Agora que a RTP2 se prepara para suspender indefinidamente a sua programação de cinema, deixando-nos pelo menos este Verão às escuras em matéria de Sétima Arte, proponho encerrar esta primeira série de crónicas Civic TV com outro filme de horror. Chama-se The Changeling (O Desvendar de um Mistério, 1980) de Peter Medak, também lida com assombrações e imposturas, mas não passou no segundo canal do Estado. O canal Syfy foi a casa que o recebeu e a casa que libertou o espírito maléfico que o habita. Libertou-o para entrar directamente na nossa sala, noite adentro e sem contemplações. Se ouvir sons, sussurros vindos do nada, portas a bater inesperadamente ou objectos a moverem-se por si, não estranhe: a impostura virou roommate ou foi você que virou impostura para o roommate oculto e desesperado. Tenha cuidado, mas procure não mudar de canal.
Serge Daney terá abandonado o jornal Libération com um sentimento misto, simultaneamente de dever cumprido e de perda de tempo. Parte do cansaço devia-se à cobertura exaustiva, dia a dia, que fizera da realidade televisiva francesa, começando logo pelos filmes que passavam no pequeno ecrã e acabando em jogos de ténis, anúncios ou reportagens. Entre 1987 e 1988, passou a pente fino a oferta televisiva do seu país, registando as suas reacções e reflexões numa crónica ironicamente intitulada, referindo-se a um clássico de Clouzot, Le Salaire du zappeur. Continuou a escrever sobre como os filmes eram transmitidos e “percepcionados” na televisão até ao fim da sua colaboração para o jornal. Este esforço crítico, que em parte rima com o trajecto de um dos seus ídolos, André Bazin, terá sido elucidativo a dois níveis. Primeiro, descobriu que certas obras se conseguem agigantar ou renovar no pequeno ecrã. Deu como exemplo Zelig (1983) de Woody Allen, mockumentary sobre uma “impostura” cameleônica pré-Holy Motors, crítica implícita ao “visual” televisivo (usando aqui um conceito da sua lavra). Segundo, graças a esta tentativa de, qual Zelig, se metamorfosear no telespectador médio, ficou claro aos seus olhos que a programação de cinema tinha tanto de conveniente como de arbitrária.
Alegava o crítico francês que os filmes exibidos nas grelhas televisivas, em horários impróprios, vagabundeavam em esquinas recônditas, aguardando que um espectador com insónias os “escolhesse” desinteressadamente como companhia para o que restava da madrugada. Este tipo de programação televisiva levava a que conteúdos tão nobres como os filmes ficassem sujeitos a uma espécie de proxenetismo virtual, ou mesmo espectral, que tinha como alvo o zappeur irrequieto, carente, entediado. Ler isto e saber isto leva-me a questionar a forma como os blind dates e as one-night stands se sucedem na nossa relação com a programação de cinema em televisão. The Changeling caiu-me ao colo quase acidentalmente, numa noite de deambulação pelas diversas grelhas que vão estorricando a nossa irrequietude, a nossa carência, o nosso tédio. George C. Scott piscou-me o olho várias vezes, ou melhor, eu é que pisquei o olho várias vezes quando o vi no elenco de um filme de terror, de 1980, sobre um músico e compositor famoso que na sua nova morada, uma mansão histórica que parece saída de um filme de Welles, é interpelado por várias “manifestações paranormais”. Tenho um fraco por cinema de terror, sou adepto da energia viril de C. Scott e tenho fé na potência terrífica que se esconde, subterraneamente, no mais minimal e raquítico dos plots. Encontrei, assim, boa companhia com quem passar a noite.
