Estamos a acabar 2014 e eu já estou aqui na Civic TV, e como não podia deixar de ser, qual novo Janus, de rabo virado para o passado e com os olhos postos no futuro. O ano cinéfilo de 2015 será marcado, certamente, pela estreia comercial de um dos melhores filmes mostrados no mais recente LEFFest. Um filme que representa uma espécie de segunda vida para o seu realizador. Falo de Belye nochi pochtalona Alekseya Tryapitsyna (Postman’s White Nights, 2014) e de Andrey Konchalovskiy, um dos nomes mais promissores da geração do cinema moderno soviético cuja carreira errática não impediu que este seja, involuntariamente, um habitué no pequeno ecrã nacional. Como assim? O nome pode-lhe dizer algo se acrescentar a ele mais dois: Tango e Cash, dois “mostra nádegas” do cinema de acção dos anos 80.
Num artigo de 1956 com o esperançoso título «La Télévision et la relance du cinéma», André Bazin encontra uma definição que me parece ainda hoje muito pertinente sobre o que pode ser a televisão na relação com o cinema: uma “cinemateca involuntária”. Através de um filme podemos aceder, como num link, a longínquas e imprevisíveis cinematografias, bastando para isso sermos levados, até às últimas consequências, pela nossa curiosidade ou o nosso ímpeto de “toupeiras cinéfilas”. A partir de um dos filmes mais passados, pisados e repisados, da televisão nacional consigo reencontrar-me no canal Hollywood com um dos nomes que marcarão – é uma aposta minha – o ano cinéfilo de 2015. Konchalovskiy trabalhou durante vários anos até encontrar as condições certas para o seu comeback fulgurante: ficção semi-documental sobre o isolamento de uma povoação russa “fora do mundo” que se encontra ligada – ou será antes “desligada”? – por um lago que o seu carteiro tem de atravessar para, em cada morada,”tocar até duas vezes”. O método remete para as raízes de um certo cinema realista, materializado em Toni (1935), Ladri di biciclette (Ladrões de Bicicletas, 1948) e La terra trema (A Terra Treme, 1948). Como acontecia com Visconti e De Sica, o casting e a repérage são etapas nucleares que requerem a maior das atenções. No caso de Konchalovskiy, demorou um ano para encontrar o seu carteiro.
Todo este tempo de preparação fez-lhe bem, na medida em que toda a sua obra, sobretudo desde a mudança para os Estados Unidos em 1980, parece necessitada de uma “pausa para pensar”. De tão errática ou desnorteada que é ou parece ser a sua filmografia, não será fácil detectar alguma continuidade entre a fase americana e a sua obra soviética dos anos 60, nomeadamente quando foi argumentista e colaborador próximo do seu amigo e colega de curso na famosa escola do cinema de Moscovo VGIK: Andrei Tarkovsky. Também no último LEFFest, uma coincidência feliz – talvez não tão acidental quanto isso – ofereceu-nos a imagem perfeita, puramente sinóptica, desta parceria celebrada no coração do cinema moderno soviético. No âmbito de uma outra “ressurreição”, os programadores do festival deram a conhecer aos portugueses a obra de Marlen Khutsiev, outro formado e depois professor na VGIK. No ciclo que dedicaram a este cineasta russo esquecido, estava aquela que é uma das obras-primas mais sublimes que o cinema nos deu sobre a passagem do tempo e a entrada na idade adulta: Mne dvadtsat let (I Am Twenty, 1965). O retrato da juventude vivida na Moscovo já de Brejnev vai ser também o retrato de um triunvirato brilhante do cinema soviético: Khutsiev, o mais velho, depois Tarkovsky e, finalmente, Andrey Konchalovskiy. A certa altura no filme, o casal de protagonistas dá uma festa, mas o ambiente é pesado… Uma geração de jovens sem pais, perdidos para a Segunda Guerra Mundial, não sabe festejar, até porque também não sabe o que é a felicidade. Tarkovsky interpreta um pequeno papel – dança, mete-se com raparigas, manda bocas impertinentes… A personagem de Konchalovskiy chega tarde à festa e pouco o veremos mais – se é que o vemos, quer dizer, eu não vi – após um plano fugaz onde partilha o quadro precisamente com o bazófias Tarkovsky. Nesse plano, nessa festa, versão russa (deprimida) daquela que reúne Chabrol, Godard e Truffaut em Le coup du berger (1956) de Jacques Rivette, encontra-se em semente a promessa de uma geração que, como aquela retratada no filme, nunca chega verdadeiramente a desabrochar ou, enfim, a descobrir, e muito menos a conquistar, uma ideia de felicidade.
