Everything in the everything like “there is no world but the world!”
Anne Boyer, Garments Against Women
Rebobinemos oito anos até 2017. Numa noite de primavera/verão no cinema São Jorge, durante a que era a 14ª edição do IndieLisboa, o prolífico cineasta ensaísta americano Jem Cohen, a quem se prestava uma homenagem com uma retrospectiva integral, alertava-nos para os perigos da polução luminosa na Avenida da Liberdade, todos aqueles placards digitais e brilhantes a ofuscar a nossa noção de luminosidade, especialmente quando na escuridão. As suas palavras não foram muito diferentes daquelas que se ouvem ser ditas por um astrólogo austríaco com 70 anos, Karl (Franz Schwartz), a partir de quem o mais recente filme de Cohen, Little, Big, and Far (2024), se move: “City streetlights stupidly shining upwards; blinding headlights, billboards aglow, and always the screens…our eyes always adjust to so we’re always out of tune with darkness.” Palavras ditas sim, mas quando ouvidas recebidas em forma de lamento monológico. Um lamento que não tem a sua origem no cinismo ou no didactismo, mas na esperança. Assim é também a base onde assenta o trabalho de Cohen: procurar contagiar, continuar a perpetuar a sintonização entre os humanos e a naturalidade do mundo em seu redor. Seja numa avenida de uma das cidades mais movimentadas do mundo, como é Nova Iorque, ou num caminho remoto e deserto em direcção a uma montanha, Cohen toca na ferida moderna daquele que tanto ansiou ver que deixou de conseguir percepcionar, e por isso distinguir o que é luz do que é escuridão, ou o que é natural de artificial.

De volta ao IndieLisboa, desta vez encontrado na secção Rizoma, programado com muita sisudez e inteligência com sessões exactamente no primeiro e último dia (a apresentar e a concluir o festival), o ensaísta americano conhecido por um cinema livre e híbrido, aberto à experimentação, sem amarras e definições de qualquer género, parte outra vez em busca de encontrar uma rede impressionista, e decididamente empática, de ligação entre o fazer do documentário, os mistérios presos nas cidades, pessoas e lugares, e as suas várias lutas pessoais. Nada mais lhe interessa do que os vários actos de ver. E os vários espectáculos privados, infinitos, e invisíveis (para muitos olhos) que os alimentam.
Little, Big, and Far é uma sinfonia calmante e envolvente sobre a liberdade daquilo que permanece um mistério. Saindo e entrando ora na realidade ora na ficção, o filme viaja com um personagem que se debate com uma crise existencial, o mesmo homem que alerta para o acto de resistência que é, nos dias que correm, olharmos para o céu.
Tendo começado o seu percurso artístico, após a chegada a Nova Iorque, enquanto vendedor ambulante de sorbets (“Eu não tinha uma câmara; tinha que ser a câmara”), ponto de partida para o flâneurismo que lhe forneceu o olhar inquisitivo, o seu mais recente filme é um documentário ficcional epistolar que não só acrescenta caminho àquele já feito pelos restante filmes até aqui como pontua as suas maiores preocupações. Como o título pode indicar, e bem, o olhar é virado para o cosmos pela mão de um astrólogo que vive longe daquilo que mais lhe é querido, a sua mulher Eleanor (interpretada pela realizadora de cinema experimental Leslie Thornton), depois desta ter aceite um emprego no Texas, EUA. Depois de muitos anos de trabalho com o filme, Cohen volta a tentar criar ligações e constelações entre a efemeridade do que tem em mãos e as formas de intimidade, desprotegidas e inerentemente vulneráveis, que vivem ansiosas e à espera do derradeiro abraço em espaços urbanos. Embora Cohen tenha ambicionado mais desta vez, partido para territórios ainda mais majestosos, ao falar do filme durante o Q&A no New York Film Festival, referiu-o rapidamente enquanto “poroso” e “aberto ao mundo”. Não há melhor forma de explicar de que se trata este cinema a quem não sabe ao que vem. Seguindo uma essência punk rock (ou não seria um filme de Cohen), o foco volta a ser a esfera pública e humanista, o mundo e a natureza do que é natural. Uma contemplação que vê a cidade, ou neste caso, o cosmos, enquanto lugar de observação política. Isto torna-se particularmente verdade quando incorre no sono de estranhos, embalados pelos tons azuis-pretos e pelo lirismo das palavras narradas por cima, palavras que não se cansam de interrogar.
