Fala-se muitas vezes sobre o ‘problema do cinema português’, mas quase sempre sem números. Ah, o Oliveira tem muito sucesso no estrangeiro. Ui, o Pedro Costa é adorado pelos japoneses. Upa, os filmes do António Pedro Vasconcelos não são vistos por ninguém. O dinheiro dos contribuintes anda a ser esbanjado por artistas de meia tigela, os bandidos. Enfim, para que se possa falar das coisas com saber, vamos aos números que são sempre uma coisa muito simpática:
- em cerca de duas semanas Morangos com Açucar – O Filme (2012) fez mais de 190 mil espectadores e ultrapassou a barreira do milhão de euros em bilheteira,
- Balas & Bolinhos – O Capítulo Final (2012) consegui, em pouco mais de uma semana, perto de 80 mil espectadores [tabela do ICA],
- ambos os filmes foram produzidos sem apoios dos institutos ou fundos do estado (entenda-se ICA, Fica e DGartes),
- segundo o site IMDB, os orçamentos de ambos os filmes foram, respectivamente, 7’800€ e 500’000€ [o orçamento do Morangos deve ter sido certamente superior, trata-se com certeza de uma gralha],
- a nova lei do cinema foi aprovada na especialidade e acrescenta à taxa de 4% dos lucros em publicidade (das televisões e dos cinemas) uma taxa de 3.5€ por cada subscrição de televisão paga (existem cerca de 3 milhões destas subscrições, perfazendo um aumento do orçamento do ICA e da Cinemateca Portuguesa em aproximadamente 11 milhões de euros),
- a mesma lei obriga o reinvestimento de 2.5% dos ganhos em bilheteira das exibidoras na promoção e exibição de obras europeias (onde 25% deverão ser nacionais) e o reinvestimento de 1% da sua receita total das distribuidoras em (co-)produção do obras cinematográficas (se a produção for nacional as empresas têm benefícios) assim como as televisões terão que fazer o mesmo numa percentagem de 0.75 dos seus lucros que irá aumentando até 2015 (estabilizando no 1.5%),
- a nova lei entra em vigor no próximo mês de Outubro, mas as alíneas referentes às distribuidoras, exibidoras e televisões só vigoram a partir do próximo ano [excerto do Diário da República],
- o secretário da estado da cultura prometeu o desbloqueio dos concursos do ICA após a aprovação da referida lei (sendo que alguns vencedores dos concursos de 2011 não receberam ainda o financiamento prometido pelo dito instituto),
- o autor do blogue Brain-Mixer compilou uma série de números sobre o total de espectadores dos filmes portugueses desde 1978 (uma vez que as listas do ICA só se reportam aos filmes depois de 2004, ano em que foram informatizadas as bilheteiras), acrescentando dados curiosos:
- António Pedro Vasconcelos (APV) é o realizador que ao longo da sua carreira mais espectadores teve, com cerca de 900 mil;
- seguido por Joaquim Leitão com cerca de 650 mil espectadores;
- em terceira posição figura Carlos Coelho da Silva, realizador de apenas três filmes, Crime do Padre Amaro (2005), Amália – O Filme (2008) e Uma Aventura na Casa Assombrada (2009), alcançado mais de 600 mil espectadores;
- o maior sucesso de Manoel de Oliveira em Portugal foi Francisca (1981) com mais de 76 mil espectadores [repare-se que nos últimos dez anos o seu maior sucesso de bilheteira foi O Quinto Império – Ontem Como Hoje (2004) com pouco mais de 8 mil espectadores];
- no entanto, considerando apenas o número de espectadores em exibições fora de Portugal (apenas entre 1996 e 2007), Oliveira teve cerca de 550 mil espectadores [só Um Filme Falado (2003) teve mais de 200 mil], não se contando por isso os sucessos em terra de tio Sam com Singularidades de uma Rapariga Loura (2009) e O Estranho Caso de Angélica (2010).
