Ontem, à hora em que escrevo estas palavras, os meus olhos encontravam-se mergulhados na exposição O Museu Imaginário de Henri Langlois, apresentada na Cinemateca Francesa. No mês em que este site homenageia a herança de João Bénard da Costa, falar de Langlois e da sua importância não estará muito longe.
Penso no que teria sido o mundo sem Langlois, aquele que, com os seus olhos, viu que as películas de filme não eram imagens para se deitar ao lixo, tal como os seus estúdios faziam, mas destinadas a serem mostradas ao mundo para sempre. Alguém que viu, no cinema, a possibilidade pela qual o homem tanto ansiava: criar algo próximo do sonho, reproduzir o tempo, estendê-lo, cortá-lo, entregá-lo à capacidade infinita dos nossos sentimentos. Teríamos perdido muitas obras-primas mas, sobretudo, teríamos perdido os nossos sonhos, a nossa imaginação, esse espelho que nos diz que tudo aquilo que vimos a vinte e quatro imagens por segundo, numa sala escura, estava afinal escondido em nós, homens e mulheres maiores que os seus corpos, destinados a amarem-se na projecção de sentimentos maiores do que o que existe a olho nu.
Lembro-me de quando entrei na Cinemateca Portuguesa pela primeira vez, aos dezoito anos, e vi uma projecção de Cléo de 5 à 7 (Duas Horas da Vida de Uma Mulher, 1962) de Agnès Varda, ainda no Palácio Foz (estava a Barata Salgueiro em obras de renovação), uma sala que me transportava, pela sua época, e no meu imaginário, a essa outra que tinha existido em Paris, berço da cinefilia e do cinema da geração de Varda. O meu percurso na Cinemateca era feito do cruzamento entre ciclos: raramente vê-los de forma integral (com algumas excepções próximas do meu coração) e cruzar os seus filmes, as suas épocas, os silêncios e cores. Um pouco como Langlois dizia para fazer, estabelecendo pontes entre obras que, à partida, seriam opostas, mas que, por serem humanas e olhavam de volta para o mundo, encontravam os seus pontos comuns. O maior deles todos éramos nós – os espectadores. A história do cinema, por sua vez, era também a nossa história do cinema, a única que existia.
Se tinha sido Langlois a puxar por esse imaginário, eram as folhas de Bénard da Costa, à saída de cada sessão, que me fizeram entender que os nossos olhares nunca estão sozinhos – enriquecem-se sempre com o outro. As suas palavras, por vezes, faziam-me ver filmes que não tinha visto dentro da sala. Outras vezes, pegavam num ponto, numa emoção, e faziam-me crer que tudo no filme girava à sua volta. E sobretudo, entender os pequenos detalhes, as imperceptíveis ligações entre tudo o que era filmado – pois é neles que se revela a existência do que é divino e invisível aos olhos.
O que teria sido sem essas palavras, sem esse veículo que prolongava o meu olhar para fora da sala de cinema e me fazia ver a realidade sob o seu movimento? Certamente me teria apaixonado menos vezes na sala ou amado ainda menos fora dela. Era um tempo sem tempo: uma infância dentro da idade adulta, uma inocência eterna dentro de uma descoberta sexual. Todos os passos feitos dentro da Cinemateca, todas as palavras lidas nas folhas de Bénard tinham o seu elo com o que existia na rua e dentro das suas casas. Mais do que uma forma de ver o mundo, uma forma de estar nele por descobrir, em mim, essa capacidade de ver para além do olho nu.
Passados vários anos, ainda tento responder a esse movimento perpétuo, criado a partir de cada palavra lida e cada imagem vista. Play it again, Sam. Esse amor nunca se esquece.
Esta é a última crónica do Movimento Perpétuo. Agradeço a todos os que acompanharam as suas palavras.