e nas palavras do quotidiano, insinua-se nas conversas e nos silêncios. É impossível não recordar, aqui, a vendedora de A Streetcar Named Desire, que grita “Flores para los muertos” enquanto atravessa a cena, como uma nota fúnebre que ecoa discretamente no fundo da consciência.
Tal como nessa peça, também aqui a morte não é apenas o fim biológico, mas uma metáfora persistente para o fim do desejo, da juventude, da ilusão. O filme torna-se assim um espaço onde a beleza – mesmo em decadência – se confronta com o seu próprio ocaso, e onde o amor, longe de redimir, apenas ilumina o vazio que o precede.
Karen é apresentada como uma mulher mimada e altiva, com a arrogância própria dos ricos (em substituição de uma arrogância própria dos muito belos, algo que ela bem conheceu). O seu lado mais distante é, todavia, suavizado por uma certa melancolia que resulta da memória do marido que morreu, alguém que ela se habituou a ter ao seu lado, alguém que ela amava mais do que imaginava. Daí o seu ar sempre um pouco perdido, porque deixou de ter junto de si essa figura também paternal – alguém que sempre a amparava, alguém que a mimava.
Ela vê-se, então, colocada perante o dilema da nova fase da sua vida, que sempre redundará em humilhação. A humilhação de viver a tal vida póstuma, retirada dos palcos, sem a companhia do marido, fechada num apartamento numa cidade que vibra dia e noite, uma tez pálida resguardada do sol de Roma, evitando o contacto social. Ou a humilhação de aceder aos préstimos da Condessa (Lotte Lenya), como fazem tantas outras americanas ricas, e cair nos braços de um gigolô.

Karen Stone procura, acima de tudo, conservar a sua aura de “great lady” (mesmo quando a Condessa ironiza que “great ladies do not occur in a nation less than 200 years old”). Inicialmente, manter esse papel traduz-se numa atitude de indiferença perante os avanços do jovem Paolo di Leo (Warren Beaty). Mas essa fachada cedo se desfaz: Karen apaixona-se perdidamente, e já só lhe resta tentar salvar alguma réstia de dignidade.
E aqui ressoa a ironia de tom amargo-cómico bem típica de Lorenz Hart: “When he talks, he is seeking / Words to get off his chest / Horizontally speaking, / He’s at his very best”. O amor de Karen é consciente e, por isso mesmo, trágico. Ela sabe ao que se entrega, e ainda assim entrega-se, agarrando-se a esse entusiasmo tardio como última hipótese de vida, mesmo sentindo já um prenúncio de morte.
E chegará, inevitavelmente, o momento em que nem mesmo isso – preservar uma réstia de amor-próprio – será possível. Karen deixa-se levar pela paixão, entrega-se por completo a esse novo entusiasmo, a essa última hipótese de vida. Mas fá-lo já com o pressentimento do fim – um avant-goût de morte que se insinua por entre os gestos de desejo e abandono, como se a própria entrega contivesse, em si, a semente da sua dissolução.
A relação entre Karen e Paolo não se limita ao domínio das suas vidas individuais, nem tão-pouco à diferença de idades que os separa. Há nela uma dimensão mais vasta, mais profunda, que transcende os dois – o peso da História, a presença silenciosa da cidade onde se encontram. Roma impõe-se não apenas como cenário, mas como personagem: uma cidade com três mil anos de memória, de ruínas e de glória, em contraponto com a novidade inquieta de uma mulher oriunda de um país demasiado recente para produzir “great ladies”.
Este confronto simbólico – entre o antigo e o novo, entre a decadência majestosa e a vitalidade ainda imatura – é parte essencial da tensão que atravessa o filme. Mas há mais: subsiste, latente, o embate entre um país vencedor e outro vencido. A guerra é um passado demasiado recente para não ser sentida, mesmo quando não é dita. Está presente no modo como estas mulheres americanas, ricas e solitárias, chegam a Roma para “adquirir” amantes mais jovens, como se ainda se movessem numa lógica de ocupação e posse. Está presente, também, na forma como Paolo se posiciona no mundo, um mundo em que títulos aristocráticos perderam todo o seu valor – sempre entre a sedução e o ressentimento, entre o desejo e a vingança.
Paolo não é apenas um jovem bonito que vive da beleza. Ele é, em muitos sentidos, a encarnação de uma ferida histórica – uma juventude italiana do pós-guerra que aprendeu a sobreviver com as armas do corpo e da astúcia, e que se move num tabuleiro onde cada conquista é também uma desforra.

