Enquanto por cá pessoas vão morrendo devido a um lento e agonizante desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde e na Grécia o partido Syriza, recém eleito, se prepara para ensaiar testes anti-austeridade saindo do marasmo corrente que até já tem nome (TINA – “There is no alternative”), a Midas Filmes, prolongando o espírito da sua recente programação dedicado à memória da 2ª Guerra Mundial e com um olhar atento e irónico sobre a actualidade decidiu agora estrear The Spirit of 45 (O Espírito de 45, 2013) de Ken Loach. Este é um documentário que, através de imagens de arquivo e entrevista a algumas as pessoas que viveram o pós-guerra, procura retratar o período de reconstrução da Grã-Bretanha sob a liderança do Partido Trabalhista do então líder Clement Attlee.
Numa recente entrevista o realizador português Miguel Gomes dizia: “Os filmes militantes apresentam, quanto a mim, um problema idêntico ao das testemunhas de Jeová: querem converter-nos.” Ken Loach, um dos cineastas mais premiados de todo o mundo, à beira das oito décadas de vida, tinha então dez anos quando começou este período de renascimento. Ken Loach sentiu esse “espírito” de comunidade, de bem comum, que dá nome ao filme. Sentiu provavelmente o cheiro da escassa comida a caminho de casa, compartilhou da dor da morte de crianças suas amigas em tempo de privação ou soube de situações parecidas àquela que narra um dos senhores entrevistados quando teve se de deitar, em criança, numa cama com centenas de pulgas. Era o que havia.
Loach quer assegurar-se que constrói na mente do espectador a sua própria certeza: a de que o geist dos anos pós-Churchill, com a edificação do Estado Social do qual o Serviço Nacional de Saúde foi uma das bandeiras, foram o melhor período da história recente do seu país. Para isso convencionaliza, usa música dramática em momentos dramáticos, dá-nos os episódios de terror e de solidariedade, avança sector a sector, à medida que o governo os ia nacionalizado e assim reconstruía o tecido social britânico. A fabricação deste espírito surge, claro, da convicção da ausência de espírito do presente. É preciso lembrar hoje então um período onde havia saúde, habitação e transportes públicos para todos, onde se acreditava naquilo que agora anda à venda: o Estado Social. Nesta missão o raciocínio de Ken Loach é o activismo da nostalgia, na esperança de que, se olharmos aquele passado com admiração, ele irá regressar como concretização de um qualquer sonho, de reactualização daquele no presente.
Não há que negar que The Spirit of 45 é um filme importante sobretudo quando confrontado com a estratégia que Loach descreve depois (e que Naomi Klein inclui também como um dos exemplos da “doutrina de choque“): o poder desregulador que viria pelas mãos de Margaret Tatcher. Sobretudo porque há em confronto duas situações semelhantes mas opostas. Semelhantes pois quer nas doutrinas de choque de imposição do neoliberalismo e das teorias de Milton Friedman, quer na construção do Estado Social na Grã-Bretanha, foi necessário um cenário de “crise”. Opostas uma vez que na primeira o baluarte é dado ao indivíduo (e à sua “liberdade”) e no segundo o objectivo se liga à reconstrução de uma sociedade, de um sistema comum.
Diga-se por fim que se falta anarquia à intenção do cineasta britânico [como acontece com Film Socialisme (Filme Socialismo, 2010), de Jean-Luc Godard, na óbvia mas impossível comparação], essa “austeridade” do filme é atenuada por um loop mais interessante do que o que se viaja do passado maravilhoso ao presente desgraçado. Ele é feito dos rostos das crianças ao rosto dos velhos a contar ora a mesma desgraça ora o mesmo deslumbramento. É nessa ligação entre o lírico e o documental que ameaça revelar-se finalmente o espírito de 45 que Loach tanto procura.