“It can be a challenge to be inspired, and to let those inspirations show while owning the film“. Nesta afirmação aparentemente banal da realizadora Jennifer Kent esconde-se aquilo que eleva The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) a grande cinema e revela a mestria da sua realizadora. Isto porque esse dilema que Kent identifica entre a inspiração e a autoria não só é gerido elegantemente ao longo do filme, como, mais importante, se manifesta metaforicamente na própria trama. É este trabalho a dois níveis sobre a cinefilia que conquista o espectador atento, ou para pôr em termos do próprio filme, o possuiu para não mais o largar – You can’t get rid of the Babadook.
A realizadora australiana tem em The Babadook a sua longa de estreia (prolongando a sua curta-metragem Monster (2005)]. É normal (para não dizer típico) encontrar em primeiras obras a tendência para o exibicionismo, há uma fúria para mostrar de onde se vem e o que se quer fazer, citam-se as figuras de proa e enche-se as obras a ponto do estoiro. Kent não é propriamente imune a isso – o filme enche-se de citações directas que vão de Méliès a Mario Bava – a sua arte passa por saber incluir essas mesmas referências na matéria do filme tornado-as suas ainda que não omitindo a origem delas. Esse equilíbrio do “mostrar as inspirações enquanto se domina o filme” é coisa verdadeiramente estóica (em parte por ser profundamente sincera – nunca se sente que se usam os grandes como caução artística – e em parte por ser cada vez mais raro no cinema que se vai mostrando onde a mastigação torna tudo em papa uniforme).
Note-se então: há em The Babadook três veios principais (1) fazer um cinema onde o efeito passa pela dissimulação/prestidigitação da câmara e da montagem naquilo que se vem conhecendo como um regresso de algum cinema de terror ao primitivo (2) construir uma história familiar onde se questionam as hierarquias de poder/protecção entre uma mãe e um filho menor (3) elaborar uma fábula em redor do monstro que em nós sempre transportamos e o qual temos que aprender a (con)viver.
Portanto, no primeiro caso o que está em cima da mesa é a construção de ambientes e do terror pelos meios mais básicos do cinema (alguns deles até mesmo artesanais como a animação stop-motion) e daí torna-se evidente a citação a Méliès, pai do cinema como espectáculo e da montagem como jogo de enganos. Mas se percebemos a inspiração, o maravilho é perceber como Kent infecta esses mesmo filmes de Georges Méliès com o seu arrepiante Babadook tomando como literal a sua própria tese de dominar as referências. Porque nesse ponto os filmes de Méliès já são de Kent…
No segundo ponto o exercício é de novo multíplice na sua leitura, é que se a realizadora de facto conta uma história onde a perturbação – assombrada – da mãe põe em risco o próprio filho (e aqui não há nada de novo, vejam-se os últimos dois títulos de James Wan se não quisermos recuar mais…), o que interessa é a forma como o descendente toma para si as rédeas da responsabilidade e não desiste de libertar (amarrando!) a progenitora do mal que a está tomando. Esta inversão de papéis entre o protector e o protegido reflectem de novo o trabalho de Kent com a sua herança cinéfila. Isto é, se o peso da paternidade artística é enorme e até asfixiante para um criador, The Babadook é, como objecto, a manifestação dessa inversão de hierarquia, já que pelo filme Kent cuida das suas origens apesar de esse gesto poder significar a sua perdição. Assim é de tal forma que a citação de Bava [de novo a televisão exibindo I tre volti della paura (As Três Faces do Terror, 1963)] não se limita a indicar uma pretensa descendência, nem a justificar certas opções de iluminação mais ousada. A relação do filme com o cinema de Mario Bava é muito mais profunda quando se olha por exemplo para Shock (1977) e nele se encontra a mesma mãe perturbada, o mesmo filho endiabrado, o mesmo pai falecido, a mesma casa em três pisos – com epi-centro sobrenatural na arrecadação -, os mesmos terrores nocturnos, o mesmo poder aterrorizador do universo infantil e a mesma inversão da hierarquia de poder. Ou seja, quase tudo no filme de Kennifer Kent tem origem nesse filme tardio de Bava. Mas a título de justificativo, talvez o “problema” seja mesmo de Bava e não tanto da realizadora: é que se se olhar para Annabelle (2014) de John R. Leonetti – que está correntemente em exibição nas salas nacionais – cedo de compreende que as suas poucas boas ideias têm também reflexo nesse filme (os desenhos infantis que prevêem acontecimentos trágicos ou a transfiguração do infantil em maléfico em plano contínuo) dando e entender que é a influência de tal objecto e o seu trabalho seminal na construção de uma esquadra de sub-género que se manifestam nesta obras recentes (e não o contrário).
(Alerta spoiler a partir daqui)
Por fim, o terceiro e último ponto corresponde àquilo que faz de The Babadook um grande filme. É que se no típico cinema de género o protagonista vence o monstro ou por ele é vencido, aqui nem um ganha nem o outro perde (e vice-versa), simplesmente se aceitam e complementam. É que, como disse no início You can’t get rid of the Babadook, e por isso mesmo a personagem da mãe não se liberta verdadeiramente do monstro (que é manifestação surreal daquilo que é o trauma da perda do marido) apenas aprende a dominá-lo e com ele lidar, LITERALMENTE! Não é a literalidade aquilo que caracteriza o cinema de terror? Babadook passa pois a viver na dita arrecadação (onde estavam todas as mobílias, pertences e recordações da vida com o marido/pai…) e todos os dias, mãe e filho recolhem minhocas e larvas para o alimentar (leia-se alimentar a memória do falecido). Ou seja, o que Kent nos diz (e Jung) é que de nada adianta vencer os nossos monstros, porque eles nunca nos abandonaram, temos sim que domá-los e simultaneamente acarinhá-los. E de novo se estabelece paralelo entre esse monstro que é Babadook (e esses monstros que são específicos de cada um) e o peso da cinefilia no acto criativo da realizadora. Kent consegue portanto domar e acarinhar as suas homenagens e no processo realizar um filme altamente eficaz na construção de atmosferas densas, de personagens complexas e de grande envolvência emocional. Desafio (mais que) alcançado.