Entre 28 de maio e 1 de junho, acontece a edição de 2025 dos Encontros de Cinema do Fundão, uma programação a cargo do Cineclube da Gardunha. Desde 2010, então na Guarda e posteriormente no Fundão, os Encontros promovem anualmente a intersecção entre as várias sessões de cinema com conversas, numa aproximação entre os criadores e os públicos, mediada por críticos e investigadores. Não se trata de um festival, refere o programador José Oliveira (juntamente com Marta Ramos e Mário Fernandes), obrigado a estreias, concursos e prémios, o que evita a pressão da distribuição comercial. Procura-se uma certa informalidade, numa cidade que não é um grande centro urbano, em que o público e os vários intervenientes têm a possibilidade de dialogar enquanto degustam doçaria numa pastelaria, saboreiam a gastronomia local num restaurante ou tomam uma bebida à noite num bar, tendo como pano de fundo a paisagem natural da Cova da Beira, uma encruzilhada de ribeiras, praias fluviais e serras compostas de xisto e granito.

Entre as linhas programáticas das várias edições dos Encontros de Cinema, destaca-se a recuperação de singularidades do cinema português, que, por diferentes razões, se tornaram inéditas, indisponíveis comercialmente, esquecidas ou que não mereceram a devida atenção aquando da sua produção. Em muitos casos, trata-se de filmes de cineastas que realizaram uma única longa-metragem, como O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra, exibida nos Encontros de 2011, muito antes do seu lançamento comercial tardio em 2021, Nuvem (1991) de Ana Luísa Guimarães, quase impossível de ver sem recorrer ao ANIM – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, ou Atlântida – Do Outro Lado do Espelho (1986) de Daniel Del Negro, mais conhecido pelo seu trabalho no campo da direção de fotografia. Nesta edição, é exibida A Força do Atrito (1993) de Pedro M. Ruivo, obra com um cenário apocalíptico produzido por um acidente nuclear, com traços de ficção-científica e série B, algo que, por si só, a pode particularizar dentro da produção portuguesa, mais dada à autorreflexividade sobre Portugal e a sua cultura do que a aproximações claras ao cinema de género. A fotografia de A Força do Atrito é da responsabilidade de Daniel Del Negro, convidado na edição de 2024 para apresentar o seu filme, algo que demonstra a rede de cumplicidades, assinalada por José Oliveira, que se vai construindo ao longo das diversas edições.
Porém, a nosso ver, o grande destaque da edição de 2025 e um acontecimento único no panorama cinematográfico em Portugal é a mostra dedicada ao cineasta italiano Enzo G. Castellari, um dos principais autores da produção europeia no campo da exploitation e do cinema de género, que estará presente nos Encontros para apresentações e conversas em torno dos filmes. Em paralelo, acontece um concerto em que músicos e bandas dirigem leituras de bandas sonoras retiradas da sua obra. Não é comum a oportunidade de, em Portugal, conviver com um autor que é uma lenda viva do cinema. Curiosamente, em 2005, no contexto do Imago – Festival Internacional de Cinema e Vídeo, também no Fundão, esteve presente Jess Franco, outra celebridade da época dourada da exploitation europeia, que trabalhou abundantemente em Portugal entre as décadas de 1960 e de 1980. Com a sua musa, Lina Romay, anos antes do falecimento de ambos, Franco acompanhou uma pequena mostra dos seus filmes e conduziu uma masterclass. Apesar das diferenças estilísticas, os dois cineastas faziam parte de redes de produção semelhantes, muitas vezes em regime de coprodução entre vários países e que, com grande sucesso, produziam filmes com universos particulares dirigidos ao mercado internacional, traduzindo singularidades locais para o mercado global.