Parente indirecto dos melhores filmes de assombrações, como The Haunting (A Casa Maldita, 1963) e The Innocents (Os Inocentes, 1961), The Changeling é um exercício – entretanto, mil vezes repetido e, logo, banalizado – sobre a perda e a mudança. A brutal exposição põe-nos no mood adequado: numa viagem em família, o nosso protagonista, John Russell, perde a mulher e a filha pequena num espalhafatoso acidente de viação. Não suportando o convívio com os objectos e espaços que agora apenas simbolizam não uma presença mas uma ausência traumática, este homem emocionalmente devastado decide mudar de pouso. O pé direito da nova casa, uma faustosa mansão de estilo vitoriano, vai-lhe oferecer a acústica certa para preparar as suas aulas e para ensaiar as novas composições musicais. O que John não sabe é que a própria casa tem uma respiração, ritmo e, enfim, sonoridade próprias. A mansão não se limita a reverberar a música composta por John; ela irá produzir a sua própria sinfonia, uma sinfonia de horror, como é evidente. Esta “música infernal”, produzida por sons que o próprio ouvido treinado do seu mais recente residente não consegue identificar, vai sendo escrita ou composta até dominar por completo a banda sonora do filme. O músico interpreta os signos sonoros como sinais vindos do além, produzidos por um espírito atormentado que desespera por “ajuda” e que tem uma forma algo desajeitada, quase digna de uma… criança, de formular esse pedido.
Avança uma médium que este “impostor” invisível comunica com a personagem de George C. Scott através da “perda” deste último. A ideia de ocupar um vazio ou de preencher uma perda confere ao filme a primeira nota de perturbação. Afinal, John mudou de casa para fugir de uma ausência e agora de novo instalado, pronto para “recomeçar a sua vida”, vê-se outrossim confrontando com o assédio, desta vez não puramente mental, de uma outra ausência. Esta ausência, uma “ausência segunda”, comunica através do vazio deixado pela outra ausência, uma “ausência primeira”. Em certa medida, o fantasma que assombra a nova casa usa como media os fantasmas, da filha e mulher, que habitavam menos o apartamento anterior de John que o interior da sua psique. Mas que vazio é aquele? A ideia de perda está “cheia” de inquilinos neste filme, o seu efeito alucinante parece tão poderoso, activo, ilimitado quanto frágil, quebradiço, quase “inválido”. O filme falará de todos estes assuntos – e bem que os podia aprofundar mais ou melhor -, mas em pano de fundo está esta reflexão secreta sobre a paradoxal potência de uma perda tão traumática como aquela que John vivencia.
Só na morte a ausência, até ou sobretudo das pessoas mais queridas, ganha uma dimensão ubíqua, total e fantasmática ou, enfim, “assombrante”. A presença corpórea sinaliza uma existência “de facto” e permite-nos usufruir do luxo de nos esquecermos dela. A ausência corpórea, táctil e audio/visual, produz um sentimento que, chamando nós “de perda”, é não de esvaziamento mas de enchimento: uma torrente de imagens, sons, cheiros que insistem na preservação da pessoa perdida numa dimensão puramente virtual, que diria ser a da memória. Ora, o que (a casa de) The Changeling encerra é um gesto sobrenatural que procura impedir o protagonista de “esquecer”, isto é, de se deixar levar pela ilusão (sobranceira?) de um “recomeço virgem”. Em certa medida, exercita-se aqui, a partir de uma manifestação do além, composta por sinfonias de horror, ruídos brancos, pesadelos mortificadores e suores frios, uma tentativa de resistência à lógica do zappeur: a de saltitar de canal em canal, “de casa em casa”, esquivando-se à confrontação com a sua “perda” sempre-anterior. Daney sabia que este processo avulso de auto-alienação – um luto permanentemente adiado, que nada fixa – tinha pouco a ver com o cinema, com a imagem, mas tinha tudo a ver com a retórica da televisão, com a autofagia do visual. É desta assombração que o brilhante crítico francês, farto do cinema-puta do e no pequeno ecrã, se via liberto para lançar as bases da Trafic, revista que trata o cinema como a “puta sagrada” do grande ecrã que é e deverá ser. Sempre.