A produção cinematográfica funciona muito por modas. Agora parece que a moda são os monarcas. Depois do sucesso dos coroados The Queen (A Rainha, 2006) e The King’s Speech (O Discurso do Rei, 2010) – ambos de produção britânica -, agora são as princesas que atraem as massas (as que assistem e as que pagam) com Diana (2013) e o ainda por estrear Grace of Monaco (2014). Na verdade, qualquer figura de poder agrada aos engenheiros fílmicos que orquestram as produções de cada temporada cinematográfica (os presidentes eleitos e as suas esposas não devem ser desmerecidos). Mas não é esse o caso de Captain Phillips (Capitão Phillips, 2013), protagonizado por Tom Hanks, que aborda uma outra moda que tem muito (pouco) de real(eza): os piratas somalis.
Sobre os senhores piratas já vimos The Expendables (Os Mercenários, 2010), que começava exactamente com um resgate de um navio ocupado por esses pescadores de metralhadora; a mesma produtora já anunciou a feitura de um filme exclusivamente dedicado ao tema de nome High Value Target, que descreveu como “Black Hawk Down meets The Raid: Redemption”. A juntar a estas duas produções americanas, estreou-se recentemente nas terras da liberdade o filme dinamarquês Kapringen (A Highjacking, 2012) – e não estou a considerar os vários documentários sobre piratas (sem perna de pau) que têm vindo a pulular, especialmente no reino da Dinamarca. É irrefutável que estes eventos sejam altamente cinematográficos e, portanto, é mais que natural que as várias produções surjam (e o façam em simultâneo). O caso de Captain Phillips está na onda do filme dinamarquês, isto é, um drama sobre raptados e raptores onde todos têm motivações válidas e todos se debatem com as suas escolhas, onde se recusam os heróis fáceis e os vilões de pala no olho.
Mas antes de me demorar sobre esses assuntos, façamos um desvio sobre aquilo que é o conjunto da obra de Paul Greengrass. Com United 93 (Voo 93, 2006), o realizador mais frenético das Américas (?) deu ares da sua graça e, se há quem se enjoe com as maluqueiras das suas câmaras ao ombro, sempre saltitantes (e se irrite com a sua incapacidade de descrever o que quer que seja de forma simples), a mim sempre me pareceu eficaz o dispositivo convulso na criação daquilo que é o pão para a boca do realizador, a (alta) tensão. Os filmes de Bourne e Green Zone (Green Zone: Combate pela Verdade, 2010) vieram confirmar isso mesmo (e demonstraram que o realizador era capaz de adaptar o formato à construção de personagens – algo totalmente ausente em United 93 –, ainda que sempre de forma muito ténue) e inauguraram uma versão contemporânea daquilo que podemos apelidar de cinema de acção epistemológico, no sentido em que é preciso lutar para saber a ‘verdade’ [cujo maior exemplo talvez seja Total Recall (Desafio Total, 1990)]. Algo particularmente curioso em Green Zone (talvez o seu melhor filme) é o facto de retratar uma situação onde não há bons e puros de espírito: todos são maus, todos se atraiçoam e são atraiçoados e o único farol da virtude é um mocinho impotente, Matt Damon, incapaz de perceber onde está e o que está a fazer – ele apenas quer descobrir a ‘verdade’.
Agora com Captain o resultado é exactamente o oposto, não há um vilão, um mauzão, alguém que aja por motivos egoístas ou mesquinhos. Todos têm motivos para fazer o que fazem, o espectador deve simpatizar com todos, todos são ‘bons por dentro’. O resultado é uma espécie de thriller de auto-ajuda sob a cúpula d’ O Segredo onde, se quisermos algo com muita força, ela acontecerá (sim, porque o pirata somali diz, uma e outra vez, que tudo vai correr bem e todos vão ganhar muitos dólárés, quando sabemos logo desde o primeiro segundo do filme que esse não será o caso). Ou seja, por um lado a tensão – a única coisa que conferia interesse aos filmes de Greengrass – desfaz-se a partir do segundo acto quando os piratas passam a ser mais que bonecos (e portanto empáticos, coisa que dificulta o medo irracional), por outro, contraria-se aquilo que elevara Green Zone acima da mediania dos outros intentos – o facto de não haver gentes bem intencionadas ou de bom coração.
Falava no outro dia com o colega walshiano Luís Mendonça e descrevia-lhe isto que vos acabei de escrever, ao que ele conferiu um brilhante nome-resumo: anti-maniqueísmo. No sentido em que, de forma profundamente forçada, se obriga à profundidade as várias personagens, quando essa profundidade não era desejada. Pior ainda, esta dimensão reduz a eficácia do filme (por que motivo há o filme de se estender para lá das duas horas e um quarto?). Não foi pois por acaso que referi o filme de Stallone. Nele o esquematismo dos personagens [como diz a certa altura uma personagem no recente Kick Ass 2 (Kick-Ass 2: Agora é a Doer, 2013): não são estereótipos, são arquétipos!] é total. Referi-o porque aí o maniqueísmo serve para dar espaço a uma acção cavalgante e, mais que isso, a um trabalho de câmara que revela o inteligente realizador que é Stallone (penso na conversa entre o próprio e Mickey Rourke, toda filmada no espelho, porque eles já não são gentes, são apenas reflexos de gentes), tudo coisas que Greengrass não soube perceber – nem filmar.