É preciso cancelar o apocalipse. Este é um dos objectivos que vem obcecando a ficção científica de há uns anos a esta parte. Já não se trata somente de combater a ameaça exterior como mero medo do “outro antagonista” mas sim uma verdadeira rivalização com a natureza que orienta o cinema para o problema da extinção, do extermínio da nossa própria raça. E algures esse combate contra o nosso desaparecimento ganha uma dimensão mind-fucking na medida em que muitas das vezes (senão todas) foi o próprio homem o causador da sua perdição (desde o Éden que é assim na verdade). Como se o cinema andasse a “cheirar” o fim de algo, que não é separável de um gigantesco sentimento de culpa que procura exorcizar as próprias e impensadas acções de manipulação sobre a técnica.
Ironicamente (ou não) a questão que se põe ao ver Pacific Rim (Batalha no Pacífico, 2013) de Guillermo del Toro (artilhadíssimo tecno-blockbuster de Verão, em 3D, imax, dolby atmos, 180 milhões de orçamento para efeitos digitais) é: valerá mesmo a pena cancelar este apocalipse? Vamos por partes. Estamos no longínquo ano de 2020 e uns anos antes uma falha interdimensional no leito oceânico (é sempre dos abismos que vêm os nossos fantasmas existenciais) abriu um portal para o nosso mundo deixando entrar monstros do tamanho de estádios de futebol, dois cérebros, lançadores de ácidos e outras porcarias (os ditos kaijus, nome para “besta estranha” em japonês que introduz a primeira das reverências de del Toro e do co-argumentista Travis Beacham: a saga Godzilla e o seu principal criador, o japonês Ishirō Honda).
Para combater os dois cérebros destas bestas que procuram colonizar o planeta Terra é curiosamente necessária a junção de duas pessoas (dois cérebros humanos) para pilotar (só o verbo faz lembrar a verdadeira “batalha do pacífico”, tradução em português do filme) uma espécie de Transformers, chamados Jaeger do tamanho de… vá… estádios de futebol. O conceito é este: quanto maior a fusão de memórias entre os dois pilotos humanos, quanto mais fluído o seu “neural handshake” melhor a máquina será pilotada e maior serão as chances de derrotar os animaizinhos irritantes cujo hobby é destruir cidade atrás de cidade (se esse iminente sentimento de destruição lhe desperta particular interesse vale a pena dar o preço do bilhete pois há realmente muito edifício e carro a ir pelos ares).
Olhar para Pacific Rim é olhar para um objecto artificializado de amor e devoção do seu autor para com um universo vindo dos monsters movies e do feeling dos comics. Dir-se-ia que esse é o verdadeiro divertimento de del Toro: que os monstros e robots fiquem bem na figura. Mas acontece também uma coisa curiosa – a passagem desse “humanismo” autoral para a máquina, neste verdadeiro elogio do metal, permite fazer rimar a parafernália de “gadgets” de exibição (o já referido 3D, o Imax, etc.) com todos os mecanismos de funcionamento dos jaegers que apelam para conexões cerebrais, para a noção de uma second life onde a batalha se trava. Pois a realidade é filmada no interior dos robots, onde se joga o jogo. Curiosamente, na realidade, onde o jogo é manipulado pelos cérebros dos pilotos, os actores são reais e as “salinhas” estranhas. As batalhas onde visualizamos como se joga o jogo, impera o digital, e de gente nem sombra.
Se calha ao(s) herói(s) a salinha (como lhe chamo) onde manipulam o gamepad mostra um dado humano muito relevante. Se nos filmes de guerra a tónica estava na noção de heroicidade (o sacrifício do seu eu pelo bem comum) esse sacrifício hoje passa pela canalização do desejo para o jogo. Como refere e bem o crítico do Les Inrockuptibles, Jacky Goldberg há uma tendência visível nos blockbusters recentes [Star Trek Into Darkness (Além da Escuridão: Star Trek, 2013); Iron Man 3 (Homem de ferro 3, 2013); After Earth (Depois da Terra, 2013)] de ter, como em Pacific Rim, um herói assexuado, que não concretiza a sua aproximação ao sexo feminino. A expressão de Goldberg é qualquer coisa como: nestes filmes as mulheres observam de longe enquanto os homens “brincam às guerras como se brincassem com playmobils” (talvez a expressão jogar Xbox fosse hoje mais certeira).
Seja como for, essa “impotência masculina” em potência talvez possa ser vista como um sinal desse tal avanço do tecnológico sobre o humano. O interessante é que o filme de Del Toro não abdicando de ser o que é (robots contra monstros numa orgia pirotécnica de sons e imagens) e trabalhando muitas vezes num registo desmiolado (onde o trágico e o ridículo se confundem) nunca perde de vista que esse apocalipse é a metáfora (quiçá exagerada) para o fim de uma determinada relação entre o homem e o homem (já não há sexo, há partilha de memórias, há “neural handshakes”, mudam-se os tempos…) É afinal de contas essa relação que vai sendo pensada nestes objectos cinematográficos híbridos, eles próprios também a braços com a recomposição entre uma ideia de cinema e a sua concretização técnica.