Antigamente, a televisão era uma rampa de lançamento para o cinema, uma oportunidade, tantas vezes gorada, de subir na vida audiovisual, para actores, argumentistas, realizadores e demais cineastas. Desde há algum tempo, principalmente nos Estados Unidos, essa situação inverteu-se. Hoje ninguém estranha que Woody Harrelson e Matthew McConaughey protagonizem uma série de televisão (True Detective) – se o primeiro veio de uma sitcom (Cheers), um dos raros actores televisivos dos anos 80/90 a conseguir saltar a barreira para o cinema, o último, a viver um dos melhores períodos da sua carreira cinematográfica, é um caso exemplar dessa inversão. No entanto, décadas antes da “Idade de Ouro” televisiva, os conceituadíssimos Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock, Rainer Werner Fassbinder e Ingmar Bergman já realizavam filmes e séries para a televisão, parecendo desconhecer a menoridade da dita – talvez a divisão entre classes audiovisuais não fosse tão marcada na altura. O sueco, a dado momento, abandonou mesmo o cinema, virando-se exclusivamente para a televisão. E, embora muitos dos telefilmes que realizou fossem depois exibidos em sala, a sua origem é inegável.
Na sua autobiografia Lanterna Magica, Ingmar Bergman escreve sobre o profundo cansaço que a rodagem de um filme ou a simples antecipação da mesma lhe causavam, tanto que abortou um projecto que tinha por julgar não ter idade para o concretizar. Bergman terá preferido continuar a fazer televisão pelas mesmas razões que levaram Hitchcock a filmar Psycho (Psico, 1960) com a equipa de Alfred Hitchcock Presents: os custos eram menores, as equipas mais pequenas e, por conseguinte, a pressão mais reduzida. Contudo, racionalizando desta maneira a decisão do sueco, apenas concorro com o discurso de que a televisão é uma arte menor. A televisão, como qualquer coisa, é o que fazem dela. Tem a sua linguagem própria, diferente da do cinema (julgo até que a suposta menoridade da televisão se deve à incompreensão deste facto), e ou se sabe ou não usá-la. Será talvez ir longe de mais escrever que Bergman, mais do que saber usar muitíssimo bem a linguagem, encontrou na televisão o formato ideal para a sua obra audiovisual (socorro-me desta palavra porque não me ocorre outra mais certeira), mas foi exactamente isso que Manuel Cintra Ferreira fez na folha da Cinemateca referente a Scener ur ett äktenskap (Cenas da Vida Conjugal, 1973), a versão filme da série de seis episódios com o mesmo nome realizada para televisão sueca. E, perante a série em questão, é muito complicado não concordar com a afirmação.
Sendo uma obra-prima tout court, Scener ur ett äktenskap, como obra-prima televisiva, é demonstrativa das potencialidades da televisão. E o mais curioso é que, contrariando o que eu defendi noutras edições deste Em Série, de que estaria próxima do romanesco, a televisão ajusta-se perfeitamente ao teatro de câmara que Ingmar Bergman já andava a fazer no seu cinema. Em Scener ur ett äktenskap, o pequeno ecrã preenche-se dos rostos dos actores que o sueco perscrutava naqueles intensíssimos grandes planos ou naqueles zooms em direcção à alma que jamais deixariam de ser imagens de marca suas e do director de fotografia que melhor compreendeu esta linguagem: Sven Nykvist. Repare-se como o plano geral serve tão-só como pontuação, uma pausa antes de nova investida de acidez. O ecrã pequeno deu também a Bergman uma espaço mais concentrado, o “palco” certo paras os ferozes e cruéis jogos de massacre que pretendia encenar. Três episódios de Scener são efectivamente cenas – dois actores no mesmo cenário durante cinquenta minutos (sem exteriores, sem saídas, sem escapatória) -, feitas mais claustrofóbicas pela exiguidade da dimensão da imagem. É como se o formato do televisor enclausurasse o casal desavindo que protagoniza a série.
Se os dois primeiros episódios representam uma domesticidade mais ou menos agradável (em que qualquer casal não se importaria de se rever – tanto que dá origem a uma reportagem televisiva, “televisão dentro da televisão”) e o último abre as portas a uma ternura indizível (ainda que muitas vezes repetida) e finalmente se entrega à comédia negra (isto é, o amor) de que, “a meio da noite numa casa escura algures no mundo”, aquela carranca amarela (ali em cima) se ri, os outros três, episódios-cenas que se bastam a si mesmos (no sentido de que funcionam como mini-peças), são um castigo tanto para Marianne (magnífica e belíssima Liv Ullmann) e Johan (fenomenal Erland Josephson), como para o telespectador. Cada um é terrível à sua maneira: Paula, em que Johan confessa a Marianne que ama outra mulher e pretende fugir com ela, é quase insuportável, desde a incredulidade dela até à secura dele, das súplicas dela ao rancor dele, da fotografia da nova namorada à piada sobre a empregada; Tåredalen, aparentemente mais apaziguado, mostra a tepidez da dor funda instalada e, como pequeno alívio, uma extraordinária sequência de fotografias de Marianne, que são obviamente fotografias da própria Liv Ullmann, que, como toda a gente sabe, foi namorada de Bergman, do qual teve um filho (portanto, um irrepreensível mindfuck); e Analfabeterna é a explosão de todos os ressentimentos e frustrações na lavagem de roupa suja mais suja da história, de uma violência assustadora. (Entre Paula e Analfabeterna, é quase impossível escolher qual o melhor pedaço de televisão alguma fez feito.)
A televisão de Bergman, sendo tão próxima de um certo tipo de teatro, não desmerece a palavra. Só que, por muito bem falantes que sejam as personagens do sueco (e são-no, bastante), raramente dizem alguma coisa de jeito. São pretensiosas, inoportunas, condescendentes, racionalizam, filosofam, desmentem-se, enganam-se, enganam, corrigem-se, mentem, ferem, bajulam, provocam, matam. Quero crer que o mal-entendido de que Bergman é só para intelectuais, vulgo pessoas que pensam, surge daqui, da proeminência dos diálogos enganadoramente muito bem estruturados, quando o que revelam é a absoluta desorientação das personagens. É que esta porcaria toda não vem da razão ou, se vem (e é uma hipótese assustadora), estamos bem arranjados. Ainda mais do que o sexo e a violência física (armas temíveis em qualquer relação), a palavra é um instrumento perigosíssimo, para quem a diz e para quem a ouve. Quem não reconhece a acção incessante de Scener ur ett äktenskap, feita de rostos e palavras, além de não ser intelectual, não é muito inteligente.
Já agora, enquanto está a ler este texto, aproveite para olhar estas imagens das Ilhas Faroé.