Apesar da pouca coesão geracional, Konchalovskiy, assinando com o nome Andrei Mikhalkov-Konchalovski – pois sim, é irmão de Nikita Mikhalkov -, terá colaborado com Tarkovsky nos três primeiros filmes deste. Uma empresa que se estendeu até ao ponto, como o próprio narra num documentário, em que as suas visões artísticas entraram em rota de colisão, deixando então os dois amigos de se poderem ver à frente. De qualquer maneira, quando em 1966 lança com Tarkovsky Andrey Rublyov (Andrei Rublev, 1966), já havia realizado um filme magnífico, a sua primeira longa-metragem, Pervyy unchitel (First Teacher, 1965). Esta é uma história, passada numa comunidade “perdida” algures no Quirguistão, sobre a luta e perseverança de um professor vindo de Moscovo com a missão de ensinar às crianças os bons ensinamentos do camarada Lenine. A chegada deste homem irá provocar a desordem nessa comunidade ainda presa a um modo de trabalho – e de pensar – medieval, indiferente aos benefícios da educação e agrilhoada a um regime autocrático e obscurantista. First Teacher é, assim, um filme sobre a experiência do isolamento de uma comunidade e a dificuldade de gerar a mudança. Istoriya Asi Klyachinoy, kotoraya lyubila, da ne vyshla zamuzh (Asya’s Happiness, 1966), a obra seguinte de Konchalovskiy, mistura actores amadores com profissionais – como já muito naturalmente acontecia em First Teacher, mas que aqui se anuncia num cartão – e faz de um triângulo amoroso num kholkoze – um homem ama uma mulher que ama outro homem que não a ama – o locus principal do drama. De novo, falamos de isolamento, mais uma vez, lidamos com uma experiência de rejeição, na ou à comunidade. A franqueza desta experiência terá sido mal recebida pelo poder central do Kremlin, o que motivou a quase completa invisiblidade desse filme dentro e fora da União Soviética.
Mais de 30 anos sobre a sua partida para os Estados Unidos, aparece no Festival de Veneza – e aí arrebata o prémio de melhor realização – um ovni chamado The Postman’s White Nights. Este é um filme sobre a solidão e abandono nos confins da Rússia que promove em Konchalovskiy um regresso às raízes, mas sem pingo de nostalgia ou urgência em “recuperar o tempo perdido”. O que mais surpreende aqui é a frescura desta proposta, que se pode atestar na fusão perfeita que realiza entre a ficção e o documentário ou na forma como faz de cada plano um motivo de contemplação serena da vida, na sua não-extraordinária fluência quotidiana. Mais do que uma “segunda vida” na obra de Konchalovskiy, The Postman’s White Nights é um exemplo assombroso de como os “regressos a casa” podem propiciar um poderoso rejuvenescimento estético de uma carreira. Após a sessão, houve quem, entre amigos, ficasse surpreendido após tomar conhecimento das distantes raízes e percurso excêntrico de Konchalovskiy no cinema. Um percurso tão excêntrico quanto isto: o seu filme anterior a este é de 2009, uma produção multinacional, com Ella Fanning e John Turturro, que tem como título The Nutcracker in 3D (2009). Mas, antes disso, Konchalovskiy é o responsável por dois cult movies de acção dos anos 80: Runaway Train (Comboio em Fuga, 1985) e o tal “clássico da televisão portuguesa”, Tango & Cash (1989). Estes serão, seguramente, os filmes mais vistos do realizador russo ainda hoje e os que mais marcaram a sua mudança para os Estados Unidos, emigração essa provocada pelo sucesso que a sua mini-série sobre uma comunidade siberiana, Sibiriada (1979), obteve a nível internacional e que fez espicaçar o interesse dos estúdios americanos.