Normalmente Cohen gosta de começar no céu e descer à terra, como se viu acontecer em Counting (2015), com o plano inicial de uma hélice de um avião enquanto este sobrevoa uma cidade e as suas luzes. Little, Big, and Far faz o percurso contrário. Vai da cidade à montanha e sobe até ao cosmos, com Karl a lamentar que o próprio neto achava que as estrelas são as muitas luzes da cidade quando apanhou o primeiro avião aos 3 anos de idade. Um filme-correspondência entre Karl e Eleanor, cujas palavras despoletam o filme juntamente com o álbum de música Cosmic Music de John e Alice Coltrane, o tipo de jazz que se iguala, em ritmo, tom e espírito com o espaço cósmico, Little, Big, and Far é uma sinfonia calmante e envolvente sobre a liberdade daquilo que permanece um mistério. Saindo e entrando ora na realidade ora na ficção, o filme viaja com um personagem que se debate com uma crise existencial, o mesmo homem que alerta para o acto de resistência que é, nos dias que correm, olharmos para o céu. “As pessoas não querem saber das estrelas porque não as vêem”, repete Karl. E depois explica o porquê de dedicar a sua vida toda ao encadeamento de tudo o que é pequeno, grande e se encontra longe: “(…) as estrelas tinham queimado pequenos buracos na minha mente.” Ele tinha sido conquistado pelo (in)visível.
Encontrará em Museum Hours (2012) o seu par. Ambos os filmes passam por retratar quem vê e o que vê (exterior) para serem sobre um ver (interior), e a distância necessária para que esse processo, sem limites ou fronteiras, seja concretizado.
Entre conversas com a colega Sarah (interpretada pela talentosa cineasta e artista Jessica Sarah Rinland, ela que alberga alguns dos mesmos modos de comunicação de Cohen), uma consultora em conservação natural, conversas com Eleanor, e momentos de muita ternura presentes em planos aproximados do próprio filho de Cohen que ora brinca ora dorme, falam-se de dioramas enquanto “mundos retratados prestes a desaparecer”, invoca-se um eclipse em forma de oração para uma geração em crescimento e com a qual Cohen está compreensivelmente preocupado, especialmente nesta altura em que é possível ocupar e poluir até o espaço. Por via de uma narrativa que se movimenta em torno do mesmo centro, como um radar, o filme encontrará em Museum Hours (2012), talvez um dos filmes mais célebres de Cohen, onde seguimos um guarda no Museu de História de Arte em Viena, o seu par. Ambos os filmes passam por retratar quem vê e o que vê (exterior) para serem sobre um ver (interior), e a distância necessária para que esse processo, sem limites ou fronteiras, seja concretizado.

Misturando imagens de satélite com fragmentos da travessia diária de Karl que culmina numa conferência numa ilha na Grécia onde decide ficar, Little, Big, and Far é um filme que se senta na sua própria improvisação, activando a psicogeografia do ser. Não sabe bem onde vai. Encontra o caminho enquanto o faz. À procura da escuridão mais intensa onde poderá ser recebedor do mais sobrenatural dos espectáculos, assiste-se à construção da imagem que se prepara e prepara ao longo do filme (ou será Karl que se prepara para ela? Este homem que de repente se emagrece e diminui tanto que se torna figura no cimo da montanha) até estar pronta para ser recebida por nós, que estamos do outro lado. No meio de muitos olhares, ruminações sobre o passado e o futuro, pedras e areia, morte e céu, ouve-se o eco da extinção, desse constante diálogo com o presente, a nossa relação umbilical com os ecrãs, Donald Trump outra vez no poder, uma crise climática que não cessa, e um homem que, perante a sua solidão, se vê acompanhado nas montanhas enquanto se questiona como perdeu o contacto com a maneira como as coisas evoluíram (“How does this happen, this continental drift?”). Nas palavras de Luís Mendonça na folha de sala do ciclo da NOVA FCSH “Uma Visita Guiada ao Museu no Cinema”, sobre Museum Hours, “O museu é nosso, o museu somos nós”. E se nesse filme, o personagem principal sai e entra desse habitat, em Little, Big, and Far assim que se entra não existe saída. É um laço espiritual eterno. O céu ainda nos pertence. Mas quantos de nós achamos estar presentes sem conseguir?