Rezam as boas línguas que quando Stephen Hawking viu finalmente The Theory of Everything (A Teoria de Tudo, 2014) a sua biografia baseada no romance da sua ex-mulher “Travelling to Infinity: My Life with Stephen”, uma enfermeira limpou-lhe uma lágrima que escorria do seu rosto. Não era para menos até porque James Marsh que até trabalha sobretudo no registo documental [em 2008 ganhou um óscar por Man on a Wire (Homem no Arame)], tendo visto o telefilme da BBC de 2004 com Benedict Cumberbath a fazer de Hawking e o de Errol Morris de 91, A Brief History of Time, decidiu apostar em três focos menos explorados: a decadência de um corpo afectado pela “doença do neurónio motor”; os feitos de Hawking no campo da física; e, por fim, a história de amor que o uniu durante 25 anos a Jane Hawking. Sobretudo o primeiro e o último são temas universais que Marsh sabia poderem servir um filme de cariz mainstream que homenageasse a vida do génio britânico. E homenageou.
Além do affair das lágrimas que certamente se multiplicarão por esse mundo fora com as mensagens de código universal “enquanto há vida há esperança” ou o verdadeiro “amor que triunfa apesar das adversidades”, há uma outra questão bem mais bicuda que o filme de Marsh suscita. Aos olhos do leigo, assim como é tentador descobrir como passa o artista da inspiração criativa à genial criação, também é grande a vontade de perceber o enigma da passagem do homem comum ao homem acima dos mortais. Como mostrar esse passo de gigante, a visualidade do que é isso de ser um génio? Neste aspecto não há nada de especial por aqui a reter ficando apenas a ideia de que o génio que o espectador quer que se lhe apresente é esse homem de todos os dias que ama, que brinca com os filhos, que se compromete com uma causa. É a humanidade em todo o seu esplendor, de novo.
Este ano se não for Micheal Keaton a ganhar o óscar [na narrativa tradicional do cameback do actor tornado mito que retorna meio amassado das trevas: há uns anos foi Mickey Rourke com The Wrestler (Wrestler, 2008), lembrem-se] a luta parece ser entre quem é o mais génio? Ou, perdoem-me a expressão, quem é o mais deficiente. Na corrida estão Eddie Redmayne na cadeira de rodas como Stephen Hawking e o já referido Benedict Cumberbath, retratando o olhar vago e maquinal de Alan Turing. Como já tinha escrito a propósito de The Imitation Game (O Jogo da Imitação, 2014) falamos destas prestações como de corpos especiais, mais do que seres de estirpe superior.
Assim sendo, The Theory of Everything distingue-se sobretudo pela forma como Redmayne consegue encenar a desaparição progressiva do seu corpo, desmanchando o andar, os movimentos da coluna, deixando por fim apenas o olhar, os trejeitos de sobrancelhas e o ocasional sorriso. Este papel que é quase uma aula de anatomia, músculo a músculo, gesto a gesto, resguarda-se de um mecanismo narrativo mais convencional que leva Marsh a trabalhar, na primeira metade do filme, o corpo são de um Hawking ainda jovem e funcional, para que quando o corpo se apague, já em nós haja um rasto retiniano e emotivo de uma figura que devirá só pensamento.
Se há a piedade, a maior parte das vezes hipócrita, para com o diferente, do pobrezinho e do aleijadinho, com Hawking esse fetichismo vai além do voyeurismo tradicional. Trata-se de ver Stephen Hawking como um prolongamento da extensão mcluhaniana da relação homem/media, mas também com um prêambulo da sombra que paira sobre nós como futuro da humanidade, algo que a teoria dos cyborgs há muito anteviu: a relação simbiótica corpo/máquina que produziria uma outra forma de bíos, uma subjetividade não refém do próprio sujeito. No interessante livro de Hélène Mialet “Hawking Incorporated”, está em causa precisamente a ideia do perfeito génio desmaterializado, um cérebro com próteses que depende de um ritual de automatização e uma noção de indivíduo colectivo que passa não só pelas máquinas que o intermedeiam como pelo ritual performativo das próprias pessoas que o servem. Como por exemplo, a enfermeira retratada no filme, por quem Hawking deixou a mãe dos seus três filhos.
Se o filme de James Marsh é sobretudo um hino à vida e uma história de amor, ele deixa numa semi-obscuridade, num relativo buraco negro, os seus feitos académicos. Talvez este ângulo universal e inofensivo para pegar na vida de Stephen Hawking seja um sinal para especularmos sobre qual seria hoje o papel do mesmo se fosse um homem normal. Quer dizer, se pudesse ele limpar as próprias lágrimas.