Crescer no campo influi no carácter de cada um, em mim de certeza que tomou parte importante – talvez mais por contradição, mas isso é outra história. Lidar com a ruralidade de frente é diferente de ler os longos artigos do P2. Isto os portugueses letrados e iluminados descobriram com choque (e riso torcido) ao longo desta campanha eleitoral autárquica que decorre até ao final do mês. As redes sociais encheram-se de cartazes divertidos pela forma como revelavam as lacunas profundas na capacidade de comunicação dos seus executantes ou pela falta de consciência do ridículo da composição ou do texto. Muitos pensaram que era brincadeira, montagem, graçola, não imaginavam que houvesse um país assim, mas ele está cá e quando nos rimos dele rimo-nos de nós também. A portugalidade é uma noção assustadora (pela evocação fascista que o termo recorda), mas, como a cor dos olhos, temos que viver com ela – mesmo que não condiga com os sapatos Louboutin.
Disto estiveram muito conscientes as pessoas responsáveis pelo sucesso de La cage dorée (A Gaiola Dourada, 2013), que até ao momento conseguiu 649560 espectadores (mais que qualquer filme nacional dos últimos dez anos), sendo, até ao momento, o décimo segundo filme mais visto desde a informatização do ICA – em 2004. Parece-me evidente que o grande trunfo do filme foi saber apelar à população que não vai ao cinema frequentemente (que o faz apenas esporadicamente, uma vez por ano se tanto). A Gaiola Dourada tem esse efeito de evento por tratar de personagens que estão na génese da população portuguesa: os emigrantes (mais ainda os que foram para França). Não há português que não tenha uma história de emigração na família (recente ou já antiga, pouco importa) e, por isso mesmo, funciona o filme como um flecha no coração dos espectadores que se emocionam e se divertem com aquelas personagens que, se não são parecidas consigo, são-no com algum familiar, amigo ou vizinho. Tive a oportunidade de experimentar uma sessão a abarrotar num multiplex “rural” onde a sala cheia ria e lacrimejava em coro ao som de um foda-se ou de um fadinho (pela glamorosa Catarina Wallenstein). Independentemente das qualidades do filme (que são muito reduzidas: a escrita do argumento fecha mal as pontas e cria conflitos sem razão de ser, a câmara perde-se em gruas loucas e, quando não o faz, é apenas televisiva nos campos e contra-campos triviais), o ingrediente especial que faz do filme de Rúben Alves um êxito de bilheteiras é este patriotismo de trazer ao peito – em forma de camisola da selecção e bandeira nacional esfarrapada na janela.
Esta é a grande lição a tirar por aqueles que estão interessados em fazer cinema comercial em Portugal. Até hoje, os realizadores e produtores que sonham com o cinema português que vende são os mesmos que raramente sucedem em oferecer ao público algo que lhe interesse. Em parte, o falhanço redondo de um filme como A Teia de Gelo de Nicolau Breyner [com menos espectadores que O Gebo e a Sombra (2012)] ou de O Bairro (2013) de Jorge Cardoso, Lourenço Mello, José Manuel Fernandes e Ricardo Inácio [filme da Plural, repetindo o esquema de produção de Morangos com Açúcar – O Filme (2012), mas desta vez sem a marca – com menos espectadores que Sangue do meu Sangue (2011)] ou de RPG (2013) de Tino Navarro e David Rebordão [com menos espectadores que Tabu (2012)] prende-se com o facto de quererem, em parte, rejeitar a sua origem (cultural e, em particular, fílmica). Todos são casos de filmes que estão mais interessados em repetir os modelos do cinema americano (são todos thrillers) e, mais que isso, apresentam-se como tudo menos portugueses – nomeadamente RPG que é falado em inglês para um público estrangeiro que nunca terá (já que os seus valores de produção são ridículos) ou A Teia de Gelo que foi filmado em duas versões (uma em português, outra em inglês), de novo desprezando a força do seu público natural.