Feita esta introdução podemos partir para uma interpretação dos números (sim, porque um número por si nada vale). De um ponto de vista estritamente económico percebemos que dar dinheiro a Manoel de Oliveira ou a António Pedro Vasconcelos tem um resultado em tudo semelhante, com a pequena diferença que um tem o grosso dos seus espectadores no estrangeiro e outro tem-nos dentro de portas. Então, financiar Call Girl (2007) ou Um Filme Falado é igual? A resposta é obviamente negativa. A longo prazo percebemos que o cinema de Oliveira vai aumentando o número de espectadores, em reposições, retrospectivas, sessões especiais, enquanto que APV não tem esse privilégio (pelo menos por enquanto, apesar desta homenagem em Israel). Assim, falando economês fluente, o retorno de um filme de Manoel de Oliveira é potencialmente maior (a longo prazo) que qualquer outro realizador nacional.
Então não deve o estado apoiar obras como as de APV? Pois, a isso parece responder a nova lei do cinema. Se por um lado o orçamento do ICA aumentou, temos por outro lado que se incentivou os privados a investirem em obras nacionais. Assim sendo, talvez não faça sentido que um filme com uma receita bruta de 1.5 milhões de euros (como foi O Crime do Padre Amaro) seja financiado (ou co-financiado) pelos dinheiros do dito instituto, pois, certamente haverá privados disposto a correr o risco de investir num filme como esse. Mas não sejamos ingénuos, a esses 1.5 milhões temos que descontar o IVA, a percentagem da exibidora e da distribuidora e ainda da publicidade, sendo o lucro muito estreito se considerarmos que o orçamento de um filme destes estará sempre a cima do milhão. Para tentar responder a este estado de coisas, criou-se em 2007 o Fica (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual), um fundo onde as várias televisões privadas e a RTP colocavam dinheiro, junto com o QREN e apoios europeus. Este fundo era gerido por uma administração independente e deveria gerir estes dinheiros de forma a que se produzissem obras com intuito de retorno (ao contrário do ICA em que o financiamento é feito a fundo perdido). A questão é que a gestão foi incapaz e os filmes produzidos não serviram para o desejado. Por exemplo, o investimento que a TVI fez no fundo foi muito inferior ao orçamento que retirou dele para produzir a série Equador.
Por outro lado parece que os dois novos sucessos de bilheteira do cinema português são filmes que devolverão um retorno significativo aos seus produtores. Percebemos que o que há a apreender é: o que torna um filme lucrativo, mais do que a sua qualidade é a forma como se pode criar um culto (tanto das margens, como com Balas & Bolinhos, como do centro, com Morangos com Açucar) e por outro lado a forma como o financiamento é feito [usando o sistema produtivo de uma televisão ou recorrendo a apoios de empresas locais e muita carolice, ou ainda reduzindo ao mínimo os custos de produção e trabalhando de graça, caso de Estrada de Palha (2012)]. De qualquer forma, não será nunca pela construção de uma industria lucrativa o suficiente que conseguiremos financiar o cinema de autor (entrevista de Nicolau Breyner), ainda para mais porque é o próprio Nicolau Breyner a afirmar na mesma entrevista que o cinema português só será lucrativo se o exportarmos e como já percebemos, o cinema de autor é o único verdadeiramente exportável. Quem fora de Portugal terá visto A Teia de Gelo (2012)? A resposta não a conheço, mas por cá foram pouco mais de 5 mil pessoas.
Deveria referir (mas já me alonguei demasiado) ainda a forma como se processa a distribuição no nosso país (facto não despiciendo nos resultados de bilheteira) e do custo que uma cópia em película acresce ao orçamento do distribuidor. A este respeito deixo apenas dois caso: Filme do Desassossego (2010) que com apenas uma cópia e com 145 exibições conseguiu mais de 28 mil espectadores ou o caso de Deste Lado da Ressureição (2012) último filme de Joaquim Sapinho cujo produtor Pedro Fernandes Duarte afirmou ao Libération: Nous n’avons pas, pour l’instant, les moyens de financer les copies.