Lemale et Ha’halal (Noiva Prometida, 2012) é o título original do filme da realizadora Rama Burshtein. É a injecção possível para o nosso alfabeto daquilo que serão símbolos e sonoridades a que não estamos habituados. Em português chama-se Noiva Prometida, em francês Le coeur a ses raisons, mas é o título americano que compõe o ramalhete (o buquê de noivado) significativo: Fill the Void. Juntando apenas os títulos que consigo compreender consegue-se ter à partida uma ideia do que é o filme: as reviravoltas de corações incertos (le coeur a ses raisons) ligados pela instituição de um casamento a ser (a noiva prometida) com vista a solucionar (preencher) um vazio (fill the void).
O filme começa com um plano muito aproximado de uma jovem naquilo que rapidamente percebemos ser um supermercado (pelas cores e pelos sons – das máquinas registadoras) e em segundo plano, mas fora de foco, uma mulher mais velha que indica à moça onde se encontra o seu pretendente – aquele que se casará com ela por conluio das famílias e por aceitação da menina. Assim pensa ela. O que este primeiro plano revela, como aqueles capachos que ocupam as entradas dando as boas vindas aos que os pisarem, é um trabalho de enquadramento trabalhadíssimo com vista a colocar sempre, cada personagem no seu mundo próprio. Cada homem e cada mulher aparece quase sempre sozinho no seu meio ou para os outros: com recurso a uma profundidade de foco mínima cada personagem parece estar presa nos poucos centímetros que a câmara de Burshtein admite, separada dos outros desfocados ou separados pela longitude do ecrã largo que coloca cada um em seu canto. Lemale et Ha’halal é um filme sobre isto mesmo, sobre o isolamento – daquele que se vive com muita gente em redor.
Há uma cena particularmente tocante, no sentido em que é a única em que este afastamento construído pela câmara se esfuma, resultado de um crescendo de intentos de aproximação quase sempre falhados entre a noiva prometida e o viúvo que a receberá (sim, porque é aqui que está o referido vazio – a menina não se casará com o jovem rapaz que desejava (?) mas sim com o marido da falecida irmã para que este não abale com o recém nascido sobrinho para a Bélgica em mais um casamento arranjado). Nessa cena, depois de esta ter recusado o pedido para o ver diferido pelo Rabi depois de se ter resignado a ele (ao pedido e ao marido), o pretendente e a menina conversam no pátio de noite. Ele ferido de orgulho e ela lamentosa por não ter convencido o pároco das suas vontades (que eram poucas). Digladiam-se com frases cortantes, ele aproximando-se mais e mais até que os seus arfares se misturam. Ela, intimidada, diz-lhe que estão demasiado próximos e ele, ressentido, diz-lhe que poderiam estar muito mais. Esta é a chave do filme, é por isso que todos se casam (ou todos se querem casar), porque só através do casamento a sociedade de judeus ortodoxos aceita a proximidade entre duas criaturas de deus.
A este respeito há, em adição ao trabalho de enquadramento, um trabalho de fotografia que desenvolve uma linguagem própria que sublinha esta mesma separação entre os sexos. Os homens estão sempre de negro, com as suas roupas escuras, as suas barbas ruças, os chapéus castanhos de pelo, enquanto que as mulheres essas estão sempre num luminosidade ofuscante (a lente enche-se de brilhos e reflexos que reflectem uma pureza feminina (?), reluzentes de jóias ou de vestidos coloridos. Aliás, isto é levado às consequências máximas, quando num mesmo espaço (a sala de jantar onde grande parte do filme decorre) a luz cria dois espaços separados por contra-campos de 180º. De um lado da mesa de jantar os homens (de negro) secundados por uma prateleira de madeira escura e carregada de livros de cor igualmente carregada. No campo contrário, a outra metade da mesma mesa onde se sentam as mulheres, mas agora temos janelas cheias de luz e reposteiros de materiais claros e levíssimos – esvoaçantes. Talvez o sublinhado seja exagerado, mas é talvez por esse mesmo gosto pelos píncaros, num paroxismo romântico, que a cena final do casamento é tão comovente.
O problema do filme, parece-me, é este desejo de mostrar uma comunidade por dentro, um certo tom demasiado explicativo dos hábitos e costumes daquela gente. Soa-me tudo programático, venham ver como nós somos e assim serão capazes de nos compreender.O que choca, tendo em conta que na construção de personagens os subentendidos, as elipses e os jogos com o espectador (que tem que ser capaz de somar e subtrair) são uns em cima dos outros; veja-se a nota ao rabi que nunca lemos ou a forma como os braços em falta da tia são mantidos em falta, isto é, nunca se expõe a deformidade da senhora, apenas se lida com ela naturalmente de tal forma que nós, convidados de honra, só nos apercebemos da situação quando já chegaram as sobremesas.