Runaway Train, adaptação de um argumento de Akira Kurosawa, conta a história de dois criminosos em fuga (um deles interpretado magnificamente por Jon Voight) que se vêem, por ironia do destino, presos num comboio tão ou mais imparável quanto aquele mais recente de Tony Scott dirigido por Denzel Washington. Apesar da distância de registos (desde logo, perde-se o preto-e-branco deslumbrante desses dois filmes soviéticos) e paisagens (mesmo assim, mantém-se o gosto pelos lugares áridos, perdidos no mapa), ainda vemos neste filme qualquer coisa do heroísmo anónimo e destroçado ou um irresolvível sentimento de desenraizamento que atravessa os primeiros filmes do cineasta. Pelo contrário, Tango & Cash é uma paródia ao heroísmo mais positivamente embriagado consigo mesmo, em toda a sua metafanfarronice mitológica, porque, simplesmente, não tem já nada a provar a ninguém. De onde vem essa metafanfarronice? Tango é Stallone e Cash é Kurt Russell – a tentação era dizer isto ao contrário, mas não… -, um e outro neste típico buddy cop movie sob a influência de Lethal Weapon (Arma Mortífera, 1987) brincam com as suas próprias imagens “para lá do filme”, ou devo antes dizer “aquém do filme”? Basta olharmos para a sequência de abertura: antes de toda a gente, Tango detém um camião-cisterna que transporta droga no lugar do esperado combustível. Um dos colegas diz sarcasticamente “He thinks he’s Rambo”, ao que Tango responde “Rambo is a pussy”. Ora, Stallone interpreta aqui a verdadeira antítese do herói que, nos anos 80, mais o celebrizava dentro do filão do cinema de acção de durões já mais ou menos “expendables”. Tango ilude os bad guys com o seu ar de choninhas emproado. Sempre de lunetas e impecavelmente vestido de fato e gravata, este está longe de ser a versão LAPD do herói de First Blood (A Fúria do Herói, 1982). Cash, por sua vez, é demasiado histriónico e “parolo” para merecer um fósforo de paciência da parte de um Snake Plissken. Tanto Stallone como Russell piscam o olho ao espectador enquanto testam os limites da sua versatilidade cómica. Konchalovskiy é instrumental aqui. Aliás, apetece dizer que, face às suas estrelas larger than life (larger than life não, larger than cinema!), “o próprio filme” é instrumental aqui. O que interessa é a performance, o show metareferencial que prega rasteiras aos dois arquétipos da cultura popular.
Enfim, Tango & Cash é como aquele plano que antecede o homoerótico duche partilhado pelos dois heróis – com um sorriso provocador, Russell chega a dizer a Stallone para não deixar cair o sabonete – e que é uma primorosa encenação da mui pós-moderna acção de “mostrar o rabo” ao espectador – McTiernan e Schwarzenegger levariam mais longe tudo isto, quatro anos depois, com Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993). Assim, o canal Hollywood ofereceu-nos Konchalovskiy involuntariamente tanto quanto é voluntária a variação de Stallone por Stallone e Russell por Russell em Tango & Cash. A “cinemateca involuntária” da televisão abre caminho à mais que voluntária cinemateca a que o filme alude. Não será difícil de responder a ela, uma vez que os filmes da série Rambo e os dois “Escapes” de John Carpenter são também “cromos repetidos” na programação de cinema da televisão nacional. A escavação – e a doce auto-escravatura – do cinéfilo-toupeira não tem fim. O Natal, para ele, pode ser mesmo todos os dias.