O espectador-tipo de A Gaiola Dourada será o espectador que vai ao cinema não para ser desafiado mas para se rever no ecrã, para isso a comédia é o género ideal. Dá-se também o caso de a deslocação ao cinema ser um acto de retaliação política – Call Girl (2007) pela questão da corrupção municipal (e a Soraia Chaves pouco vestida) – ou futebolística – não é pois por acaso que Corrupção (2007), o filme sem autor, tenha sido igualmente um sucesso. Mas, acima de tudo, os filmes portugueses com sucesso são aqueles que se assumem na sua ‘portugalidade’ e essa é a maior lição que os comerciantes falhados do cinema nacional devem aprender.
Mas A Gaiola Dourada é um caso paradigmático de outras duas coisas, a elencar: a distribuição/marketing e o enquadramento de produção. Tendo-se estreado em França a meio do mês de Maio (conseguindo em pouco mais de um mês mais de um milhão de admissões), a distribuição portuguesa resolveu (e bem) guardar o filme até ao início de Agosto (o mês da emigração), esperando assim pela disponibilidade do público e dando tempo à crescente antecipação que se foi construindo (os actores e o realizador desmultiplicaram-se em entrevistas e o filme surgiu, de uma forma ou de outra, em todos os meios de comunicação). Isto levou a que o filme, no seu fim-de-semana de estreia, fizesse mais espectadores que o filme português mais visto de 2013 [Comboio Noturno Para Lisboa (2013) que já fez mais de 58 mil espectadores, enquanto que o filme protagonizado por Rita Blanco e Joaquim de Almeida fez nos primeiros três dias de exibição mais de 63 mil espectadores – um recorde]. Uma enchente tão grande nos primeiros dias garantiu a melhor publicidade, o passa-palavra, e assim, em menos de um mês, o filme já era o mais visto deste ano. Analisar o calendário de estreias e marcar um dia é outra grande lição, desta vez para a distribuição, que está mais habituada a baralhar os filmes e as datas, a sobrepor estreias e a concentrar filmes concorrentes para que nenhum possa vingar.
Por fim, há que perceber que este é um filme de produção francesa, sendo um filme francês de facto. Isto traduz-se de duas formas: uma, um orçamento de 7 milhões de euros – coisa inimaginável no contexto do cinema português, onde os filmes mais caros não chegam aos 3 milhões -; outra, ao ser introduzido no mercado português como objecto estrangeiro, retira-se-lhe o estigma que o público português tem para com os seus filmes. Ou seja, embora A Gaiola Dourada torne evidentes uma série de insuficiências e lacunas do mercado e da produção nacional de cinema, é certo que este é um caso não reproduzível no contexto português. A este propósito, talvez seja importante relembrar um filme que se estreou discretamente nas salas portuguesas no final de 2011, de nome Les femmes du 6ème étage (Os Encantos do 6º Andar, 2010). O filme de Philippe Le Guay (com um orçamento idêntico ao filme de Rúben Alves, os mesmos 7 milhões) trata também da emigração, desta vez a espanhola, e ao contrário de o fazer na actualidade, fá-lo nos anos sessenta, quando a ménage era feita pelas emigrantes espanholas fugidas durante a guerra (e que foram sendo substituídas pelas empregadas lusas, que são agora substituídas pelas de Leste). Embora o ponto de vista desse filme fosse o do patrão, a exploração dos nacionalismos era muito evidente (o mesmo desejo de voltar à casa de partida, as mesmas dificuldades em deixar o país de acolhimento, as mesmas piadas com os sotaques e com a personalidade latina) e o filme foi um enorme sucesso, com mais de 2 milhões de espectadores em França e mais de 23 milhões de bilheteira pelo mundo fora – A Gaiola Dourada fez até ao momento pouco mais de 10 milhões entre Portugal e França. Serve isto para enquadrar o sucesso do filme de Rúben Alves apenas como comedido e serve também para exemplificar que o seu filme é – não descurando a dedicação ao projecto – um filme de indústria como tantos outros. E isso – a indústria – é definitivamente algo que não faz parte do panorama do cinema português.