Quem é o Walsh cuja pala é patrona deste espaço? Raoul Walsh, realizador de filmes de gangsters, de cowboys e de militares e marinheiros. Walsh é lembrado acima de tudo por estes géneros, por isso pensar em Raoul Walsh, realizador de comédia doidas e musicais românticos, talvez seja surpreendente para os desprevenidos. Pois bem, Walsh é um realizador de todos os géneros e como tal um camaleão cinematográfico que faz de cada filme uma demonstração da sua imensa capacidade de camuflagem sem nunca perder a forma sardónica. The Horn Blows at Midnight (1945) é uma das comédias loucas e melhor ainda, é exibido na próxima quarta-feira na Cinemateca Portuguesa na sessão da matiné.
O humor nos filmes de Walsh é invariavelmente um que podemos adjectivar de licoroso. A graça vem quase sempre da falta de graciosidade das personagens: os homens que se embebedam e dizem disparates, a pancadaria que advém dos disparates e a recuperação da pancadaria são a matéria que Walsh prefere usar quando quer sacar uma gargalhada aos espectadores. Neste sentido há um actor que é indissociável do humor walshiano: Alan Hale. Figura quase sempre paternal e deliciosamente irlandês (o pai de Walsh era também de descendência irlandesa) está associado, em filmes como Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942) ou The Strawberry Blonde (Uma Loira com Açúcar, 1941), ao mulherengo bebedolas que raramente aparece ao trabalho. Mas se Alan Hale é marcante nos anos 40, é na década anterior que o maior número de obras cómicas surge na carreira de Walsh. Ainda que no início dos anos 30 tenhamos as mesmas comédias de taberna [Me and My Gal (1932) e The Bowery (O Terror dos Cabarets, 1933)] na segunda metade encontramos uma série de títulos musicais protagonizados por estrelas da rádio e que são geralmente encarados como menores na carreira do realizador. Mas não é sobre isto que queremos demorar-nos, é sobre The Horn Blows at Midnight protagonizado por Jack Benny. Serviu no entanto este desvio para encontrar neste título singular uma contradição: se o humor de Walsh é tantas vezes o alcoólico, como pode ser possível fazer ele uma farsa sobre anjos e querubins, que de todas as criaturas são as mais puras e as que originam menos desacatos?
Jack Benny já havia trabalhado com Walsh num filme que teve bastante sucesso, Artists & Models (Artistas e Modelos, 1937), e embora a carreira de Benny não tivesse tido ainda um big hit no cinema, a sua fama como actor de rádio levava muitos à sala escura. The Horn é hoje lembrado mais do que qualquer outra coisa, pelo enorme falhanço que foi e por ter sido o filme que arruinou a carreira de cinema do actor – que continuaria as suas peças cómicas na rádio e depois na televisão, nomeadamente com o The Jack Benny Program que durou quase 15 anos. Se o desastre nas bilheteiras foi irreparável foi igualmente irreparável a opinião demolidora do próprio Benny, que ao longo dos vários anos do seu talk show usou como piada recorrente o desaire de Walsh – When the horn blew at midnight it blew for my cinema career.
