É interessante pensar a forma com dois artistas podem a dada altura intersectar-se num caminho, num universo de preocupações. Chantal Akerman leu Almayer’s Folly: a Story of an Eastern River, o primeiro romance de Joseph Conrad escrito em 1895, e imediatamente teve vontade de falar dessa “história de amor” presente no romance que liga o pai, Almayer, europeu a viver nas Ilhas Orientais Holandesas, à filha, Nina, também ela fruto de um movimento de intersecção, desta feita de culturas.
Quem conhecer um pouco da obra de Chantal Akerman sabe que a importância da família (alguns dirão, incrementada pela herança judia), atinge pontos de ambiguidade que servem antes do mais para falar na inexistência de barreiras culturais ao amor e à atracção sexual. Basta recordar a personagem do camionista em Je, Tu, Il, Elle (I, You, He, She, 1975) ou das cenas de reencontro de Anna com a mãe em Les Rendez Vous D’Anna (The Meetings of Anna, 1978). Por outro lado, e discorrendo ainda sobre esse encontro Conrad/Akerman, dir-se-ia que o escritor nesta altura ia ainda a caminho de fabricar a loucura na relação com a natureza, com os espaços: aquela presente em The Heart of Darkness, a que mais frutos deu no cinema como sabemos. Quando Akerman resolve neste seu último filme adoptar o romancista polaco havia também esse interesse pela folie um estado patológico que pode nascer de um amor obsessivo por exemplo mas que penetra por inteiro num ser humano, arrasando-o.
Sobre essa loucura convém recordar as palavras e gestos de Chantal Akerman que apresentou o filme há uns dias em Portugal em ante-estreia, a propósito da retrospectiva que o Doclisboa lhe dedica este ano. Pôs a mão na cabeça e levou-a daí ao peito e disse que o cinema devia passar pela cabeça e pelo coração. E que quando foi filmar ao Cambodja se deixou levar pelo espaço e que em muitas situações (em que normalmente filmaria de forma mais rigorosa, com mais takes) quis obter uma certa fluidez que tem a ver com a vida, com o sentido de urgência no aproveitamento do espaço. São curiosas estas palavras na medida em que Almayer (Stanislas Merhar), holandês que se vê obrigado a viver no seu posto comercial no terceiro mundo e a casar com uma mulher local que não ama (de quem tem uma filha, Nina) tem sobretudo um dilema de classe cultural que assenta nos estereótipos de raça. Ele sente-se branco e sente a esposa como negra. Isto é: o factor de loucura não tem necessariamente a ver com o espaço, com a natureza [e nesse sentido, percebemos quando Akerman declara a influência de Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, 1933) de Murnau] mas sim com o objecto do seu amor “baralhar” as cores da sua vida, é que Nina é branca e negra. E eis-nos chegado ao passe de mágica de La folie Almayer (A Loucura de Almayer, 2011) ou à conversão da loucura Conrad em loucura Akerman: a natureza nunca é um espaço de agressão (como em Herzog por exemplo) e há antes um dispositivo cinematográfico que permite trabalhar o velado do estado de obsessão. Por um lado, uma irrisão da narrativa que explica (há ao invés um guiar quase sensorial do filme pelas personagens acessórias: os criados mas também a esposa). Por outro lado, a inacessibilidade da loucura (como do amor: quando nos apaixonamos esse objecto é o outro ou a nossa falta?) dada através dos planos longos, de uma certa teatralidade, como se o presente fosse um momento interminável no interior do qual a obsessão gira e para a qual não há libertação aparente.
Após a partida da sua filha com o jovem amante, o último plano do filme, longo, deixa Almayer sentado na sua casa com essa tarefa impossível: ter de esquecer a sua filha antes que chegue a eternidade. Assistimos assim à morte de um projecto de manipulação e possessão masculina sobre a mulher [nesse sentido, La Folie é uma “continuação” sub-textual de La Captive (A Cativa, 2000)] e ao encerramento circular do filme que mata “culturas” através das suas pessoas do início do filme (a sequência da karaoke) ao seu fim.
Chegados a este ponto algo desorientados digo-vos que La folie Almayer talvez não seja o melhor filme para começar a ver Chantal Akerman mas que é sem dúvida uma belíssima obra que resiste a qualquer armadura teórica que contra ela se avance. É que o cinema de Akerman é enorme, um mundo sibilino que avança por todos os espaços revendo-os a um filtro individualíssimo de liberdade e ânimo. Como disse a própria realizadora uma vez para se desembaraçar da etiqueta do feminismo: “I’m not making women’s films, I’m making Chantal Akerman’s films”.