Começo por chamar as palavras do meu colega Luís Mendonça numa das suas crónicas Civic Tv: “Bazin escreve um artigo para os Cahiers du cinéma, «La mort d’Humphrey Bogart», onde procura fixar a assinatura da sua metapersona mítica. Para o crítico francês, Bogart vai trabalhando, de filme para filme, numa espécie de progressiva internalização das ideias de decadência e de morte, como que chamando a si, precisamente, a sua própria decadência e a sua própria morte. Ele foi o epítome da “imanência da morte” e o admirável e venerável reflexo da nossa própria decomposição.” Sirvo-me desta ideia de actor que precede os seus personagens e pós-cede a sua própria natureza para situar Liam Neeson nessa copa de indivíduos que já não existem fora do ecrã e que no ecrã nos remetem (sempre) para outros ecrãs e para as memórias que nos ficaram deles. Só que se para Bogart essa atitude passa pela morte como ponto de fuga, em Neeson essa fuga não se dará sem um enxerto de porrada no fugitivo.
Continuando nesta ideia de “metapersona fílmica” há um par de cenas em A Walk Among the Tombstones (2014) de Scott Frank que revelam que talvez o melhor que existe no filme não seja de Frank mas do próprio Neeson – esta é uma obra que funcionaria exemplarmente como caso tipo daquilo que é a política de actores, isto é, quando a presença de um actor condiciona narrativa e formalmente o filme de maneira a que pelo actor se introduzem temas, obsessões e opções estéticas que o acompanham de filme para filme. Uma dessas cenas é particularmente curiosa pela referência directa que faz (ainda que provavelmente inconsciente) àquilo que é Neeson e o seu peso frente à câmara: dois homens dialogam, um deles é o investigador Scudder (Neeson), o outro um homem gordo com uma faca na mão que o ameaça de morte depois de este lhe ter descoberto um segredo criminal, Neeson responde algo como “Consigo tirar-te essa faca e espetar-ta no pescoço, não acreditas?” O que interessa é o “não acreditas?” porque é nele que se estoira a suspensão de verosimilhança e se pisca o olho ao espectador. Primeiro porque nós sabemos que o senhor Liam é mais do que capaz de fazer tal proeza violenta, segundo porque o personagem não o sabe tão bem como nós e neste descruzar de conhecimentos gera-se uma tensão – nós esperamos que o esfaqueamento aconteça para nosso gáudio sanguinolento e o personagem teme que a ameaça se concretize (ficando na dúvida se se trata de apenas uma ameaça ou se o risco que corre é real). Tal momento só é possível porque Liam Nesson já sacou a faca das mãos de muitos e variados gordos e já lhas espetou, qual talhante, em seus tenros pescoços sumarentos. De forma semelhante o mesmo acontece sempre que Neeson pega num qualquer auscultador de telefone e dialoga com raptores (no acto final do filme). Somos imediatamente remetidos para a série Taken (Busca Implacável, 2009) que vai já na direcção do seu terceiro tomo.
Mas a sensação de que este é um filme em que é o seu actor que dirige a acção ganha toda uma nova proporção quando notamos que Scudder/Neeson dirige os outros personagens/actores como mestre de cena, tu ficas aqui e esperas, tu avanças quando eu te chamar, tu pára de me seguir, e por aí fora. Mas se isso não bastasse, por vezes sente-se (e aqui admito que deva ser abuso de olhar) que é o próprio Neeson quem comanda a câmara e os seus movimentos, por exemplo, num dos primeiros planos um travelling lateral inicia-se exactamente após Neeson bater no balcão do restaurante com a mão, como que dando a marca sonora ao operador para que este o acompanhe até à mesa.
Há então uma marca actoral em Neeson nestes últimos filmes (e que talvez seja apenas a expressão daquilo que são as narrativas trágicas ao longo dos séculos da nossa sociedade – ainda que em Nesson essas temáticas parecem renovadas por uma aspereza qualquer) que se poderá resumir como a limitação do mal pela absorção (como havia também em Eastwood actor, mas já lá iremos…). Ou seja, ao contrário das figuras crísticas que espiam os pecados do mundo, o trágico em Neeson está no facto de este salvar o mundo cometendo os pecados que esse mundo não quer/pode cometer (para que esse mundo não os tenha que cometer…). E o divino em Neeson está no facto de não ser pela morte que os pecados se espiam mas sim pela força de seguir em frente apesar de tudo – mesmo depois de ter que espancar quem teve, mesmo depois de ter que torturar quem teve, mesmo depois de ter que matar quem teve. Mesmo depois de tudo isso Neeson continua. E nós continuamos também, livres da memória de espancar, torturar ou matar. Porque ele nos salvou de tais horrores, cometendo-os ele, para bem dos nossos pecados (e para mal dos seus).
Por tudo isto a carreira de Neeson chegou a um ponto curioso, por um lado atingiu um reconhecimento que não lhe era costumeiro (que certamente virá aliado a um proporcional enchimento da carteira), por outro o actor dramático que conhecemos dos anos 90 começa cada vez a minguar mais (porque, lá está, o peso do actor precede-o e desequilibra num só sentido as obras em que participa). O que se vem notando é pois que poucos são os realizadores que conseguem lidar com esse desequilibro e ainda assim manter-se à proa das suas obras. Scott Frank não é certamente um desses realizadores. Talvez isso se deva a esta ser apenas a sua segunda incursão na realização depois de uma longa carreira como argumentista, coisa que se sente, o filme perde-se em desvios narrativos e em soluções típicas de argumento muito martelado e moralista (não às armas, não à vingança, não à droga e ao álcool) – ainda que a sequência pré-genérico seja particularmente bem conseguida (Frank enquadra em profundidade o distintivo policial e dois copos de whisky em primeiro plano resumindo aí toda a história de origem do seu personagem, ainda que depois disso não mais largue a questão do alcoolismo) e o gosto por janelas e espelhos revele um olhar apurado em certos enquadramentos. Jaume Collet-Serra e Joe Carnahan por seu lado são realizadores que conseguem, sem sombra para dúvidas, esse contra-balancear: veja-se The Grey (2011) ou o recente Non-Stop (2014) caso se sinta desconfiança para com estas minhas palavras.
Há no entanto em A Walk Among the Tombstones uma componente cinéfila que não consigo identificar facilmente a origem: não sei se virá de Frank, se Lawrence Block (o autor do romance que o filme adapta – também porque não o li…), se de Mihai Malaimare Jr. [o director de fotografia que se vem especializando em fazer filme fora do seu tempo como The Master (O Mestre, 2012) ou os últimos Coppola], se do próprio Neeson. De qualquer forma essa componente é inultrapassável. Toda a primeira sequência vive sobre o peso do homem sem nome dos filmes de Eastwod-Leone (a mesma gabardina, a mesma pistola de cano longo, os mesmos furos de bala na indumentária) que se torna evidente no clímax final, mexican standoff nocturno entre lápides – sim, estão e bem a pensar no Il buono, il brutto, il cattivo. (O Bom, o Mau e o Vilão, 1966). Nos entremeios o filme vira algo entre o polícia sem lei de Dirty Harry e o polícia (sem lei) já tolhido pela idade de Gran Torino (2008) [ou de The Rookie (Rookie – Um Profissional de Sucesso, 1990)] – com a passagem de testemunho, com o apadrinhamento de um jovem imberbe, com o sacrifício por ele. E se Eastwood é certamente a mais forte das influências, não podemos esquecer um certo cinema detectivesco dos anos 70 e 80 – de onde Eastwood-realizador não se exclui – com um telhado cheio de pombos para quem quiser ver nele a mais triste cena do filme.