Os filmes de Enzo G. Castellari programados para a mostra são marcos da sua obra, realizados num período profícuo, entre as décadas de 1970 e 1980: o western spaghetti Keoma (1976), o polizieschi Il grande racket (The Big Racket, 1976), o filme de guerra Quel maledetto treno blindato (The Inglorious Bastards, 1978) e a ficção-científica Fuga dal Bronx (Escape from the Bronx, 1983). José Oliveira recorda que se aproximou da obra de Castellari quando Quentin Tarantino se inspirou em Quel maledetto treno blindato para desenvolver Inglourious Basterds (Sacanas sem Lei, 2009), que foi a oportunidade para um conjunto de críticos e investigadores, portugueses e brasileiros, esmiuçarem os vídeos e os comentários do realizador americano sobre a maestria do seu ídolo italiano. Foi também o momento para irem ao baú e recuperarem, estudarem e refletirem sobre muitos outros filmes de Castellari. Em tempos recentes, quando os programadores dos Encontros perceberam que Castellari ainda estava vivo e a viver em Roma, entenderam que era o momento certo para o trazerem à Cova da Beira, paisagem que lembra os filmes western spaghetti do realizador. Na Beira Baixa, devido às evoluções tecnológicas e aos movimentos migratórios, não é difícil encontrar paisagens despovoadas, com minas e outras construções abandonadas que apresentam traços de desgaste, poeira e ferrugem, acumulados ao longo do tempo.
Keoma, provavelmente o mais amado dos filmes de Castellari, foi rodado quando o interesse no western spaghetti se esvaziava – uma janela entreaberta no primeiro plano invoca a possibilidade de um último suspiro. A personagem principal e que dá o nome ao título do filme, um pistoleiro interpretado por Franco Nero, regressa à cidade onde cresceu, dominada por uma doença, para se defrontar com o bando que governa a cidade, de que fazem parte os seus meios-irmãos. Para além das implicações freudianas, a ideia de memória, quando interação entre o passado e o presente, é um dos principais focos do filme. Castellari opta por um recurso que Ingmar Bergman foi buscar ao teatro, via August Strindberg, o qual escreve que o tempo e o espaço não existem: sobre a realidade insignificante, a imaginação desdobra-se em diversos padrões. Em Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957), o velho professor, Victor Sjöström, aproxima-se da porta da sala e presencia uma refeição familiar que acontecera no seu passado. Em vez do tradicional flashback, operando um corte temporal e espacial, Castellari utiliza um movimento de câmara dentro do mesmo plano que descortina o passado perante as personagens. Vários tempos e espaços, realidade e fantasia, coexistem no mesmo espaço do plano, reforçando a ideia de personagens enclausuradas num movimento entre o passado e o presente, que parece impedir a concretização do futuro. A banda sonora, em que as vozes interpelam diretamente o protagonista, como um coro no teatro clássico grego, aprofunda a ideia de mundo enquanto palco, apresentado em diferido pelo cinema.

Perto do final de Keoma, numa extensão da montagem paralela de dois pedaços da narrativa, recurso que Castellari utiliza regularmente para gerir picos de suspense, um dos segmentos é constituído apenas pelos sons do nascimento de uma criança, que se propaga pelo outro segmento, como um assomo de futuro para uma melancolia presa aos traumas do passado, paradoxalmente num género que então findava. Esta ideia de claustrofobia presente em Keoma, reforçada por Castellari ter prescindido dos ilimitados espaços desérticos que parecem ilimitados, é o mote para um ensaio sobre os conflitos da ambivalência moral num dos seus filmes anteriores, Gli occhi freddi della paura (1971). A maior parte do filme decorre numa casa isolada e cercada pelo jardim, onde um casal se refugia na escuridão para enfrentar uma dupla de ex-presidiários que procuram ajustar contas com o passado, enquanto é obrigado a tomar difíceis decisões morais. O investigador Roberto Curti nota que o filme se destaca da produção italiana da época porque quando os filmes policiais à italiana davam os primeiros passos, Enzo Castellari encontrava-se em Espanha a rodar western spaghettis. Já Il grande racket, abordando a questão da extorsão por parte de grupos criminosos, parece perfeitamente integrado na violência dos policiais do tipo polizieschi, muito populares neste período, e numa realidade italiana dominada pelas convulsões sociais. Principalmente a partir de 1972, com La polizia ringrazia de Stefano Vanzina, também conhecido como Steno, o polizieschi criou motivos para promover o regresso do público italiano às salas de cinema, procurando responder a sentimentos de angústia, medo e revolta gerados pela profunda crise que se instalara. A realidade violenta traduzia-se em atentados à bomba, sequestros e a possibilidade de um golpe de Estado. A violência das ruas pedia ao cinema novos modos de expressão, que pudessem fazer frente à suposta imediatidade da imprensa e da televisão. Ao contrário dos espectadores, a crítica da época odiava o polizieschi, que acusava de fascista por flirtar com a inoperância da justiça e apresentar soluções autoritárias e populistas, por vezes com vigilantes urbanos, à maneira de Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971) de Don Siegel. No hiperviolento Il grande racket, esta também é a opção de Castellari.
