Há um ambiente próprio dos festivais que favorece as posições extremas, ou adoramos os filmes ou detestamo-los. Talvez seja o cansaço, o facto de ver 4 filmes por dia, ver dezenas de curtas, acordar cedo e deitar tarde. Talvez seja isso, mas o facto é que entre Domingo e Segunda vi (tenho a certeza) o pior filme do evento e também o melhor. Sei que me vou arrepender, e terei que andar com a palavra atrás mas pouco me importa. Então vamos lá: In Their Room: Berlin (2011) é o melhor filme que vamos poder ver no Queer Lisboa 16, por outro lado Joshua Tree, 1951: A Portrait of James Dean (2012) é uma bodega em forma de filme – insuportável.
Comecemos pelo mal, a ver se me consigo libertar do fel que ainda que me corre pelas veias. Matthew Mishory é o realizador do filme sobre James Dean, esteve presente na sessão e informou-nos que esta era a primeira exibição ibérica do dito. No entanto não se tratou de uma estreia do realizador no festival, por cá já tinha passado Delphinium: A Childhood Portrait of Derek Jarma (2009). Percebemos que há qualquer coisa com os retratos dos artistas enquanto jovens que atrai Mishory. Aliás, Mishory está obcecado com a demonstração de conhecimento, o filme está pejado de referência (curiosamente nenhuma ao Joyce), desde Rimbaud (a abertura do filme dá-se no escritório do escritor), Saint-Exupéry (ai o principezinho…), Hemingway (as touradas, tão bravas tão horríveis) e mais umas quantas que não alcancei. Como a personagem de Ellen Page no filme de Woody Allen, parece que Mishory sabe uma tirada de cada autor conhecido, o suficiente para conseguir passar por intelectual, mas na verdade não há coesão em nenhuma nas citações, a acumulação torna-se tão evidente que a cada autor que se acrescenta percebemos que não há de facto objectivo nenhum no trabalho. Toda aquela demonstração é masturbatória e pior, enganosa. Fazer de Dean um grande pensador, conhecedor dos meandros da alma humana, é uma proposta tão revisionista como filma-lo como ícone queer completamente vazio de conteúdo. Dean aqui é um suporte para o cigarro, um cinzeiro humano (a primeira cena em que aparece ele apaga cigarros no seu corpo). A transformação do actor James Preston é simplesmente despentearem-lhe o cabelo e porem-lhe um cigarro na boca. Mas se fosse só isto estávamos menos mal, Mishory faz um filme de hora e meia que a velocidade normal não chegaria ao 45 minutos, tudo é em câmara lenta, tudo muito virtuoso, tudo muito bonitinho e arrumadinho. Ele disse-nos que como Dean não era um actor comum (ordinary) mas sim um actor extraordinário, um biopic seu teria que fugir ao esquema de hollywood, o problema é que a alternativa é um anúncio da Channel estendido (o seu ídolo deve ser o Luhrmann).
Cuspido o fel vamos ao mel. Travis Mathews é um menino formado em psicologia que começou a publicar uma série de vídeos na internet numa série a que chamou In Their Room, onde visitava e filmava as casas de vários conterrâneos de São Francisco. O projecto virou curta documental, In Their Room (2009), onde se conheciam as histórias de lençol de oito homens gay da dita cidade. Entre essa estreia e esta mais recente incursão pela capital alemã, Travis Mathews filmou uma curta de ficção I Want Your Love (2010) que virou agora longa com o mesmo nome (em competição no festival, quando vir reporto). Mas fiquemo-nos por esta média (são só 60 minutos); um voz avisa-nos, por entre fogachos de luz filmados na noite de Berlim, que qualquer grande metrópole verifica um fenómeno comum: das zonas mais rurais vêm centenas de jovens em busca de uma libertação sexual (que os meios pequenos não admitem) deparando-se com uma comunidade gay que os encara como carninha tenra; mas se uma pessoa insistir, talvez consiga encontrar o amor. Esta é a atmosfera de In Their Room: Berlin, um filme sobre essa procura por uma alma gémea, por um companheiro, pela felicidade e pelo amor. Mas tirem os cavalinhos da chuva aqueles que pensam que aqui se encontra um documentário fácil e emotivo. Na comunidade gay, antes da relação vem o sexo (digam o que disserem) e por isso este é um filme de sexo, primeiro o sexo depois o resto, ou o resto através do sexo. São vários os homens que conhecemos, uns sós (mais velho, só e contente) outros como casal (um deles absolutamente encantador) e outros sós mas em busca de alguém. É através desse encantador casal que a câmara de Mathews mostra a sua mestria; consegue (sabe deus como) filmar a intimidade sem que a presença da câmara se sinta (leio que lhe chamam voyerista, mas uma imagem tão pura de felicidade não pode ser classificada assim). E só por termos a experiência de uma relação tão carinhosa é que nos conseguimos envolver numa sequência de sexo que ocupa a metade final do filme. Aceitamos essa meia hora de descoberta, de exploração do corpo do outro (as cicatrizes, as tatuagens) porque sabemos que no fundo cada um deles procura no corpo do amante a felicidade. Nunca antes me lembro de gostar tanto de ver sexo no ecrã, de o sentir tão candidamente imbecil, sentir que eles estão nervosos, que são trapalhões, que querem tanto mostrar uma imagem melhor de si ao outro que se mostram transparentes ao espectador (ou melhor, à câmara de Mathews). Enfim, um filme verdadeiramente romântico.