“…when the time comes when nobody desires me for myself… I’d rather not be desired at all.”
Como é evidente, qualquer análise que se faça de The Roman Spring of Mrs. Stone terá necessariamente de passar pela figura de Vivien Leigh, não apenas pelo que representa neste filme, mas também pelo que transporta do papel anterior que interpretou em The Deep Blue Sea (Profundo Como o Mar, 1955), realizado por Anatole Litvak. Nesta fase da sua carreira, a presença de Leigh no cinema tornava-se cada vez mais rara, à medida que o seu estado de saúde se deteriorava e a sua vida pessoal se tornava mais frágil.
Em The Deep Blue Sea, Leigh encarna com uma dignidade inabalável – a mesma que reencontramos em Karen Stone – uma mulher que, vinda das altas esferas da sociedade, desce até uma casa de hóspedes sórdida, onde fica sujeita aos mais vis mexericos. Essa descida não é apenas social, mas também interior: um movimento em direcção ao abismo emocional, motivado pela necessidade de honrar uma paixão inesperada, vivida já numa fase mais tardia da vida. O objecto desse amor é, mais uma vez, um homem mais jovem, um piloto que, embora envolvido com ela, demonstra pouco afecto genuíno e ainda menos reconhecimento pelo sacrifício que lhe é oferecido.
É nesta repetição – não tanto temática como emocional – que se desenha um retrato comovente da própria Vivien Leigh: uma actriz que, nas margens do seu esplendor cinematográfico, ainda encontrava forma de expressar com uma verdade pungente a vulnerabilidade feminina, o amor não correspondido, o desejo que insiste para além da razão. Entre estas duas personagens – Hester Collyer e Karen Stone – delineia-se um arco quase autobiográfico, em que a actriz se confunde com os seus papéis, devolvendo-nos uma imagem de beleza em declínio, mas nunca sem grandeza.
Esta é a aura trágica que Leigh traz consigo para o filme – um magnetismo discreto que lhe confere uma beleza ferida, quase irreal, feita de vida e morte entrelaçadas num processo de descoberta. Talvez por isso a versão de 2003, apesar da presença de Helen Mirren no mesmo papel, não consiga recriar esse sentimento singular, essa perturbação silenciosa que atravessa o original. Curiosamente, há uma estranha e inesperada semelhança física que aproxima as duas actrizes. Desconhecemos se esta é uma coincidência fortuita ou uma tentativa deliberada de evocar a versão inicial – para lá do pormenor, algo pitoresco, do jarro de Negroni que ambas preparam de forma idêntica.

A Karen Stone de Vivien Leigh reconhece – e rende-se – ao poder da beleza, precisamente porque ela própria experimentou, outrora, o fascínio que a sua beleza exercia sobre aqueles que a rodeavam. É por isso que aceita, com uma serenidade quase fatalista, o domínio que Paolo tem sobre ela. Mais do que ter amado alguém, Karen amou o poder que emanava do facto de ser amada – o reflexo do desejo alheio como espelho do seu próprio valor.
É a circunstância de ter ficado viúva que a leva a confrontar-se com questões que, de outro modo, nunca se teria colocado. E é através dessa perda que se vê, quase contra vontade, “coagida” a descobrir o que é amar verdadeiramente. Trata-se de uma descoberta dolorosa, pois Karen não possui as ferramentas emocionais nem a clareza racional para compreender o que vive, o que sente, o que a move.
Por isso a vemos a sorrir de forma traquina, quando mente, dizendo que tem uma doença terminal, apenas para evitar visitas em casa (mais uma vez, a morte a ser verbalizada). Karen não entende bem o que a leva a mentir, nem o prazer absurdo que retira dessa mentira. Como uma criança que comete uma travessura, ela parece surpreendida por si própria – confusa perante a súbita liberdade, ou talvez vertigem, de estar a sentir algo que nunca soube nomear.
Apesar de toda a neblina mental, da confusão de sentimentos que a envolve, há um momento em que a resolução de Karen se revela com uma clareza quase brutal. É o instante em que ela aceita, com uma lucidez inesperada, sucumbir a Paolo — aceitá-lo não apenas como presença, mas como necessidade. Ela compreende, enfim, que ele se tornou inevitável, como se o desejo fosse agora uma forma de destino.
Deixa-o no terraço, recolhe-se ao quarto, veste o négligé e deita-se na cama com a solenidade de quem se entrega – não apenas ao outro, mas à própria finitude. Como quem se deita para morrer. E é precisamente aí, nesse abandono pleno, que Paolo reaparece, diante dela, como uma figura de morte – ou talvez de renascimento. Este paradoxo é o coração do filme: Paolo, encarnando a morte, surge no exacto momento em que Karen se entrega à vida.
O gesto final, o de atirar a chave da porta, embrulhada num lenço de linho delicado, é um convite silencioso, mas que tudo diz, um gesto rendido e fatal. É a entrega absoluta: um convite para a morte quando o amor deixa de ser possível.