Um membro da polícia é afastado da corporação e, à margem da justiça oficial, organiza um grupo para eliminar criminosos culpados de praticar a extorsão sobre pequenos empresários, através do pagamento do pizzo para obterem proteção. O filme mostra a impotência da polícia para fazer face a criminosos que não estão exclusivamente ligados ao território local e que alargam o seu campo de ação por meio de redes internacionais que controlam também o tráfico de estupefacientes. Castellari exibe a teia da corrupção, que é transversal a toda a sociedade, existindo mesmo nas instituições públicas encarregues de proteger aqueles com menos recursos. As imagens rapidamente se deslocam do centro urbano para a sua periferia, onde equipamentos fabris desativados ou abandonados, sinais de um capitalismo tardio marcado pela reconfiguração da indústria e da globalização, servem de refúgio para as atividades de bandos de criminosos. Tiroteios e outros momentos de maior tensão são a oportunidade para o realizador convocar alguns dos seus habituais recursos estilísticos, como a montagem paralela ou a câmara lenta. O acidente aparatoso de um automóvel aos trambolhões por uma ravina é estendido no tempo pelo cruzamento de planos gerais da ação com outros em câmara lenta, captados dentro da viatura. Esta extensão do plano temporal adensa-se com a combinação entre a câmara lenta e o eco, como no caso dos tiroteios quando as personagens, atingidas por uma bala, emitem gritos. São lentos sons orgásticos que se propagam e, depois, perante a finitude, regressam, parecendo querer ser reenviados para dentro do corpo.

Como se tornou recorrente em alguma produção europeia de cinema de género, Fuga dal Bronx, por sua vez sequela de 1990: I guerrieri del Bronx (1982) igualmente realizado por Enzo G. Castellari, procura capitalizar alguns fenómenos comerciais da época. Falamos de um grupo de filmes que inclui The Warriors (Os Selvagens da Noite, 1979) de Walter Hill, Escape from New York (Nova Iorque 1997, 1981) de John Carpenter ou Mad Max (Mad Max – As Motos da Morte, 1979) de George Miller, aquele que mais acentua o caráter apocalíptico e futurista. Tratando-se de uma espécie de ficção científica é impressionante como Fuga dal Bronx se cola ao presente contexto político. Basta lembrarmo-nos da proposta do atual inquilino da Casa Branca para o deslocamento em massa de populações de áreas dizimadas pela guerra para aí instalar uma nova e “bela” Riviera. No filme, tendo em vista transformar o bairro nova-iorquino do Bronx numa área exclusiva para populações abastadas, uma corporação pretende deslocar todos os atuais habitantes do bairro para o estado do Novo México, onde todas as habitações têm energia solar, como é promovido. Não se revela uma tarefa fácil pelo que recorre a métodos violentos. Se os mais velhos e fracos são facilmente dizimados por lançadores de chamas, os gangues controlam a superfície e o subsolo do bairro. O solitário Trash (Mark Gregory) e os membros dos gangues parecem personagens saídas de um teledisco de uma banda de hard rock, com cabelos longos e encaracolados, calças, t-shirts, coletes e jaquetas justos em couro ou ganga e as inevitáveis motorizadas. No limite, este sentimento de comunidade e rebeldia são a reação à doutrina económica de Ronald Reagan e à cultura yuppie, focadas no indivíduo e nos seus anseios e que, a bem da prosperidade económica, promoviam o afastamento das causas sociais, a desregulamentação e a privatização dos serviços públicos.
