Até agora, Ari Aster tem trabalhado em torno de dois eixos temáticos: (1) a família e suas patologias internas, (2) e as conspirações no contexto de comunidades mais ou menos obscuras. No primeiro podemos apontar a comédia muito negra, The Strange Thing About the Johnson (2011), uma curta-metragem onde o riso do espectador era forçado e muito muito nervoso depois de assistirmos à história de um pai atraído sexualmente por um filho. A sua longa metragem de estreia, Hereditary (Hereditário, 2018), também filma uma família em desagregação: a literal troca de cabeças do terror, em função da simbologia da substituição hereditária (como o título revela).

Em 2023, Aster quer sair do nicho de género (para sua perdição) e encontra em Joaquin Phoenix, nos pós-Joker de Todd Phillips, a persona ideal para o seu adulto criança, obcecado pela presença/perda da mãe (outra vez decapitada) e traumatizado pela falta de informação sobre o seu pai que aparentemente morreu no orgasmo quando o concebeu. Beau is Afraid (Beau Tem Medo, 2023) é uma comédia psicanalítica grotesca e surreal, com mil ideias por segundo, peças dentro do filme, comentário social, animação, pilas gigantes, tomates inchados, you name it.
No segundo eixo, o da comunidade conspirativa, deve destacar-se Midsommer (Midsommar – O Ritual, 2019) acerca de um casal norte-americano que vem a uma zona rural da Suécia para assistir a um festival de Verão no seio de uma comunidade ancestral. No universo do folk horror, Aster está interessado sobretudo em colocar lado a lado duas dinâmicas comunitárias: a da ancestralidade do sacrifício e da reprodução, motor do horror, e a comunidade provisória dos visitantes que, individualmente, não se organizam para reagir a esse aprisionamento.
Fica-se com a sensação que o filme de Aster está demasiado próximo daquilo que retrata para poder ser muito levado a sério. Contudo, nessa tentativa algo falhada, em esboço, há uma certa intuição de uma parafernália de vozes que compõem a América contemporânea, vozes que se sobrepõem no vazio, que circulam sem norte afirmando lugares comuns e opiniões trazidos pelos feeds das redes sociais e pelos algoritmos do quotidiano.
Antes de partir para Eddington (2025), que pertence sobretudo a esta inquirição em torno das dinâmicas de uma comunidade, convém salientar que os dois eixos temáticos não se separam absolutamente. Em Midsommer, parte do que acresce ao horror não tem apenas a ver com a observação e investigação antropológica, mas sim pelo facto da referida comunidade apresentar uma “família” alternativa à protagonista feminina que acabara de perder os pais, assassinados pelo próprio irmão. Ao invés, ainda em Hereditary, esse acrescento ao terror é dado por uma comunidade secreta [ao estilo Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968)] que conspira para encarnar um demónio. Beau is Afraid quer também, creio, filtrar pelo olhar do traumatizado familiar uma comunidade excessiva, de violência, onde medram a insegurança e os comportamentos bizarros (creio que a palavra que Beau mais diz ao longo do filme é “what?”).
A razão deste aparte, e é este o meu ponto, é que Ari Aster tem vindo a filmar as famílias como comunidades no seio do qual a conspiração nasce e, ao contrário, comunidades que não podem ser compreendidas sem esse sentimento familiar, muitas vezes ao ponto da exaustão. Essa permeabilidade ajuda a explicar a “falta de ar” que se sente na localidade de Eddington e da qual a asma (e a Covid-19) do protagonista, o xerife Joe Cross, é um sinal. Apesar de figurar como obra número 4, o argumento deste filme foi escrito antes de todos os outros, sendo que Aster queria ter começado por fazer um western contemporâneo, tendo como influência My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes, 1946) de John Ford e Unforgiven (Imperdoável, 1992) de Clint Eastwood. Mais uma vez estava em causa um ideia de comunidade onde lei e justiça podiam estar em tensão. Os filmes passaram e quando voltou ao projecto percebe-se bem que Aster quis actualizar a sua história em virtude de uma comunidade mais contemporânea, mais próxima, que entretanto a Covid-19 e a reeleição de Trump ajudaram a modelar.
Joaquin Phoenix volta a assumir destaque desta vez como personagem tipo de uma América local: uma figura de autoridade branca, mas extremamente frágil ao nível emocional (algo de Beau ainda permanece); um xerife que decide candidatar-se a mayor e que pretende resistir à autoridade da ciência e suas normas de higiene e distanciamento ditadas pela pandemia, em função de uma noção idealizada de democracia fundacional, numa comunidade “próxima e humana”, na qual as pessoas devem estar junta e poder tocar-se. E defender-se pelas próprias mãos (mais propriamente pelas próprias armas) ante as “ameaças” do “terrorismo activista” e antifascista. Em oposição aparente à América de Cross, está a de Ted Garcia (Pedro Pascal), o mayor da cidade que ordenou o confinamento e se recandidata ao cargo com o apoio de uma empresa tecnológica com a qual promete construir um centro de dados na cidade. Mas a questão que a dado momento se levanta é a seguinte: serão Cross e Ted verdadeiras oposições de duas visões distintas da sociedades? Ou, sendo-o, não enformam os dois dos mesmos vícios na constituição de um olhar sobre essa mesma comunidade?
O mapeamento da política-xunga-espectáculo norte-americana, com influência das redes sociais e extremismo de posições, onde a emoção de tomar partido (e segmentar a comunidade em seitas) suplanta o conhecimento e a vontade de procurar a credibilidade das informações, é o mais surpreendente em Eddington. A esposa de Cross, Louise (Emma Stone), traumatizada por questões do passado, deixa-se evangelizar por um líder bonito e bem falante de um culto local (Austin Butler numa figura entre o influencer de banalidades e o oportunismo do político populista); a mãe dela, Dawn (Deirdre O’Connell) vive num mundo de teorias da conspiração próprias (ou antes, acentuadas) de um mundo ocidental pós-Covid; a isto acrescentamos ainda o clima de tensão no país em virtude da morte de George Floyd e o movimento Black Lives Matter que espoleta um conjunto de manifestações locais, que Aster encena com uma certa tinta caricatural, como de resto todas as personagens no filme.
Ao contrário de Beau is Afraid, que começa tenso e se vai dispersando na fantasia usando o canivete-suíço da psicanálise para manter a odisseia de três horas minimamente colada, o excesso de referências de Eddington funciona a seu favor. Fica-se com a sensação que o filme de Aster está demasiado próximo daquilo que retrata para poder ser muito levado a sério. Contudo, nessa tentativa algo falhada, em esboço, há uma certa intuição de uma parafernália de vozes que compõem a América contemporânea, vozes que se sobrepõem no vazio, que circulam sem norte afirmando lugares comuns e opiniões trazidos pelos feeds das redes sociais e pelos algoritmos do quotidiano. Curiosamente ou não, o que faz parar essa dispersão de opiniões e que segmenta o familiar da comunidade em trincheiras é a visibilidade pelo excesso: pela voz mais alta e mais influente ou pela voz da violência.
A personagem de Joaquin Phoenix é disso um exemplo, alguém que procura liderar a comunidade sem uma ideia, fazer (in)justiça pelas próprias mãos, recorrendo à violência para superar um impotência interior. Talvez sejam estas as figuras vigilantes que restam do cinema americano de acção dos anos 70 e 80, agora desnorteadas e impotentes pela América de Trump, procurando restaurar uma ideia gloriosa de um país fechado, “puro” e ignorante.
★★★☆☆