As curtas.
Até ao momento já vi cerca de metade dos títulos da competição de curtas e entre coisas de péssimo mau gosto [Joelma (2011)], melo-dramatismo a puxar à lágrima [Tsuyako (2011)], o academismo [A Arte de Andar pelas Ruas de Brasília (2011)] e o desequilíbrio formal [Down Here (2011), realizado pelo português Diogo Costa Amaral] apareceram vários títulos merecedores de atenção, nomeadamente The Ducks’ Migration (2011) uma curta deliciosa sobre a amizade ou como esta pode ser um entrave ao amor; The Wildings (2011) sobre um reformatório e como o amor pode crescer e da dificuldade que este tem sobreviver num ambiente de preconceito e Hold on Tight (2011) que apesar de parecer um desses documentários que se fazem para ganhar likes no youtube encara a dita questão do quarto como local refúgio e projecto de mundo, abordando uma coisa tão simples: como o acto de duas pessoas do mesmo sexo darem as mãos em público ser o resultado de um esforço tremendo de luta contra os medos (seus e dos outros).
Mas de entre todos estas curtas há outras que se destacam nitidamente: Blue Piscine (2011) curta de fim de licenciatura de Jean-Baptiste Becq que encena numa piscina pública um coreografia de corpos despidos e molhados sem nunca cair no erotismo, pelo contrário, há simplesmente uma tensão sexual inerente à ‘inacecibilidade’ do corpo do outro manifestada num plano lindíssimo: dois homens tomam banho em frente um do outro e quando um deles se ausenta do balneário o outro muda para o chuveiro do primeiro, assim, sem mais nem menos (o filme não tem falas) percebemos o desejo de ocupar o corpo do outro através da ocupação do espaço outrora ocupado pelo dito corpo. Fratelli (2011) filme de Alexandre Melo e Gabriel Abrantes, este último várias vezes presente no Queer. A ideia do filme é representar o prólogo de A Fera Amansada de Shakespeare, pedaço da peça que nunca é representado [em adição a isso o filme retira inspiração em particular de I racconti di Canterbury (Os Conto de Canterbury, 1972) cujo guarda roupa é o mesmo envergado pelos actores neste filme e também de Francesco, giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos, 1950)]. Para isto os realizadores acharam que só o português da Baía poderia suportar o peso poético do texto, daí que todo o filme seja dobrado pelos próprio actores (todos lusos) com vista a acertar o dito sotaque. Se podemos dizer que Fratelli sofre de ideias a mais, também podemos dizer que consegue de forma verdadeiramente divertida fazer um estudo sobre a liberdade e a amizade. Dont Brejk Maj Turbofolk Hart (Don’t Break My Turbofolk Heart, 2011) de Miona Bogovic que consegue criar uma atmosfera, em apenas 25 minutos, que é de tal forma densa que se não o soubéssemos diríamos que de uma longa se tratava. O Turbofolk do título é um género musical perto do nosso pimba, a apropriação da lamechice das letras é feita de forma tão delicada que consegue-se tecer um romance entre uma curadora de arte e uma cantora do género, com o pano de fundo do conflito do Kosovo, mantendo ainda a dimensão dramática do couming out. Tudo numa montagem elíptica e circular que cose todos os retalhos, um feito portanto. E finalmente, a melhor curta até ao momento, Mila Caos (2011) de Simon Paetau, selecção da quinzena dos realizadores em Cannes, há nesta história de um mocinho que é drag aos fins de semana qualquer coisa de profundamente comovente. Mas mais que isso há um trabalho de enquadramento medonho, sentimos que a câmara está sempre ligeiramente fora, tudo está ligeiramente descentrado, desalinhado; talvez como o seu protagonista.
O post-scriptum.
Nota final e breve para Frauensee (Woman’s Lake, 2012) filme que apesar de querer bem, quer pouco e atreve-se menos ainda. Tem uns planos sequência bonitos, fora isso não se suporta a gritaria e o dramatismo de vão de escada, nem a mistura de som que se nota a cada cena, sempre como intruso de um certo naturalismo que se pretende.