Com Quel maledetto treno blindato viajamos no tempo até à Segunda Guerra Mundial. No lado dos Aliados, um conjunto de soldados com problemas judiciais evade-se durante um ataque do inimigo e, posteriormente, dirige-se para a Suíça em busca de liberdade. Não existe liberdade sem redenção, que só poderá ser alcançada após a conclusão da tarefa de eliminar um comboio estratégico para os nazis. O brilho de Castellari nas sequências de ação, algo que o tornou consultor para outros cineastas, é célebre e continua a fascinar. Na parte final do assalto ao comboio, o realizador convoca uma panóplia de efeitos para maximizar a tensão. A câmara lenta, que Castellari confessa ter copiado de Sam Peckinpah, o corte brusco entre os grandes planos e os planos gerais ou a montagem paralela são o motor que suspende e acelera vertiginosamente a narrativa. A repetição sucessiva de planos de soldados a serem elevados pelas explosões são pinceladas soporíferas de um magnífico quadro que se aproxima da abstração. O plano militar a executar impõe que os elementos do grupo ajam em separado enquanto se dirigem para o comboio. Apesar de o plano ser conduzido com sucesso, acabam por ser abatidos quase todos os membros do grupo, sobrevivendo apenas um. Aquele que mostrou falta de companheirismo, exibiu sinais de racismo e não teve entraves para se envolver com a eventual namorada do companheiro é a quem cabe o plano final num beijo à companheira, envoltos por uma cerrada poeira da pólvora, um sinal amargo da violência da guerra.

Nesta programação dos Encontros de Cinema do Fundão, de diversas formas, os filmes de Enzo G. Castellari são evidência das transformações económicas, sociais e políticas, fragmentos da realidade em que estão inscritos. São mundos em lenta decomposição que criam conflitos e promovem a ambivalência moral das personagens – a solidão do indivíduo face ao grupo, a indignação do indivíduo contra a instituição – pelo que, em diferentes medidas, os métodos violentos dos criminosos pouco se diferenciam dos praticados pelos outros indivíduos. A sua carreira atravessa todo o período de ouro da exploitation europeia, entre a década de 1960 e a primeira metade da de 1980. O ocaso deste singular modo de produção, com canais próprios que tinham como alvo maior a distribuição norte-americana, acontece com o florescimento do mercado doméstico do vídeo, que, em boa verdade, apesar de ter desviado espectadores das salas de cinema, também permitiu a redescoberta de muitos títulos por públicos sedentos pela sexualidade e a violência gráfica que ofereciam no conforto do lar. Atualmente, um grande desafio para o público é poder ver estas obras num grande ecrã. Mesmo para os conhecedores da obra de Castellari, os filmes não se esgotam num único visionamento e as possíveis camadas vão-se desdobrando com a revisitação. Daí a relevância desta edição dos Encontros de Cinema do Fundão, com a oportunidade acrescida de ouvir os comentários do realizador, um nome ímpar do cinema de género. Ou como alguém diria, sem género, apenas cinema.

Os filmes de Enzo G. Castellari serão exibidos no Auditório da Moagem do Fundão entre os dias 30 e 31 de Maio. O realizador estará presente. Todas as informações sobre o programa dos Encontros de Cinema do Fundão podem ser consultadas aqui.