Apesar do insucesso, o argumento do filme foi mais tarde adaptado para teatro radiofónico e depois ainda como peça teatral para televisão – ambos protagonizados pelo próprio Benny. Nestas duas adaptações, respectivamente de 1949 e 1953, a trama é ligeiramente diferente daquela que o filme de Walsh foca e o tom muda igualmente. No filme começa-se num estúdio de rádio onde uma orquestra prepara o serão musical dos ouvintes com uma senhora esganiçada [a fazer lembrar a Lily Pons de Hiting a New High (O Rouxinal da Selva, 1937)] e um terceiro trompetista que não acerta uma nota. Esse é Jack Benny. Faltando um quarto de hora para a meia noite o patrocinador do serão surge com um longo anúncio a Paradise Coffee o café divino que dá sono angelical. Enquanto o locutor lê a mensagem publicitária o nosso trompetista ferra-se a dormir. Eis se não quando vemos uma nuvem e uma mensagem que nos informa: Heaven, 1945-1946. Esta introdução está no filme e não está nas subsequentes adaptações, onde começamos logo nas nuvens com a promoção do trompetista da orquestra do paraíso a demolidor planetário (o jovem anjo-músico é promovido para a destruição do planeta 339001 conhecido também por terra – just a six day job – tendo para isso que tocar a sua corneta apocalíptica à meia-noite do título) e às suas desventuras pela viciosa terra. O tom das seguintes adaptações era mais moralista e focavam-se no dilema do anjo destruidor sobre se a humanidade mereceria tal fado depois dos horrores do holocausto. Ao transformar toda a narrativa no produto de um sonho Walsh rodeia toda as dúvidas morais e foca-se na loucura – pura e doida – da história. Recuperando alguns dos referidos filmes da segunda metade da década de 30, Bénard da Costa diz a certa altura: [a comédia Going Holywood (Vamos para Holywood, 1933) é] “excessivamente desbragada? Excessivamente delirante? Respondo com outras perguntas: haverá algum filme de Walsh que não seja excessivo? Não é o excesso um dos traços fundamentais do seu cinema?”. No ano do final da segunda grande guerra Walsh decidiu fazer um filme puramente escapista – que chega a ser um cartoon com gente lá dentro – e o resultado não podia ser mais tresloucado.
Note-se, no entanto, que esta posição escapista não é algo que se compreende com facilidade. Walsh, durante o período da participação dos EUA na segunda grande guerra, foi um dos realizadores dos filmes ditos de propaganda (mas que, muitas vezes a excediam): dos mais fracos e esquemáticos [Background to Danger (O Expresso Bagdad-Istambul, 1943)] às obras primas [Objective Burma! (Objectivo Burma, 1945)]. Deste modo vermos um realizador fortemente empenhado no esforço de guerra a esquecer, ou tentar esquecer, essa mesma guerra é no mínimo intrigante (mais ainda quando os filmes da década de 40, caucionados pela casa Warner, são invariavelmente sisudos). A única explicação será mesmo o desejo de esquecer através do excesso; extravasar todas as amarras que a propaganda havia imposto usando para isso um filme sem quaisquer amarras.
Mudando um pouco o rumo da conversa, parece-me interessante deixar aqui as linhas mestras de algo que convido o leitor interessado a investigar. The Horn Blows at Midnight é um de vários filmes onde os instrumentos musicais (ou as canções) têm um papel fundamental, tanto de destruição como de rememoração de eventos trágicos ou ainda como símbolo de resiliência. Em Distant Drums (As Aventuras do Capitão Wyatt, 1951) são os batuques dos índios assassinos que constantemente perseguem os nossos heróis fugitivos; em A Distant Trumpet (A Carga da Brigada Azul, 1964) tem de novo a mesma corneta, mas desta vez é a dos militares que festejam com uma fanfarra a pacificação com os índios; em Jump for Glory (O Grande Alto, 1937) é o violino que acorda o protagonista do coma e antevê o seu futuro glorioso e tanto em Along the Great Divide (A Caminho da Forca, 1951) como em Strawberry Blonde (Uma Loira com Açúcar, 1941) [e o seu ‘remake musical’ One Sunday Afternoon (1933)] é uma canção que recorda o passado traumático dos (walshianos) heróis perturbados – para no final inverterem o seu significado. Parece-me que, da imensidão que é a obra do realizador, há um elemento que é raramente abordado: o poder dramatúrgico da música. Neste sentido The Horn é um caso singular, não só tem a trompeta um lugar cimeiro como a banda sonora é reveladora do empenho escapista do projecto. Embora a assinatura da mesma seja de Leo F. Forbstein o que sabemos é que a cena final do filme, em que 5 personagens estão penduradas de um arranha-céus, foi musicada por Carl W. Stalling compositor habituado às animações da Warner. Esse é um dos momentos mais hilariantes que me lembro de ter visto e mostra, sem sombra para dúvidas, que Walsh é o domador de todos os géneros e que não deixa nunca nada pela metade. Um realizador de mão cheia, literalmente.