Poucos segundos passam entre o primeiro plano de Compliance (Obediência, 2012 ) – onde vemos uma bandeira americana por entre as garrafais letras que nos avisam da ‘natureza’ do que vamos assistir – e ouvirmos um personagem dizer You’re fucked without bacon. Sabendo que há neste filme a intenção de produzir uma alegoria sobre a América profunda, não custa muito perceber que nada de bom se augura, isto é, se é mais que sabido que tudo fica melhor com bacon, quando este escasseia todos ralham e ninguém tem razão – mas já iremos aos poderes maléficos do toucinho fumado, ou da falta dele.
Pondo a questão noutros termos, Compliance guarda em si a chave da sua leitura, já que é também um filme ao qual falta bacon. Mas mais que isso, é um filme do qual esperávamos o sabor fumado dessa charcutaria e nos vimos gorados a tal delícia – doí portanto mais pela desilusão de comermos uma refeição rápida sem qualquer nuance de condimento, quando esperávamos um fast food gourmet…
Isto de falar por enigmas dá pano para mangas, mais ainda quando estes envolvem carnes processadas (veja-se a eterna dúvida existencial sobre o fiambre da perna extra), no entanto centremos-nos no essencial, o filme. A muleta dos factos verídicos é já coisa a que nos fomos habituando e a verdade é que muito bom cinema tem sido feito a partir deles – esse não é o problema -, a questão prende-se no facto de o filme de Craig Zobel se fundar firmemente nesse apoio para não mais o largar. Isto é, Compliance é um fácil docudrama (vale-lhe um par de planos sequência dignos, mas são mesmo só dois) que crê tão piamente na força da sua trama ‘verídica’ que pouco mais faz do que representar os factos de forma mecânica e televisiva – aliás, este mesmo caso deu origem a um episódio especial de Law and Order (Lei & Ordem).
Mas que caso é esse? Não desespere, caro leitor, pode ler tudo na página da Wikipedia sobre o esquema das partidas telefónicas que envolviam buscas a cavidades ou, de forma mais didáctica, ver o filme, que está lá tudo explicado. Isso é o que Zobel faz, reproduz ponto por ponto os acontecimentos do dia em que uma chamada telefónica a fazer-se passar por agente de autoridade a uma cadeia de comida rápida virou assédio sexual; lê-se os vários tópicos da enciclopédia livre e não custa identificar nas descrições linhas de diálogo do filme – I have done something terribly bad.
Tomara que todos os males de Compliance fossem a sua inócua reprodução de factos (ainda que pensar no que uma história destas podia ser nas mãos de De Palma – aquelas câmaras de vigilância, ele chamava-lhes um figo… engano-me, uma tira de bacon – ou mesmo num desses realizadores que vêm retratando a América rural desencantada como Sean Durkin, Lance Hammer ou Debra Granik – qualquer deles traria um olhar que fosse), o grande mal de Craig Zobel é a forma como tenta (sem sucesso) transformar este fait divers criminoso num considerando sobre a obsessão securitária dos americanos. Isto porque, embora nos incomode – no bom sentido – a premissa do filme (os primeiros minutos ardem no peito – e podíamos olhar para Compliance como mais um exemplo desse cinema de género independente que se vem fazendo, onde tudo se constrói no sentido de colocar o espectador numa angústia desesperante. Veja-se outro filme onde a premissa já guarda em si o filme, Cheap Thrills (2013), também com Pat Healy, e perceba-se o significado da expressão fast food gourmet), logo o incómodo passa a desespero, desespero por um realizador que permite que os seus personagens se submetam a situações cada vez mais degradantes (tudo a bem dos ‘factos verídicos’) e onde a câmara tanto filma com a maior competência distante, como se coloca numa posição de superioridade levando o espectador a perguntar-se como raio é que eles não percebem que aquilo é uma falcatrua?
Este é o grande problema, um realizador que não é capaz de proteger os seus personagens de si. Um realizador que tem prazer (como o telefonista) em deixar-nos imaginar o pior (o broche que fica só subentendido, a inspecção vaginal cabe numa elipse, as palmadas que vivem no fora de campo, o travelling e os enquadramentos que escondem a pentelheira da menina). Um realizador que nos faz questionar a inteligência das vítimas para depois encerrar o embrulho num acto de pura pulhice, em que vira o objecto da atenção para o jornalista que faz a pergunta que qualquer pessoa se fez durante todo o filme… Falta-lhe portanto bacon, gordura, sujidade, porqueira, falta-lhe no fundo uma posição que o comprometa, que o prenda a um olhar, e não esta posição de cata-vento que ora zomba com a situação inverosímil, como depois julga moralistamente os que zombaram com ele.